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Contos-->Desterro -- 11/10/2001 - 22:07 (Thaís Jamyle Pinheiro Dionisio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A mãe estava visivelmente arrependida de ter uma filha. Já o olha com aquele jeito feminilmente superior de quem sabe um segredo que nenhum homem sabe: a fascinação numa tarde de compras de Natal. SeLuís não tivesse nascido homem, ela estaria feliz da vida, trocando informações calorosamente com uma garota de dezessete anos. Mas o mundo não é perfeito e agora ela deve aturar um jovem apático, de mal humor, que - quando dá opiniões - não dá um única que seja suficientemente sensata e que só serve para reclamr e carregar sacolas.
Ele a segue de loja em loja, entre enfeites coloridos – verdes, vermelhos ou dourados – que cobrem todas as prateleiras e quase escondem os produtos. E ao fundo sempre as mesmas músicas natalinas, entremeadas de sinos, harpas e Meninos Cantores de um lugar qualquer.
É difícil encontrar presentes para a família toda. Agora a mãe já compra o presente de Luís na frente dele, pois não acredita em Papai Noel há muito tempo. Aliás, ele não se recorda de ter acreditado nele algum dia. Só se lembra que fingia acreditar porque não devia ser normal uma criança não acreditar em Papai Noel. Ou todas as crianças também fingiam? Talvez somente crianças de filmes americanos de Natal acreditassem. Ele só soube escolher com segurança o presente do priminho de cinco anos, Alexandre, com quem se entende perfeitamente. Às vezes acha que ele mesmo não mudou muito desde os cinco anos. Acha as crianças tão felizes, enclausuradas no seu mundo fantástico de sábia solidão, que tenta não mudar. Porque todos já foram sábios algum dia, só que a maioria ficou adulta. Então ele entende Alexandre, diverte-se brincando com ele e participa com suas próprias fantasias, a despeito do olhar de compaixão dos adultos.
A mãe deve escolher os outros presentes. Pensa em cada pessoa com uma prudência irritante, passando por milhares de opções até encontrar algo que ela acha que aprova. Depois fica em dúvida, pergunta a opinião dele mesmo sem ouvi-lo, fica olhando para o objeto por uns dois minutos e finalmente manda empacotá-lo. Ele pega as sacolas enquanto ela paga e respira aliviado, até ouvi-la dizer:
–Agora temos que escolher o presente da tia Helga. Ontem ela me ligou e comentou que estava precisando de uma bolsa nova. Mas eu não sei que tipo de bolsa ela prefere, então estive pensando...
Ele já está visualizando a ceia. O peru fumegando no centro da mesa, rodeado de castanhas. A briga dos priminhos pelo melhor pedaço do peito. O tio Otto lhe contará piadas obscenas e o pai dele pedirá para “não ensinar essas coisas ao garoto”. Ele adora o tio Otto, casado com a tia Helga, irmã do seu pai. É um filósofo irreverente, no auge dos seus cinqüenta anos, que parece ser o único que dá algum valor à maneira de pensar de Luís. Mas nas ceia ele oferecerá vinho à Lug e a avó paterna lhe dirá que ainda é uma criança e que é cedo demais para começar a beber. Ele sentirá uma satisfação transgressora em aceitar uma taça de vinho, a tia Helga exclamará espantada que ele já é um homem feito. Eu o conheci quando era deste tamanho! – afastará as mãos uns cinqüenta centímetros, evidenciando o tamanho de um bebê. A avó lhe dirá para comer mais, pois não parece estar se alimentando direito. O priminho mais velho, de dez anos, irá gabar-se de ter lido Os Três Mosqueteiros em três dias, com aquela pose de intelectual precoce, ignorando as criancices do irmão mais novo. “Esse quer crescer rápido “ – pensa Luís – “está louco para sair do Jardim do Éden”. O pai, de quem herdou os olhos negros, falará de negócios até que alguém o repreenda por tocam em assuntos tão impróprios para uma noite de Natal. A mãe lamentará a distância da própria família (Quem a mandou sair de Berlim? Ele lhe perguntará, só para importuná-la) e prometerá que no próximo ano passará o Natal na Alemanha.
Ele nasceu em Berlim. A mãe, quando viu aqueles olhinhos tão negros, teve um estremecimento. Os comunistas estavam tão perto... Quero ir para o Brasil! (tinha parentes lá...) E ele passou a ser chamado de Luís, para que os amigos não o criticassem pelo estranho "Ludwig" na sua certidão.
Só de pensar nos parentes de Berlim, Luís tem arrepios. Lá também tem dois tios. E uma prima, dois anos mais velha que ele. Ela não falava quase nada, nunca sorria, vestia-se de preto, adorava crucifixos. Às vezes ele ouvia vagamente o rock pesado que vinha do quarto dela. Antes da ceia, ela ficou num canto escuro da sala, enterrada numa poltrona, debaixo de um abajur, lendo "Os Sofrimentos do Jovem Werther". Chamava-se Gräuben e namorava (diziam) um skinhead. Na primeira oportunidade saiu de casa, sem cerimônia alguma, sorrateira e rapidamente como água que se escoa. A pobre avó suspirou, inconformada com os hábitos “desses jovens”, mas consciente da própria impotência. Ele acordou às sete horas da manhã, no dia seguinte. Quando está na casa de estranhos (e os parentes da Alemanha parecem-lhe estranhos), não consegue dormir até tarde. Não sabe por quê, pois ele é um dorminhoco inveterado. Decidiu descer e tomar um copo de leite. Já havia amanhecido, mas a casa ainda estava silenciosa. Enquanto descia as escadas, sentiu-se esquisito, caminhando sobre solo berlinense. E era mais estranho pensar que ele havia nascido lá. Estava tão longe de casa! Longe das coisas que ele conhecia e que via todos os dias. Não conhecia o clima do lugar aonde estava, não podia saber como seria o restante do dia apenas observando o céu de manhã. Quando viaja parece-lhe tudo tão deliciosamente diferente! Na sala havia um retrato do bisavô. Não vestia roupas militares, como na maioria dos retratos de avôs alemães, que exibiam com orgulho suas dragonas reluzentes. Mal pode acreditar que ali está seu bisavô e que nas suas veias corre um pouco do mesmo sangue que corria nas veias dele. Sente um calafrio percorrer-lhe o corpo todo. Já ouviu alguém dizer que calafrio é quando alma penada passa perto da gente. Cruzes! Deve ser o frio. Os rastros da ceia estavam por toda a sala de jantar e havia pedaços rasgados de papel de presente espalhados pelo carpete salmão. A árvore de Natal estava majestosamente opaca, com seus enfeites e bolas de vidro brilhantes ofuscados pela luz branca da manhã que entrava pela janela, onde as cortinas entreabertas revelavam a neve acumulada no parapeito, do lado de fora. Quando entrou na cozinha, deparou-se com Gräuben, que bebia refrigerante, encostada na pia. Usava a mesma roupa da ceia, então devia ter acabado de chegar. A presença dela lhe causava desconforto.
— Não precisa ir embora só porque eu estou aqui. — ela disse, sem encará-lo, sempre com o olhar perdido de certo ar gótico.
Então ela notava a presença dele? Agora não sabia se era ignorado ou vigiado. Se voltasse para o quarto faria papel de bobo, mas era tudo o que ele queria. Abriu a geladeira com aparente naturalidade e tirou a caixa de leite. Os copos estavam guardados no armário acima dela. Gräuben afastou-se o mínimo necessário quando ele lhe pediu licença. O rosto dele ficou próximo da nuca dela, à altura dos cabelos curtos pintados de preto. O pescoço dela era branco como o leite que iria tomar. Quando fechou a porta do armário e se afastou, foi como se voltasse a respirar. O silêncio dela era como uma terceira pessoa inoportuna. Sentiu-se ridículo no pijama de flanela vinho e bebeu o leite com cuidado para não ficar com bigode branco. Talvez por isso o leite nunca acabasse no seu copo.
— Você não é idiota como eles, é?
A pergunta o pegou de surpresa. Quando virou-se para gaguejar uma resposta, sentiu que o olhava todo de maneira analítica. Era como uma língua de fogo que passava por onde o olhar dela pousasse. Sentiu-se constrangido ao perceber que era desejado descaradamente pela primeira vez.
— Você ficou mesmo um gato, sabia?
Ela se aproximou sem receio e o agarrou subitamente. As mãos dela nas suas costas, por baixo do pijama, eram frias. A boca dela tinha um gosto de cigarro que o deixou confusamente enojado. Mas ao mesmo tempo uma força instintiva não o deixava reagir ou afastar-se dela. Então Gräuben afrouxou os braços e passou por ele com a mesma indiferença de antes. Ele ouviu-lhe a voz por trás mais uma vez:
— Pena que ainda tome leitinho de manhã.
Ridículo e sujo. E por quê essa sensação de algo inacabado? Não sabia o que pensar. Não pensou. Ele não a viu mais. Quando não estava na rua, estava dormindo. Nunca contou nada a ninguém. Afasta essa lembrança como um homem afasta a lembrança de um pecado delicioso.
A mãe o chama. Mais uma sacola. O natal este ano será insosso.
— Lug!
— O quê?
— Lhe perguntei se vai comprar alguma coisa para Elise!
A namorada... o que vai comprar?...
Dá de ombros.
Quer saber? Cansei dela.
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