Contrariando convicção que me custou mais de 60 anos para formar, encontrei, há um par de anos, uma das poucas amigas de cabelos grisalhos que me sobraram. Confissão expontânea e alegre dela: mal conseguir esperar para tê-los todos brancos. Elogiei o seu gosto século XVIII, embora ela rejeitasse, "in limine", a opção natural de aderir às alvas perucas dessa época.
No dia anterior, o meu saudoso terceiro pai resolvera massagear o meu ego, elogiando o meu corte de cabelo, que, entretanto, eu ainda não tivera suficiente desapego à vaidade para desbastá-lo à máquina número três. Naquela ocasião, realizei ademais a descoberta sensacional de que usávamos o mesmo shampoo, cujo fabricante gabava ser capaz de eliminar o amarelado dos cabelos brancos – dele, não os meus, que resistem, com sua cor indefinida de papel reciclado.
Bem a propósito, li no jornal um despropósito que me entristeceu – que a população russa seguia uma trajetória de redução, com a expectativa de vida dos homens despencando para 58 anos, devido, entre outros fatores principais, ao aumento da criminalidade e abuso de bebida alcoólica.
E que, se medidas apropriadas não fossem tomadas a tempo, a tendência demográfica faria a população encolher – de 145 para 100 milhões de pessoas nos próximos 40 ou 50 anos (sugestão aos leitores: não confiem cegamente na minha memória de economista, assim como eu prometo não confiar na de vocês!).
Essa notícia atirou-me, então, na “fossa” por dois motivos: primeiro, porque alinho-me entre os admiradores irrestritos da literatura desse país; segundo, porque já estive em Moscou e São Petersburgo na década de 70; e terceiro, porque, durante a viagem de trem de uma cidade à outra, deliciei-me em ouvir a música ambiente atacar com “A banda’, do nosso Chico Buarque.
Depois, à noite, assistindo o programa de música clássica da TV Senado, de novo veio à tona o assunto “cabelos brancos”. Surgiram dois senhores nessa condição. Um, o seu simpático apresentador, o falecido ex-senador Artur da Távola, que, motivado talvez pela própria calvice, elogiou desbragadamente a vasta e despigmentada cabeleira do barítono russo Dmitri Hvorostovski.
Este apresentou-se num magnífico dueto com a linda soprano Anna Netrebko, acompanhados – ambos - pela Orquestra Filarmônica de São Peterburgo.
Mas o que me surpreendeu mais favoravelmente foi, além da competência dos intérpretes russos, a sua elegância (o decote do soprano deixava à vista, mui discretamente, a maior parte do seu osso peitoral externo; não sei como fui reparar nisso – logo eu, o desligadão de um pseudobudista!).
Lado positivo: o fato de o barítono exibir despudoradamente a sua cabeleira podia, sabe Zeus, significar que a situação socioeconômica russa não estivesse tão preta assim. Ou melhor, que o risco de ser assaltado fosse menor do que as estatísticas sugeriam – o que não seria de surpreender, pois, como se sabe, os números quase sempre não mentem. Mas nem sempre!
Mas também poderia ser o caso de esse artista só circular em ambientes seguros e refinados. Ou, então, que o seu receio de ser alvo de assalto fosse inferior ao prazer que ele derivava de ostentar a sua baloiçante cabeleira. Ou, então, que fosse um perigoso faixa-preta de judô, ombreando-se, nesse pormenor maior, ao ex-presidente Putin. Ou, então, que usasse a tal peruca do século XVIII!
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