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Humor-->A Hierática Lua -- 12/12/2008 - 21:34 (Fernando Werneck Magalhães) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Naquele dia de um santo qualquer, iniciei a minha caminhada meia hora mais tarde que de regra. Deve ter havido alguma razão para isso, pois acredito que sempre há uma, a menos de coincidências, que, inconsistente, coleciono sem parar! Só não sei se sólida, pois desconheço se foi o meu costume que mudou ou se o meu relógio perdeu o compasso com a realidade cronológica – caso de fácil solução para o mulá Nasredin, o meu guru turco do século 13.

Lembro apenas que, assim que consegui retirar o meu esqueleto de dentro do carro, que estacionei junto a um colégio católico, defrontei-me com uma magnífica Lua a um palmo acima da minha careca budista. O céu da manhã estava perfeitamente azul – destacando-se, exatamente no meio dele, aquela Lua hierática, quase transparente.

Não pude, contudo, dar-me ao luxo de quedar-me em contemplação mais dilatada. Logo, rodopiei sobre os calcanhares e pus-me a caminhar. Ficou-me, contudo, gravada na mente a imagem do astro da noite, que rivaliza em beleza, mas não certamente em potência luminosa, com o do dia.

Como por vezes ocorre, vieram-me pensamentos que não sei se metafísicos ou relativos à astronomia. Como pode a Lua ser tão estável? Que forças ou que vontade a sustentam? Se pensasse muito no assunto, arriscava-me a ter uma recaída mística. E isso seria uma fria. Quente para mim são as pessoas de carne e osso – os transeuntes com quem cruzo durante o exercício matinal.

Caminhar mais tarde, uma pouquidade que seja, apresenta, como tudo na vida, vantagens e desvantagens – obviedade essa que muito me surpreendeu, assim que terminei de escrevê-la. Explico-me: em algum ponto do passado, os economistas criaram a chamada análise custo-benefício, que acabou sendo apropriada pelos médicos – pelo menos em sua formulação mais simplérrima, contábil.

(Atenção, esse tipo de afirmação só deve ser feita “em off”, senão o ministro cai e só se levanta em Genebra, que é uma cidade horrível. Pois lá muito chove, não tem praia e acabaram com os pedintes, o que impede os helvéticos de aliviarem a consciência com alguns trocados, já dizia o sarcástico Marx. Daí a sisudez suíça e o pendor dos seus cidadãos para a eutanásia.)

Quanto às vantagens mencionadas, recuso-me a decliná-las – seguindo, de novo, o exemplo do mulá Nasredin – pois, sendo elas de domínio público, constiituiria perda de tempo e um atentado à impaciência dos meus leitores superativos repeti-las. Isso porque o que está na moda – e, portanto, no presente – é ser dinâmico, jovem, ser capaz de correr mais rápido do que os coelhos, ser o campeão das coelhadas, aumentar cada vez mais (até que a manga da camiseta arrebente) os bíceps, tríceps e quadríceps e outros tendões ainda mais impressionantes, porque elásticos.

A desvantagem mais palpável é de natureza ecológica: o trânsito de veículos aumenta e, com isso, a poluição sonora e do ar – de que, “infelizmente”, dependemos ainda hoje para sobreviver. Mas acabo não resistindo ao meu gosto pela redundância e, assim, elenco outra vantagem da retrocitada pouquidade do meu atraso.

Esta envolve diretamente o ser humano: os tipos que passam são muito mais variados na sua aparência e na maneira como se deslocam no tempo e no espaço – a pé ou de bicicleta em direção ao batente, caminhando ou fazendo “jogging” –, exatamente como já fazia a minha avó em justa homenagem a Schopenhauer.

Ora é o grupo dos respeitáveis senhores que têm quase 70 anos de estórias para contar (nenhum deles furtou-se a lançar-me um simpático cumprimento, de que logo me apossei para enriquecer a minha coleção de pérolas). Ora são os dispostos cidadãos de igual senectude que desafiam os deuses do Olimpo com o seu discreto trote.

Ímpares, pares e trios de trabalhadores se dirigem à faina diária com escassa proteção contra o frio – um deles, de arcada dentária falha de vários elementos, creio que viajava para alhures ou era poeta, posto que tinha os olhos perdidos no espaço. Entre os vários outros, havia uns que exibiam mais carnes; outros, menos – sorte deles, pois podiam comer bobó de camarão ou surrupiar brigadeiro em festinha de criança sem sentimento de culpa.

A notar, também, os faltantes, ou seja, aqueles que provavelmente tiveram uma noite curta de sono, devido seja a uma eventual insônia (se não for eventual, sniff!), seja a amores por muito tempo ansiados. Digo isso a título de exemplificação, mas, claro, as causalidades que movem o comportamento humano são tão numerosas quanto os astros no firmamento. E, aqui, desculpo-me com os leitores pelo clichê, mas eu não poderia deixar escapar, entre os dedos, a Lua - astro que também é e que serviu de inspiração para estas linhas entortadas. Ufa, depois de expirar as minhocas da minha cuca, aliviando, assim, os meus pulmões, já posso até espirrar! Atchim!

E, assim, terminei os 45 minutos de caminhada, em que me senti muito bem acompanhado de minhas próprias idéias e tive sucesso em não tropeçar em nenhuma das relíquias orgânicas que nos foram presenteadas pelos primos caninos, educados e guiados pelos mal-educados dos seus acompanhantes humanóides.

Antes, porém, de acomodar o traseiro no assento do carro que já me acompanha a um múltiplo de anos, deitei um último olhar à irmã Lua. Continuava no mesmo lugar, só que 50 por cento mais etérea. Breve sairia totalmente de cena, para deixar brilhar em toda a sua glória, e com total exclusividade, o irmão Sol, a Vida – e, segundo outros, o próprio Deus. E que viva São Francisco de Assis, Buda e Chekov em seus transes ecológicos!


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