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Contos-->Corte subliminar de um crime -- 10/10/2001 - 00:45 (Anizio Canola) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ando aturdido. Na verdade, não entendo o que está acontecendo comigo. Faz três dias que minha cabeça roda. E dói muito. Coincidentemente, desde o desaparecimento da minha Raquel. Já nem saio mais de casa. Essa apreensão às vezes me assusta. Receio estar perdendo meu poder de concentração. Pensei em consultar um médico. Ou alguém, que me auxilie. Mas tenho medo. Muito medo. Esse é o ponto. Não sei exatamente o que temo. Fico desarvorado, sem Raquel... Mas, diabos, aonde foi ela, deixando-me assim? Sinceridade, não atino com nada disso. Sempre fui lúcido... Até ganhei prêmios com louvor, lecionando matemática. De uns dias para cá começou esse martírio. De repente, estou aqui em casa, sozinho, cismando. Vasculho, mas não encontro em mim explicação plausível. Solteiro, debandei cedo do lar paterno para ganhar a vida às minhas próprias custas. Eu tinha predicados para lograr êxito. Dominar o mundo, o sonho de todo homem. Eu estava conseguindo. Juro. Raquel foi a chama do entusiasmo que me impeliu para a frente. Entrou em minha vida há três meses e tudo mudou. Para melhor. Impulsionou-me. Feliz, apaixonei-me perdidamente por ela. Talhada para mim... Que bonita! Companheira, cúmplice mesmo, para o que desse e viesse... Melhor que a encomenda! Bom, bonita até demais... Alguém me disse que “marido de mulher bonita é um corno em potencial”. Bobagem, por Raquel botaria minha mão no fogo. ...será que faria isso mesmo? Logo ela queixou-se do meu ciúme. Mas, Raquel, quem ama cuida. Disse que meu ciúme é doentio... Que ciúme assim gera discussões. Que fica a um passo da violência. Que invoca o ódio. Certa vez li numa revista: “amor que se transforma em ódio, pode ser terrível para ambos”. Meu pensamento tem mudado muito. Como o vento... Sem causa aparente. Outro dia, vendo um filme na televisão, uma expressão impressionou-me: “corte subliminar”. Gostei do filme, sem entender direito o significado dela. Parece que o detetive usou as cenas onde fora aplicado o corte subliminar. Quer dizer, o marginal via a cena, mas por causa daquele efeito, o seu subconsciente era induzido por imagens aparentemente invisíveis, ao mesmo instante.
Ele reagiu estranhamente. Entregou-se, desesperado. Acho que era assim mesmo. A frase é cada vez mais freqüente no meu pensamento. Percebo que começo a perder a noção das coisas. Por que? Minha cabeça dói terrivelmente quando penso nisso. Como neste instante... A polícia conseguiu dessa maneira que o meliante confessasse. Mesmo sem entender o que estava acontecendo. Corte subliminar... Porque estou pensando nessas coisas? A troco de quê? E Raquel, onde está? Piora minha dor-de-cabeça. Puxa, bonita e inteligente, ela sabe certinho os analgésicos que costumo tomar. Raquel, Raquel. Apareça, pelo amor de Deus! Esta casa de cinco cômodos nunca me pareceu tão deserta e medonha, como agora. Sem Raquel... Credo, acho que comecei a gritar, mas abafei a tempo. Raquel, volte logo. Eu preciso de você! Tento forçar a memória. Cada vez que faço isso, minha cabeça parece que vai estourar. Cerro os olhos. Ah, que bom! Na tela da minha mente, surge a imagem de Raquel. Esta cena é de três dias atrás. Parece um sonho. Vou reclinar-me no sofá para prolongar esse filme maravilhoso. Ah, Raquel, minha paixão! Mas, que isso? Bastou abrir um olho... Que vejo? Quem ligou a TV? Olha só o Gugu, apresentando o seu Domingo Legal! Uma linda moça está na banheira. Então hoje é domingo! Nem me lembrava. Maldita dor-de-cabeça! Aquela moça é tão diferente de Raquel. Pode ser desinibida. Mas Raquel não é vulgar... Gente, esse filho-da-mãe do Gugu distraiu-me. Esqueci que estava sonhando com ela. Abro o outro olho. Acho que fiquei muito nervoso. Nem me dei conta que atirei o controle remoto na tela. Muita força... Um estalo no televisor, uma fumacinha... Êta, dor-de-cabeça, aumentando sempre. E, Raquel que não volta? Volte Raquel. Eu preciso de você. Agora! Já. Now... O silêncio nesta casa de cinco cômodos me perturba, ao invés de me acalmar. Um barulho ensurdecedor, dentro da minha cabeça. Tateei na parede até desligar o interruptor. Viva, trouxe a escuridão para cá. Não é estranho?. Dia ainda, mas a casa toda fechada, as portas trancadas, vira um breu. De quê tenho medo? Da solidão? Ou da minha cabeça? Ou do corte subliminar? Fecho os olhos ao parar no meio da sala. Na mente, Raquel! Mas o que acontece com ela? Parece enfurecida! Ou apavorada? Sonho é sempre difícil de interpretar... Vou ao seu encontro. Ou ela vem ao meu? Estou zonzo. Deve ser efeito da escuridão. Raquel tem um leve ferimento no pescoço. Não, é corte profundo! Um corte subliminar... Arregalo os olhos. Sinto que devo sair da sala. Agora! Vou ao banheiro. Algo me diz que as explicações que procuro estão lá. O que está acontecendo? Nunca me senti assim. E por que ciumento? Por causa de Raquel, aquela garota bonita e inteligente? Que me ama. Ou não? Ora, só tenho provas positivas do seu amor. Por que o ciúme? Acaso o apaixonado ciumento pondera as coisas? Eu raciocino. Ao menos, tento. Eis a porta do banheiro. Opa, bati a cabeça no batente. Ah! Ah! Batente é mesmo para bater. Acendi a luz. A suavidade do ambiente trouxe-me de volta a imagem de Raquel, refletida no espelho. Espelho é o reflexo da nossa alma! Procuro-a ao meu redor. Mas não a vejo. Só no espelho! Linda, de minissaia, pernas torneadas. Bonita, ela. Eu, um reles ciumento. Essa dor-de-cabeça não passa! Corte subliminar... Exaspero-me. Nunca senti tal angústia. Sempre fui tão equilibrado. A chave de tudo é Raquel! Mas onde ela está? E por que eu pergunto, como que temendo saber a resposta? Minha mente está travada. Só o silencio da casa se manifesta, mas não entendo o que significa. Os vizinhos, também estão tão quietos. Aonde foram todos? Combinaram ficar assim, silentemente, aguardando a volta de Raquel? Por que querem a sua volta, vizinhos malditos? Posso gritar, ninguém parece estar por perto mesmo. Saberão que sou ciumento? Tenho vontade de matar a todos! Matar? Meu Deus, nunca disse coisas assim... Eu era tão pacato. Não suportava violência. Será que essa maldita Raquel mudou minha maneira de ser? Ninguém conhece verdadeiramente o semelhante. Nem mesmo a si próprio... Quem não praticou um ato ousado, do qual se admirou posteriormente? E disse: como tive coragem de fazer isso? Sinto que estou no meu limite. Corte subliminar.... Raquel... Vou lavar o rosto. Vai me fazer bem. Abro a torneira. Meu pensamento foge. Lembro-me da banheira. É a do Gugu? Não. Assusto-me. É a banheira aqui de casa. Raquel está nela, há três dias! É isso. Toma banho de rosas. Um encanto. Ficando ainda mais atraente. Para mim? Ou para algum outro alguém? Triste sina de um sujeito ciumento. Presto atenção na água saindo da torneira do lavatório. Socorro! Está jorrando sangue! Como é possível? Pronto, fechei. Estranho, a louça ficou manchada de vermelho. Abri de novo. Mais sangue! Joguei um pouco no rosto. Vermelhou! Que aflição. Vou enxugar com esta toalha. Ai. O contorno do meu rosto ficou nela! Isso está me deixando maluco. Lembra até o Santo Sudário. Corte subliminar. Por que pensei nisso agora? Raquel. Cabeça doendo. Vou fugir daqui. Não compreendo o que estava acontecendo. Será loucura? Sangue na torneira? Calma, vou pôr as idéias em ordem. Talvez seja algum tipo de reflexo. Isso mesmo, vou comprovar na torneira da pia da cozinha. Maldita cadeira, no caminho. Tropecei nela. Também, essa escuridão no corredor... Cheguei à cozinha. Ligo a luz. Abro a torneira. Não! Sangue puro! Estou doido. Sabia, tudo isso porque Raquel, o meu amor, desapareceu. Golpe mortal para mim, um ciumento. Outra vez a imagem exuberante de Raquel invade a tela da minha mente. Estou enlouquecendo, com tudo isso. Vou gritar! Eu sei onde você está, Raquel! Na banheira! Que pancadas são essas na porta da sala? Quem é? Abriram à força! Que modos, vizinhos intrometidos! Como invadem minha casa, assim? O que querem? Que fazem aqui esses três rapazes com jaqueta da polícia civil? Terão acaso um comprimido para dor-de-cabeça? Saberão me informar de Raquel? Apareceram até umas mulheres bisbilhoteiras. Comentam que há três dias minha casa estava fechada, em completo silencio. Não me viram sair daqui, com a Raquel. Que mal há nisso? Sair para quê, se aqui é o nosso ninho de amor? Dizem que daqui já exalava um cheiro estranho. Gente maluca. Era o perfume das rosas, na banheira de Raquel. O policial está contando para elas que o plano deu certo. Jogaram corante cor-de-sangue na caixa d’água da minha casa. Para quê? Será isso um corte subliminar? Aqueles senhores, com uma lona preta, dizem que vão levar Raquel, da banheira. Por que fazem isso comigo? Raquel é minha. Não podem tirá-la de mim! Ah, eles ignoram que faz três dias que Raquel entregou-se definitivamente a mim. Estão me algemando... Deus meu, minha dor-de-cabeça não passa!. Ah... (suspiro) Desisto de tudo. Empurraram-me para dentro do camburão. Gente estranha! Agem de forma tão agressiva. Faltam-me com o respeito. Uma coisa eles não sabem. Logo estarei de volta para cá. Para encontrar-me de vez com a minha linda Raquel. Nunca mais precisarei ter ciúme dela. Porque agora tenho certeza que ela me será eternamente fiel...

Anizio Canola
Aniziocron@bol.com.br

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