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Artigos-->Contra a Tradição: A Contradição -- 06/10/2003 - 20:21 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CONTRA A TRADIÇÃO: A CONTRADIÇÃO



Diógenes, filósofo do século III a.C, discípulo de Antístenes, foi um dos responsáveis pela fundação da Escola Cínica, que inaugurou uma nova forma de pensamento filosófico dentro da Antigüidade clássica, cujos modelos ainda eram os herdados de Sócrates, Platão e Aristóteles. Cínico, do grego kunikós, mantém estreita relação com a palavra kúon, cão, figura representativa da Escola Cínica, emblema de seus filósofos e forma pejorativa de tratamento através da qual acabaram entrando para a história. Os cínicos acreditavam que a filosofia deveria se despojar de todos os seus ornamentos, de sua pretensa elevação, de sua retórica que principiava a se esvaziar para descer ao nível da inteligibilidade comum, ou seja, a filosofia tinha como obrigação ser um produto do pensamento acessível a todos e não apenas a alguns poucos iniciados.

Os cínicos eram altamente niilistas, no sentido de que desenvolveram um pensamento cético a partir do qual todas as supostas Verdades absolutas eram postas em questão. O mundo deveria ser olhado e compreendido do chão, como fazem os cães, daí a analogia canina. Negavam o prazer, o dinheiro, a propriedade, o casamento, a família, a educação e a pátria, conceitos fundamentais ao pensamento clássico grego, defendidos desde os pré-socráticos aos epicuristas. Rejeitavam a sociedade e expunham aos indivíduos o que havia de pior nos próprios indivíduos. Pregavam o abandono da sociedade e uma vida de renúncias caso se quisesse mesmo alcançar a igualdade. Diógenes, por exemplo, vivia em um tonel e, dizem, num encontro com Alexandre, o Grande, quando perguntado o que mais desejava nesse mundo, respondeu: “Que você sai da frente do meu sol”.

Diógenes, banido da história da filosofia, é resgatado, no século II d.C, por Luciano de Samósata, sírio radicado na Grécia, homem de vasta cultura e autor de uma obra que seria, séculos mais tarde, ela mesma banida da história da filosofia: os Diálogos dos Mortos. Na obra de Luciano, Diógenes é, ao lado de Menipo, o mais cínico dos cínicos, o personagem central. Trata-se de trinta diálogos que reúnem as figuras mais famosas da hélade antiga sob o signo da sátira, do humor e da ironia mais rascante. O desmascaramento de toda uma cultura por meio do elogio dela. Menipo é um filósofo cínico que, a convite de Diógenes, deixa a terra e vai ao Hades, o lugar dos mortos, rir-se deles, questiona-los, expor suas fragilidades, heróicas, filosóficas, políticas ou estéticas, dependendo sempre da natureza do satirizado. Menipo não poupa ninguém. E os diálogos de Luciano acabaram por constituir um gênero: o da sátira menipéia.

Os Diálogos dos Mortos são uma resposta aos modelos dos diálogos platônicos, sua contrapartida em forma de sátira, cinismo, virulência e sarcasmo. Ao invés da crença platônica na razão, na racionalidade como forma de alcançar a Verdade e, por conseqüência, o equilíbrio e a harmonia interior, Menipo cuida de demonstrar os caracteres mais grotescos da alma humana, demolindo os pilares do saber filosófico clássico ao revelar que cada um constrói sua própria verdade de acordo com as necessidades e as exigências da hora, e que essa verdade bem pode ser uma falácia, um engodo que depende sempre de poder de convencimento de quem a professa e do desejo de que ser enganado de quem a ouve. Sendo assim, se pensarmos nos diálogos platônicos como o modelo por excelência do exercício filosófico clássico, cujo ideal era a construção ética, moral e estética do indivíduo através de sua exposição sistemática ao logos, à razão imediata, à dimensão profunda do pensamento, os Diálogos dos Mortos, de Luciano de Samósata, são um anti-diálogo, um breve contra a filosofia.

O ideal filosófico platônico de edificação do complexo moral do indivíduo começa a ruir com a sátira menipéia, que põe em questão a validade dos princípios filosóficos e a própria filosofia como era praticada até então. Sócrates, Platão, Aristóteles, juntamente com os sofistas e os retóricos, criticados à exaustão pelos primeiros, para conceber suas obras, validar seu pensamento e redefinir os rumos da filosofia em seu tempo, precisavam acreditar na capacidade e na ação transformadora do indivíduo, do logos, da racionalidade. E é justamente o indivíduo, em suas contradições mais flagrantes, em sua vilania, em suas desvirtudes, escondidas sob o manto diáfano de uma aparente virtude, que será o alvo da sátira impiedosa de Luciano.

A condição humana, para Menipo, é muito mais assustadoramente risível do que digna de pena, compaixão ou cuidados. É preciso desvelar nosso mundo de aparências e simulações, o patético de nossa mais pobre e intima condição. Por isso Menipo, com exceção de Diógenes, seu mestre, não poupa ninguém: as belezas terrenas, como Jacinto, Narciso ou Helena; os grandes heróis, como Ulisses, Aquiles, Ájax; reis como Midas, Heracles, Tântalo; filósofos e sábios, todos atravessam pateticamente o Aqueronte devassador de sua sátira, de seu riso, de sua poderosa e virulenta anti-filosofia. Todos expostos em sua nudez mais atroz. Contra toda a aparência, o veneno devastador da ironia.



P.S – Há uma excelente tradução dos Diálogos dos Mortos, numa edição bilíngüe, com notas explicativas que aclaram ainda mais a beleza, a força e a ironia do texto de Luciano, de Maria Celeste Consolin Dezotti, professora de grego da UNESP. Vale a pena conferir pela precisão, o cuidado, o rigor e a extrema atualidade que a tradutora deu ao texto, que flui naturalmente, condição imprescindível para que a sátira cumpra a sua missão primeira: despertar o riso.

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