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Contos-->Os Romeu sempre morrem por amor -- 12/10/2001 - 00:01 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os Romeu sempre morrem por amor





Suspensas as portas sanfonadas, o Duas Pátrias inaugurou o movimento de domingo com a entrada de Romeu, infalível primeiro boêmio de todas as manhãs.
Como sempre, ele vinha encardido de outro tresnoite e muitíssimos telhados, vinha magro, feliz como todo gato vadio. O bicho deslizou as patas com as costas arqueadas, o rabo em pé, miou o bom-dia para Generoso, intrometendo-lhe por entre as pernas e a vassoura o corpo sedoso, num roça-roça de pelos, cabelos e piaçabas eriçados, as carícias do gato arrepiavam o português.
Eram duas pernas cabeludas, o gato arrepiado, e a vassoura um tanto desgastada pelo uso.
Na avaliação de Zuê Lopes, o português e o gato possuíam maus caracteres, se completavam, se amavam mesmo. Reeditava-se, dizia o letrado bicheiro, no cenário de garrafas de cachaça o drama shakesperiano, igualmente temerário e impossível, o vagabundo Romeu encarnando com perfeição o galante Montecchio, cabendo ao gordo Generoso figurar a gentil Julieta Capuleto, comoventemente indefesa, no caso indefeso, ante a impossibilidade física da consumação do amor.
Zuê Lopes discorria sobre a coincidência dos romances, o do bardo inglês e o traçado pela mão canhota do destino carioca, sempre depois da primeira meia dúzia de cervejas. Veias da têmpora saltadas, carranca franzida como se espremesse os miolos para gotejar citações eruditas, resmunguento, danava a fazer comparações da vida real com o que lia nos seus livros velhos. Ler e recolher citações, de simples distração virara vício, vício molhado a álcool se tornara obsessão. À santa obsessão o honesto bicheiro dedicava os intervalos das extrações, três ao dia, uma aos domingos.
Lia e anotava, cotejava opiniões, e procurava no dia-a-dia situações que se encaixassem nos seus decorebas, como se os fatos só acontecessem por repetição, todos devidamente registrados.
Outra vez queria advertir Generoso para a impossibilidade da escandalosa ligação, que acabaria resultando em morte ou muitos arranhões.
Era histórico. Dizia para quem quisesse ouvir, do fundo da sua aporrinhação: - Não demora teremos outro português enxergando com um olho só, por causa dessa mania de navegar por mares nunca navegados. Se amasiar com gato, ora veja só.
Romeu pressentiu a chegada do bicheiro, encerrou o vaivém nas canelas do português, arrepiou-se como se visse assombração.
- Zoófilo você também!, rosnou Zuê Lopes para o bicho, dando-lhe um peteleco na orelha. - Esse excomungado também se amarra em animal, e animal português. Acaba produzindo outro Camões para a humanidade. Sai uma cerveja estupidamente gelada! Cessa tudo que outro valor mais alto se alevanta!
Romeu, no colo do dono à procura de proteção, lambia, mordiscava o lóbulo da orelha de Generoso, com afeição e carinho.
O gato odiava o bicheiro, e vice-versa.
Zuê Lopes correu o zíper da capanga azul, apanhou o Colt do meio da desordem de talonários de bicho, encaixou a arma no cós da calça. Conferiu as tirinhas com os resultados da véspera. Voltou ao peito o ódio ao gato. Pois não é que nos últimos dias desandara a dar gato em todas as extrações, num despropósito sem sentido, sem qualquer explicação plausível? Jogo de bicho possui lógica, tem sua sabedoria, quem joga e sabe suas ciências não o confunde com um jogo de azar qualquer. Jogo de bicho ampara-se na inspiração das pessoas, e inspiração é dom superior, vem do alto e destina-se aos eleitos. Se a uma pessoa é dado sonhar com cavalos correndo numa planície, crinas e rabos soltos ao vento, os bichos exaltados de tanta saúde, conforme se vê nos anúncios de cigarro, e essa mesma pessoa crava dez reais na centena 935, da cobra, e dá a dita cobra, com a mesma centena, reconheça-se em nome da doutrina religiosa que houve inspiração, a mão de Deus guiou o palpite, transcendeu-se. Fosse o dono do sonho mero jogador chulé, nunca perceberia a perfeita correlação dos cavalos na planície com a quantidade de ninhadas de cascavéis que se espalham nos desertos americanos. Jogaria no óbvio, no cavalo. Zuê Lopes sempre foi considerado jogador de refinada estirpe justamente porque enxerga a transcendência da vida real, prognostica com exatidão.
Sua banca sempre confortou almas que nem consultório de psicólogo, decifrando enigmas da mente e curando mazelas do espírito, com a superior vantagem de proporcionar à clientela, que é vasta e eclética, a chance de embolsar uma boa bolada num terno de dezena combinado. Amante de jogo de bicho sabe que o único prazer de marido corno é acertar no milhar do touro. Serviço de utilidade pública melhor está para ser criado.
Mas desde que Generoso se assumiu com o xexelento do gato os ventos dos maus presságios se abatem sobre a banca de apostas. Nenhum palpite dá certo, afunda-se o prestígio de Zuê Lopes como bicheiro amigo da freguesia, já se espalha a fama de que ele pende para o lado do banqueiro, o que é desastroso para a profissão.
Nos últimos dias, então, com a chuvinha miúda que se despenca sobre Campo Grande, a situação chegava ao ponto do insuportável. A freguesia pede confirmação para palpites de dia chuvoso, Zuê Lopes indica jacaré, bicho afim com água, ou porco, bicho afim com charco: dá borboleta. O sol retorna, sinal de galo saudando alvorada, Zuê Lopes garante galo, o burro o desmoraliza. Numa noite sonhou consigo mesmo, promoveu o leão, deu veado. Zuê Lopes na oitava cerveja resmungava e já admitia o disparate:- Sou? não sou? eis a questão.
Nas três extrações da véspera, no paratodos das duas da tarde, na loteria da ave-maria e na corujinha das nove, a coisa chegou ao ponto de exigir providências radicais: deu gato na cabeça em todas as extrações, mais uns quatro por dentro. Bem que na véspera Zuê Lopes surpreendera o coisa ruim ronronando com a cabeça metida nos bagos do português, mas, como bom cristão e homem de respeito, recusara-se a aceitar tamanha perversão como palpite. Recomendou o carneiro, que é a inocência com quatro patas, e, em nome da boa moral que deve se acercar de toda banca de bicho, saiu de casa com o trinta e oito enfiado na capanga azul, decidido, resoluto:
- Hoje eu meto uns caroços de chumbo no lombo do puto.
O primeiro gole de cerveja refresca e abençoa. Zuê Lopes estala a língua, convida:
- Bebe comigo, Generoso.
O português traz outra brama, pelo gargalo para não empedrar.
- Tenho um porém pra levar contigo, galego.
Romeu se acomoda entre os pés do dono, ronrona. Generoso bebe o primeiro gole, arrota.
- Molhei a palavra, Generoso, para não te machucar. Teu gato é a falência das instituições!
O rabo de Romeu tremelica no chão, nervoso. Generoso troca o cotovelo no balcão. Zuê Lopes passeia a língua nos fios do bigode pintado.
- O bicho vive aí a caçar suas gatas e ninguém está a falir por isso - Generoso coça o dedão do pé na cabeça do gato.
- Gato preto não presta - Zuê Lopes corta, ríspido.
- O bicho não incomoda ninguém.
- Incomoda, prejudica, atrasa a vida, dá urucubaca. Teu gato é uma pedra no caminho do jogo de bicho.
- Os incomodados se mudem.
- Galego, não estou de brincadeiras. Esse bicho é negativo. E não dá certo manter criação em banca de apostas.
- Não vejo por que.
- Questão de equidade... são vinte e cinco bichos para os palpites. Todos têm que estar em igualdade de condições para a inspiração do apostador. O bicho é uma instituição democrática! O palpite é livre, como livre é o sonho, e deveria ser o contraventor.
- Meu gato não impede ninguém de ser livre...
- Aí é que está! Sendo livre, o palpite não deve sofrer influências. Na sagrada hora da aposta, tudo serve de inspiração: o sonho com a sogra, cachorro atropelado, parto no zoológico, a quantidade de trepadas na novela das oito. Tudo inspira! Na livre opção está a força, o vigor do jogo de bicho. Neste contexto, o gato preto, ficando aí à vista da freguesia, atrai forças para sua pessoa, quebra a harmonia. Pra ter um gato, você teria que criar os outros vinte e quatro. Me diga onde você ia enfiar o tigre, o elefante, o camelo?
- E o que me propões, então?
- Matar o gato. Matar para restabelecer a ordem democrática.
- O meu bichainho?
- Se não, caio fora do pedaço.
- Arrasas o Duas Pátrias.
- Desfaz a amizade. Mata. O amor só é eterno enquanto dura.- O sorriso exibe ouro e cáries.
- Matá-lo, nunca. Também não me desfaço dele. Os gatos sempre retornam à própria casa.
O trezoitão sai da cintura, está no balcão:
- Negócios são negócios.
Generoso engole seco, o rosto se contrai, ordena:
- Guarda isso.
Zuê Lopes abre todo o zíper, afunda a mão na desordem dos talonários, por baixo fica o amarrado de dólares. Separa dez cédulas, coloca-as lado a lado com o trabuco:
- Mil verdinhas. Pegar ou largar...
Generoso suspira, transpira, evitar olhar o dinheiro, enxerga manchas nunca vistas no mármore do balcão. Esfrega o pano úmido.
- Pago adiantado pra passar o cerol no coisa ruim. No filho de satanás - Zuê Lopes quase sussurra, até com alguma meiguice.
(Os negócios do Duas Pátrias emperram, os preços sobem, as duplicatas... ai, meu Deus, que não resisto... livrai-me da tentação):
- Dinheiro nenhum compra a minha consciência!
- Mil verdinhas na mão? Nem siamês, persa ou angorá valem esta baba, não desfazendo do enrabicho que você tem com o chumbrega.- A mão do bicheiro some na capanga, retorna mais tentadora: - Duas mil verdinhas!
( Bem pensado, chumbrega... veio-me à porta, por desmamar, alguém o pôs na rua... mas, criei-o a papinhas, aqueci-o com o calor do meu peito, como um filho... como um filho, meu Deus! Dois mil dólares são dois mil dólares, Jesus!) : - Ofendes os meus sentimentos.
- Três mil! Três mil, não. Cinco mil, pra parar com a frescura.
. O pacotezinho de dólares cresce sobre o balcão, fica enorme, irresistível. Generoso molha a ponta dos dedos na saliva, desfolha cada cédula, murmura com voz embargada: - Não calculas a dor aqui dentro... amizade não tem preço...
- Conferiu os cinco mil?
- Conferido.
- Guarda. É teu. Fora o pepê da semana. O teu pepê não falha, nem o dos homens da lei, do padre e das putas. Cumpro minhas obrigações, e o mundo se move feliz.
( Os negócios do mundo movem-se com este oiro... cá está... In God We... In God We Trust... sábias palavras dalgum banqueiro... tintas diferentes a cada lado... verde escuro, a águia agarra os ramitos... será oliveira? Haverá oliveiras na América como as do Alentejo? Nada falta por lá, ora pois...no lado verde escuro, o dono do mundo olha-me feliz... eh... eh... eh... puro oiro... e se mo roubam?) : - Tenho lá muita estima pelo bichainho... é minha riqueza que se vai.
- Chumbrega, depravado, gato degenerado sexual, de parentesco com o demo, se você quer minha opinião... espero sua licença para encerrar o assunto e despachar o feitiço. - O tambor do 38 gira macio, engraxado.
- Sem tiros - Generoso suplica.
- Porra! Vou matar o gato aos tapas?
- Prefiro que tu leves o dinheiro.
- Devolve.
(Ai, Jesus, sofro...)
- Devolve as verdinhas, levo a banca e não se fala mais nisso. Devolve, anda - Zuê Lopes estende a mão, aguarda o dinheiro.
(Ai, Jesus, socorrei-me) : - Apalavrei-me. - Generoso está lívido.
- Então...?
- Palavra de um homem não volta atrás.
- Homem de caráter.- A mão estendida do bicheiro agora espera a do português. Felicitam-se.
- O gato é vosso. Faze o que quiseres. - Generoso chora.
O bicheiro devolve o três-oito à capanga azul. A mão, já desarmada, se enconcha, faz bafo-bafo sobre a mão de Generoso, por pouco não é uma carícia: - Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Tua dor bateu fundo na minha caixa de catarro, abalou meu dolente coração. - Zuê Lopes suspira fundo e enrola o bigode, com pesar: - Vou dar veneno pro excomungado.
Generoso funga, se reconforta apalpando os cinco mil dólares. Zuê Lopes repete o bafo-bafo:
- Se conforma, os Romeu morrem sempre envenenados, por amor. Fica com a grana, homenagem ao teu chamego.
Os olhos marejados de Generoso buscam compreensão nos olhos verdes do gato. Romeu, nem aí, lambe-se higiênico e indiferente. Termina as manobras de asseio, levanta-se, se lixando para a fraca natureza dos homens, conforme da natureza dos gatos. Dá sua volta macia pelo salão, concede ao dono o afago nas pernas - Generoso sente um nó -, desvia-se das pernas do bicheiro, desliza as patas até à calçada, dali à rua, ao asfalto. Fica parado na pista de rolamento, dois, três segundos, os olhos verdes fixos da rua fixos nos olhos vermelhos do balcão...
- O jogo é uma perdição - Generoso murmura.
- Existem muitas coisas entre o céu e a terra, mais do que supõe nossa filosofia, Galego. Existe aquele ônibus.
O 398 - centena da vaca - passou enfiado, interrompendo olhares e filosofias.
... e ainda deu gato na extração domingueira.




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