Usina de Letras
Usina de Letras
132 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62239 )

Cartas ( 21334)

Contos (13264)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50636)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Casais -- 09/10/2001 - 10:43 (Jane Soares de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Casais


Heloísa era uma mulher que tinha muita raiva. Era um rancor que lhe subia do mais profundo do peito e explodia numa fúria sem limites e atingia todos ao seu redor de uma forma violenta como uma descarga elétrica. Num desses acessos de raiva irreprimível matou o marido. Foi uma discussão sem importância sobre qualquer desavença cotidiana, comum nos casais. No meio dela a raiva toldou o raciocínio de Heloísa, tingiu seu cérebro de vermelho e fez sua mão se fechar sobre o cabo da afiada faca de cozinha com a qual desmembrava um frango, uma ave raquítica que planejava assar no domingo. Suas mãos estavam escorregadias pela gordura que se escapava com um ruído oleoso e lhe escorria pelo punho. Bem que tentou controlar a raiva procurando enxergar naquele sujeito gordo, baboso, o rapaz com quem um dia resolveu se casar mesmo contra a vontade da mãe. A mãe não gostava dele pois o achava fraco demais para levar a vida com uma mulher como ela, você é uma mulher para grandes vôos, minha filha, precisa de um homem que também seja assim, costumava lhe dizer com aquela voz pedante que usava quando queria parecer desdenhosa e o conseguia. Mesmo assim ela teimou. Adalberto era um bom rapaz, com um emprego razoável que prometia melhorar ao longo dos anos. Também possuía um porte elegante, sabia vestir-se bem quando a levava aos bailes nos sábados e feriados. Os dois entravam de braços dados no salão e eram alvos de alguns olhares, não muitos, mas o suficiente para acharem que formavam um casal alinhado. O pai resmungava que ele satisfazia demais seus caprichos, homem que deixa mulher mandar nele é um frouxo, falava olhando de soslaio para a filha, conhecedor de seu mau gênio e de seus caprichos. Heloísa não lhes fez caso e casou-se com Adalberto assim que conseguiram alugar uma pequena casa na periferia, apenas até acharmos coisa melhor, ele dissera, e comprar alguns móveis pagos em suaves e incontáveis prestações. No princípio até que foram felizes, naquele jeito morno dele neutralizando o natural apaixonado dela. Os dois saíam para trabalhar de manhã e só se encontravam no final da tarde compartilhando um jantar a dois seguido pelo noticiário e pela novela na televisão. Às nove e meia em ponto ele olhava para ela, espreguiçava e dizia num bocejo, estou morto, vamos dormir? Levantava-se em seguida e ia para a cama sem esperar por ela, adormecendo imediatamente, o corpo suado umedecendo os lençóis bordados com capricho, com os monograma H e A entrelaçados entre flores e laços. Adalberto gostava de banhar-se pela manhã quando ia ao trabalho. Fazia a barba assobiando, encharcava-se de loção que deixava um rastro enjoativo pela casa e saía para o trabalho. Voltava cansado, transpirando, um bafo de cigarro escapando da boca aberta no esforço para respirar causado pela escada da frente. Uma escada de nada, quatro ou cinco degraus que ele passou a galgar cada vez com maior esforço conforme ia engordando ao longo dos anos.
Em alguns fins de semana ficava acordado até onze horas da noite para assistir alguma partida de futebol, despejando pela boca latas e latas de cerveja até que o jogo acabava. Se seu time tivesse vencido olhava para ela com um olhar de carneiro e balia palavrinhas doces no seu ouvido, convidando-a a ir para a cama junto com ele. Uma vez deitados escorregava o braço molhado sob suas costas e empurrava seu rosto contra os pêlos da axila suarenta pensando em lhe fazer alguns carinhos. Se ela resistia por conta do cheiro forte do suor misturado ao fumo e à bebida, deitava nela um olhar magoado que a fazia se sentir miserável. Realizavam um ato que era mole demais para chamar de sexo e asséptico demais para chamar de fazer amor. Heloísa sempre ficava insatisfeita. No caso do time perder, o que acontecia o mais das vezes, ficava mal humorado e ia dormir sem falar com ela acordando com a cara inchada e cheiro azedo, tendo passado a noite inteira roncando e expelindo gases.
Levaram por anos essa vida sempre igual. Nas férias iam para a casa dos pais dele, nos feriados de fim de ano para a casa dos dela. Foi somente após dezoito anos dessa vida sem interrupções que Heloísa passou a sentir uma raiva que lhe subia pelo peito, lhe toldava a visão e a punha trêmula e pálida. No início achou que estava na menopausa, aos trinta e nove anos? A mãe jamais poderia aceitar essa idéia, na nossa família as mulheres menstruam até os cinquenta e cinco anos pelo menos! Heloísa retorquiu que poderia ser pelo fato de não ter tido filhos. A mãe fez cara de nojo, com aquele frouxo não é de admirar...Ela fingia não ouvir para não iniciar mais uma discussão interminável sobre a falta de qualidades varonis do marido. Verdade seja dita, até que concordava com a mãe, o homem era mole demais, tanto no caráter como na flacidez do membro que lhe dava um trabalho tremendo deixar ereto, ainda bem que o sexo esporádico só ocorria nos raros fins de semana que o time ganhava...
A questão é que Heloísa andava cada vez mais insatisfeita e com raiva. A mansidão dos dias a incomodava, a eterna solicitude do marido, a voz molenga chamando por ela a toda hora, o mau humor futebolístico que o atacava nas derrotas do time e que ela considerava uma estupidez e uma ausência de aspirações mais elevadas, o que era verdade. Para Adalberto bastava a mesma pequena casa na periferia que ainda alugavam, esquecido o sonho de um apartamento perto do centro, um velho fusca na garagem e a cerveja aos domingos.
O problema é que Heloísa descobriu que queria mais. E passou a ficar com raiva da escolha feita atribuindo ao homem toda a insatisfação que sentia, a falta de perspectivas, um futuro que se delineava se não sombrio, mas com certeza tedioso. Pensava o tempo todo que enterrara sua juventude com aquele poço de merda mole de pau flutuante que gozava mais com o Palmeiras do que com ela. Foi ficando cada vez com mais raiva.
No princípio ainda se controlou um pouco e descarregava a ira no pobre cachorro de nome Nero, nome mais besta para um mestiço de fila e vira-lata que não espantava nem os pombos do quintal. Depois começou a armar contendas com a vizinhança, implicando com os barulhos matutinos, os gritos das crianças, o choro de algum bebê. Aos poucos o quarteirão todo não mais falava com ela. Brigou com os pais e deixou de visitá-los, rompeu amizades de anos e, em casa, tratava o marido tão mal que ele começou a evitá-la vindo cada vez mais tarde para casa, demorando-se nos bares, entrando temeroso, a cabeça abaixada como um cão acovardado por muitas surras. Ela o recebia aos berros, reclamava do cheiro de cerveja, o chamava de bêbado, de vagabundo. Adalberto tudo aceitava em nome da paz no lar, que não tinha paz nem era mais um lar. Com o tempo ele foi levando suas coisas para o quartinho dos fundos e em breve estava dormindo lá todas as noites. Heloísa até que gostou, afinal tinha a cama de casal só para ela e não teria mais que ficar trocando os lençóis suados a cada dois dias, mas mesmo assim não deixava de aporrinhá-lo indo verificar se o quarto estava limpo e a cama feita.
Talvez as coisas ficassem assim mesmo até que, velhos demais, alcançassem aquela rotina amena dos casais que não mais se tocam por não mais se amarem, se Adalberto não decidisse seguir o conselho do sogro num daqueles longínquos dias do noivado com a mulher quando lhe disse num de seus momentos de bebedeira, com mulher não se pode dar moleza, tem que meter a mão se resolver cantar de galo com o marido.
Adalberto não aguentava mais a raiva perpétua de Heloísa e achou que o único jeito de lhe calar a boca raivosa seria finalmente lhe mandar um belo par de bofetões na cara e exigir silêncio e obediência. Só que escolheu a hora errada, o dia errado, o tempo errado para fazer isso. Talvez se o fizesse alguns anos antes não tivesse morrido espetado por uma faca de cozinha cheia de gordura de frango.
Heloísa levantara pela manhã sentindo, mais do que nunca, ódio do mundo. A idéia de ter de limpar e temperar um frango para assar no almoço para acompanhar a macarronada do domingo lhe provocava tanta aversão como se fosse assar um sapo de olhos esbugalhados. Ficou por algum tempo olhando a ave malcheirosa, as moscas voando em torno do pobre cadáver e sentindo que a raiva se avolumava. Quando Adalberto acordou ela estava como uma das fúrias gregas picando o frango com golpes irados da faca afiada, cortando pernas, retalhando o peito, desmembrando as asas. Com a ausência de senso de oportunidade que sempre lhe foi peculiar, Adalberto, sem nenhum aviso, pespegou-lhe um tapa na cabeça fazendo seus dentes chocalharem enquanto gritava na sua cara, expelindo gotas de saliva: de hoje em diante quem manda aqui sou eu!
Foi a última frase que falou na vida. Heloísa, sem pestanejar, enfiou-lhe a faca no peito, direto no coração até o cabo e ainda deu um torção para garantir. Quando, mais tarde, na delegacia de polícia, lhe perguntaram o motivo, sacudiu os ombros com indiferença e respondeu, essas coisas acontecem...Como o delegado insistisse avançou nele com as unhas afiadas e lhe lanhou a cara, deixando quatro marcas sangrentas. Imediatamente foi contida pelos policiais e ainda levou alguns torções de braço enquanto o homem, com um lenço na cara arranhada, berrava de dor, ordenando que trancafiassem a louca.
O processo foi rápido. Um ladino advogado contratado pelos pais que haviam ficado ao lado da filha sentindo-se responsáveis, pois sempre a mimaram demais, conseguiu livrá-la da cadeia alegando insanidade. Heloísa voltou para casa e quis ficar sozinha dispensando qualquer companhia. Depois de algumas semanas sumiu sem deixar rastros. Não houve quem a encontrasse, nem detetives, nem os pais e nem a polícia. Juntou-se a um traficante da favela ali perto, mudou de nome, tingiu os cabelos de vermelho e, em pouco tempo, ficou conhecida como a mais cruel bandida daqueles lados. O traficante batia nela todos os dias, mesmo que o time ganhasse. Depois a atirava sobre a cama e copulavam com paixão. Ela, ainda sentindo nos lábios o gosto de sangue dos bofetões, enterrava as unhas nas costas dele e urrava de prazer.
Um dia, enlaçados na cama, gozando como nunca, foram surpreendidos pela polícia e metralhados. O rosto dela, no necrotério, apesar das manchas roxas das pancadas e dos furos das balas, parecia que tinha um ar feliz.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui