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Contos-->Cada Vida é o que é II -- 13/10/2001 - 17:12 (Patricia Rosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O corpo cai estendido no chão, no asfalto de uma avenida principal, morto. Mais um bêbado que sucumbe a força de um automóvel apressado, fora da faixa de segurança. No mesmo instante, nasce um menino franzino, a mãe, adolescente, grita de dor, pare o filho-irmão, a criança acaba de perder o pai-avô. A menina-mulher pega o bebê nos braços, pequeno, mirrado, mas perfeito, sente um misto de alegria, raiva, confusão, uma criança de verdade substituindo a falta de bonecas da infância que acabara a força.
A mãe da menina não quer ver a criança, não sabe se sente mais raiva do marido beberrão ou de si mesma por nunca ter feito nada para evitar esse pecado, essa coisa contra a natureza, pensa que o neto nascera todo deformado, como castigo de Deus pela maldade do marido, pela impotência dela. Já mandara duas outras filhas embora, as dera para trabalharem em casas de família, as havia tirado das garras daquele marido violento que tinha que possuir todas as mulheres da casa, a última não tivera tempo de salvar, ficara grávida, aos 12 anos, do pai. Os meninos, passavam o dia inteiro na rua para não apanharem do velho bêbado.
A menina dorme, a criança ao seu lado, a parteira vai embora, avisa para a mulher que chora no quintal da casa que a criança é perfeita, que ela precisa cuidar da menina.
- Canja de galinha Maria, serve uma canja pra menina.
Ele ouviu sempre a mesma história, que Deus havia sido bondoso com ele, apesar de tudo apontar contra, havia nascido perfeito, tinha apenas o defeito nos olhos, os dois teimavam em olhar sempre na direção do nariz. “Zarolho” era o apelido com que todos o chamavam. Vivia naquela casa, com o esgoto correndo a céu aberto, um quarto para os seis, ele, a mãe, a avó e os três tios-irmãos. As duas faziam faxina para sustentar a casa e o menino que teimava em não querer estudar.
- Pra que? – era o que o garoto sempre dizia.
Na escola, o que mais se via eram as drogas, o descaso da sociedade para aquela gente que nasceu a margem de tudo. Ele se sentia o pior de todos, o mais pobre, o mais rejeitado, todos sabiam que era filho do avô, repetiam isso todos os dias, a mãe lhe tratava como irmão, a avó como um pecado vivo.
Quando a mãe resolveu arrumar um homem, fugiu de casa, preferia viver na rua do que apanhar do padrasto como os outros garotos da favela, ia viver como tantos outros, se é que aquilo era viver.
Vez por outra passava por uma rua onde só via casas bonitas, pensava em Deus, como é que aquela gente vivia daquele jeito e ele não tinha nada? Que Deus é esse que a avó vivia falando? Onde é que estava Deus quando Jurandir, seu único amigo de verdade, um branco de alma negra, foi morto pela polícia porque estava dormindo em uma praça? Porque era pobre e só por isso era suspeito.
Olhava com ódio aqueles carros reluzentes passando pela rua, aquela gente bem vestida, aquelas mulheres gordas ostentando a riqueza, olhando de cima aquele garoto que nem pediu para nascer, mas que nasceu e é a sobra de um ser humano que mal conseguia se agüentar nas pernas e de uma mulher que largou a vida no sangue que ficou no lençol, restos de sua inocência.
Não há mistérios na vida de um garoto como ele, é viver cada dia e escapar da morte eminente, ser um ser humano, ou o que faz a figura de tal, um pecado ambulante, a demonstração clara que Deus é bom só porque o fez perfeito, mesmo sendo um pecado vivo. Não se conforma em pensar em Deus, nesse Deus que deu aos outros tudo e a ele nada. A culpa é Dele, Ele que não segurou o desejo horroroso daquele homem que teve um fim bem merecido, mas só depois de lhe dar a desgraça da vida.
- Deus deve ser branco – pensa.
Restos humanos andam pelas ruas onde ele foi criado, restos de uma sociedade que é dividida entre o certo e o errado, onde sempre os errados vão ser gente como ele, sem nada, sem nunca poderem ter nada, porque há um muro que os separa da vida, o muro que separa a fome de comida e de alegria, da soberba e da fartura.
Ele está com 10 anos e ainda está vivo, come o que sobra, pede e ganha quase nada nos sinais de trânsito e o seu ódio contra o mundo e contra Deus aumentam cada dia mais, quer tirar do mundo aquilo que o mundo nunca lhe deu oportunidade de ter, vida, respeito.
Numa tarde de segunda-feira, normal para todo resto da humanidade, para aqueles que têm humanidade, o garoto volta àquela rua de casas bonitas, de gente que não é pecado, porque Deus as ama, de um jeito que nunca o amou, ele vê um caminhão de mudança, um monte de homens da mesma cor que ele carregando caixas, fica olhando de longe, tanta coisa saindo de uma única casa! Uma luz invade seus olhos, ele que sempre vira tudo de um modo torto, vê a coisa mais bonita que já vira na vida, se ilumina no único sorriso de boca inteira que dera na vida, um grande crucifixo.
- Deus é de ouro – pensa.
Quer aquele objeto mais que tudo, quer roubar Deus para si, acha que pode fazer com que Ele o ame se guardá-lo para si, quer sentir um amor de verdade de Deus, uma vez na vida.
Quando os homens da mudança voltam para dentro da casa, ele corre para perto do caminhão, olha mais um segundo para o grande Deus que está na sua frente, o quer a qualquer custo, sobe no caminhão, sente o peso de Deus, desce desajeitado, tenta correr, ouve um grito atrás de si.
- Pega ladrão!
Não consegue correr, Deus é muito pesado, mas pela primeira vez O amou, queria Deus para si, tinha que fugir com Ele.
Um homem bem vestido sai de casa, arma em punho.
- Aquele objeto é uma relíquia de família!
Não, Deus não pode ser deles, não pode ficar ali onde eles não precisam Dele, eles já têm tudo, e ele não tem nada. Anda mais alguns passos ensaiando uma corrida, ouve mais um grito.
- Pára ai pivete que eu vou atirar.
Ele não pode parar, vai levar Deus com ele, precisa de Deus com ele, sente um calor profundo nas costas, cai para frente abraçado a Deus, segura ainda mais firme, ouve muito longe gritos, desespero, sorri ainda uma vez, não viveu com Ele, mas agora já não era um pecado vivo, estava viajando abraçado com Deus para o mesmo lugar onde Ele segurava Jurandir no colo, e ele ficou ali, amando pela única vez e feliz.
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