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cronicas-->ESTILINGUES E RAIAS -- 25/07/2016 - 13:56 () Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estilingues e Raias

Tínhamos uma vida bem simples na minha infància. Meus avós tentaram fazer doutores os seus quatro filhos. Meu pai desistiu dos estudos, talvez por amar minha mãe e não conseguir ficar longe dela, talvez por não conseguir ficar sem a liberdade das matas estando trancafiado numa sala de aula. Acho que pelos dois motivos!
Sempre teve pendores para os esportes! Exímio lutador de Judó, Jiu-Jítsu e jogava na zaga como ninguém (aliás ainda joga, hoje aos 78 anos coloca muito guri "no chinelo"). Fazia piràmides humanas nos desfiles do Sete de Setembro. Dava até saltos-mortais lá de cima! Mas o que ele mais gosta é de ser livre no mato.
Se genética tem a ver com alguma coisa na qual a gente se torna ou ama, esses genes dele herdei por inteiro.
Sempre dado a invencionices. Faz lanternas de testa, esmerados estilingues esculpidos em forquilhas de goiabeiras ou jabuticabeiras e as raias mais lindas e descomunais que jamais vi alguém fazer. Para quem não sabe o que é uma "Raia", é como se chamam as pipas ou pandorgas na minha terra...
Eu, desde sempre, companheira das traquinagens de papai!
Me fazia pequenos estilingues, que eu pudesse manobrar com esmero com as pequenas mãozinhas de menina magricela e arteira.
Moráva-mos numa casa bem velha, de adobe, com telhado de telhas que pareciam ter sido moldadas nas coxas dos negros da época da escravidão. Tinha um forro de estuque, caindo aos pedaços, já bem acinzentado pelo tempo. Éramos vizinhos de meus avós.
Mas o que mais me encantava era o quintal. Guardava um mundo muito peculiar nele. Ali vivi muitas histórias que merecem ser resgatadas das profundezas do baú de minhas lembranças....
Meu primeiro estilingue, deveria eu ter uns quatro anos, ainda era de càmara de ar de bicicleta, com forquilha de goiabeira, couro bem curtido, amarrado com cordõezinhos na borracha e na madeira. Foi entalhado a canivete. Exultante, peguei-o nas mãos. Papai segurou junto e mostrava onde colocar o polegar, onde direcionar o olhar, para que a mira fosse perfeita. Lembro bem dele dizendo: - Força, estica, agora! Solta!
Tinha uma passagem para a casa de meus avós no muro lateral. Nesta passagem um velho mourão de madeira corroído pelo tempo. Foi por muito tempo meu alvo preferido.
Lição número um: - Nunca atire em passarinhos!
E lá ia eu, com a capanga do lado, abarrotada de goiabinhas verdes.... (elas são a mais perfeita munição de estilingues que conheço, pela forma arredondada e com aquele bico no final, que lhe concede uma estabilidade inigualável. Um verdadeiro bólido!). Assim, tingia o mourão de pintas verdes da casca das goiabas a cada acerto.
Treinava incansavelmente a minha mira.
Quando chegava o "mês do cachorro louco" (assim era chamado o mês de agosto naqueles tempos), ventava muito, havia muita poeira e era o tempo da raiva canina se espalhar pelo ar. Mas era o tempo das Raias!
Lá ia meu pai construir aquelas belezuras. As primeiras eram normais, de papel-manteiga, taquara e rabiolas coloridas. A mim cabia fazer a rabiola, colando tiras formando argolas entrelaçadas. A cola era grude feito de polvilho. Enrolávamos a linha em latinhas e partíamos para colocá-las no ar. O melhor lugar era atrás do Colégio Martins Borges, num terreno batido de terra bem vermelha... Lá aprendi fazê-las subir!
Mas o Bebé ficava inconformado quando elas pegavam muita altura, pois quase sumiam de nossas vistas. Passou então a fazer Raias gigantescas, maiores que eu, maiores que ele!
Para aguentar o tranco, eram feitas de plástico colorido, desses que vendiam a metro em rolos para forrar as mesas das casas. A primeira foi de um rosa quase choque. Lembro bem disso, talvez por não gostar de cor-de-rosa. Como não era fácil manobrar aquela monstruosidade, ele fez uma caixa de madeira com uma enorme manivela, onde acomodava-se uma linha de seda que quase chegava a cordão. Eu fui buscar a tal linha nos Aviamentos Da`glória, para resistir as correntes de ar. Fui pensando...Será que voaria? Era tão grande! Coração na boca!
Tudo preparado, lá fomos nós pro campinho...nestas horas aparecia até torcida! Muitos eram adultos que ainda se permitiam ser infantis... Assim como meu pai! Assim como eu, até hoje!
Meu pai tem um magnetismo que faz com que as pessoas acreditem que a felicidade compõe-se de coisas infinitamente simples.
Tudo preparado, analisado a direção do vento, o posicionamento da "aeronave", a tensão da linha.... Parte o Bebé para corrida.
Tensão total! Absoluto silencio. Fólego preso! (rsrsrs entendi)
- Subiu, subiu, subiu.....Gritávamos todos enlouquecidos!
E assim sucederam-se várias pipas. Até o Nelson do FOTONELSON e o Oyama vieram uma vez ver a pipa subir. Uma listrada com a cor do arco-íris... Essa me lembro bem, alcançou as correntes onde voam os urubus e a linha não aguentou. Tentamos resgatá-la mas foi tudo em vão. Voou sobre o lago do Clube Campestre e sumiu entre as nuvens. Não sei se caiu. Prefiro pensar que ainda voa! Infinitamente até as beiradas do universo.
Vieram muitas outras depois dela.
Ainda hoje meu pai faz estilingues para mim. Quando vou visitá-lo logo chama minha mãe e pede para pegá-los para eu escolher. Sabe onde minha mãe os guardam? Dentro do cofre que tem no quarto! Deve ser para que os outros não os vejam e peçam algum antes de eu escolher os meus. Meu pai hoje enfeita as forquilhas, fazendo desenhos a ferro quente nelas. Usa garrote de amarrar os braços nas injeções no lugar das tiras de borracha, diz que duram mais. Também não usa mais tantas cordinhas, evoluiu para as colas resistentes de hoje, faz primorosos acabamentos nas bordas dos couros....
Ano passado fez um especial para mim.... Na forquilha tem um compartimento com uma tampinha, para eu guardar a munição. Já não uso mais goiabinhas. Tornaram-se muito raras nos quintais. Aliás, até os quintais ficaram raros.
Ele me dá com os estilingues um vidrinho de chumbo bem grosso, talvez seja 3T ou coisa assim. Sempre diz:
- É para espantar as caninanas e gaviões que querem pegar seus passarinhos! "Num" deixa o gavião chegar!
Ainda uso meus estilingues. Adoro derrubar mangas com eles.... Miro sempre no talo! Exulto quando acerto! Nem sempre acerto! É a mesma emoção de criança.
Pretendo ser criança a vida inteira, assim como meu pai! Fazendo coisas que muita gente grande não entende, mas que morrem de inveja de assumir que seriam bem mais felizes se embarcassem nesses pequenos desatinos.
Sigo, incansavelmente, tentando aprender a arte de esticar e soltar elásticos e cordas, buscando o equilíbrio na vida! Talvez... Nunca aprenda!
Meus sonhos ainda voam impulsionados por eles! Estilingues e Raias...
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