Usina de Letras
Usina de Letras
168 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62211 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140797)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->O ECONÔMICO E A NOVA ORDEM PSÍQUICA -- 05/04/2000 - 00:00 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Econômico e a Nova Ordem Psíquica



Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli*

marcopiscitelli@bol.com.br



“Onde está o conhecimento que nós perdemos em meio a tanta informação?”

T. S. Elliot





Ninguém melhor que Edward Munch, pintor norueguês (1863-1944), antecipou com tanta intensidade a angústia existencial do homem deste final de século. Em seu “O Grito” ficaram as marcas e os sons do desencanto, da alienação e do desespero.



No cinema, o diretor John Badham, em “Nick of Time (Tempo Esgotado), enfoca de forma dramática a mais singela rotina sendo repentina e brutalmente atingida por circunstâncias que interrompem a vida ali mesmo. A narrativa em tempo real transforma um homem pacato em assassino sem opção. A partir de uma “escolha perfeita”, a personagem é lançada em destino inarredável, que vira inferno irrecorrível. Esse suspense, por sua força, remete-nos a pensar sobre a passividade de um homem rendido pelos cânones de uma ordem internacional que impõe rígidos padrões de inserção.



O cerco econômico global propaga não haver outra opção senão a de entrar no mercado e dele sair com o carrinho abarrotado de coisas não escolhidas, que vão parecer velhas e inúteis antes da data de validade, só para dar conta do circo vistoso do consumir.



Como a torrente de informações transmitidas a todo momento, essa pletora de ofertas gera o estado de confusão que não permite discriminar o que é importante e sério do que não é.



Entrar nesse mercado é sair supermarcado. A compulsão de a ele retornar é imediata. A sensação perene é de que tudo passa a faltar num crescendo tal que, às vezes, é o próprio mercado que parece em falta, desabastecido. O que não passa de um jogo encobridor para desencadear um frenesi incontrolável. Hora de dar um pulinho à drogaria e sair correndo de alegria. Se não for suficiente, recorrer às rotas alternativas/paralelas. Há sempre um ecstasy de plantão para instituir o estado desejado.



Vários estudos têm mostrado que a prevalência de depressão na população geral vem aumentando desde o fim da II Guerra Mundial. Transformações econômicas e demográficas de vulto ocorreram nos países ocidentalizados, caracterizadas por maior nível de urbanização, pressões concorrenciais, desintegração da unidade familiar, colapso dos laços de solidariedade, anomia social e anemia política.



A falência do setor público em atender as demandas básicas sob sua responsabilidade e um Terceiro Setor ainda em gestação na retomada de um espaço para a cidadania deixam nas mãos do mercado um excesso de poder que enfraquece a democracia. A situação geral é de instabilidade. As decisões são tomadas em esferas sobre as quais os cidadãos não têm a mínima influência.



No vazio deixado pelo fim decretado da História e de tantas ideologias e utopias vai restando a “ideologia” do tudo é possível. Sem limites e referências estáveis, instaura-se o clima de insegurança e desorganização. Se tudo é possível, nada se diferencia de nada. O sujeito escolhe qualquer opção ou nenhuma. É obrigado a “gozar” sem consultar o seu desejo. Nesse tropel, é penoso construir uma biografia ou estabelecer laços duradouros com algum esforço de abordagem ou dedicação.



Num processo que leva todo o mundo a se mover para o mesmo lado, pode-se até prever o que vai suceder. É só lembrar do Bateau Mouche. A globalização é isso: prédica de um pensamento uniforme, hegemonia suprema dos bens de consumo instantâneo. Nossa interação social circunscreve-se a relações com objetos. Assim como adictos, vamos afastando-nos do cenário aonde acontecem as relações de alteridade. Porta aberta para o esvanecimento das identidades.



“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente”, afirma Stuart Hall em “Identidades Culturais na Pós-Modernidade”.



Assistimos a um abastardamento das normas, idéias e valores para freqüentar uma descontinuidade fragmentada que se constrói na base de arranjos momentâneos, até certo ponto fictícios, com pouca ou nenhuma chance de posicionamento ou defesa.



David Harvey em “The Condition of Post-Modernity” também comenta o impacto da globalização:

“À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia ‘global’ de telecomunicações e uma ‘espaçonave planetária’ de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida que os horizontes temporais se encurtam até o ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais”.



O dramaturgo carioca Augusto Boal diz que “a globalização promulga a prótese do desejo, como se o mercado dispusesse de tudo que o sujeito quer, necessita, imagina e sonha”. Com esse modus operandi, o desejo é obturado. Daí é fácil entender como surge o caldo em que fermenta o imobilismo, o tédio, a sensação de que não há o que fazer. Tudo está pronto. Fica-se impedido de inventar o futuro, esperando que a vida se consume.



O arrivismo detonado pela competição, vivido como imperativo de sobrevivência, inocula sentimento plácido de aquiescência acrítica. Multidões correm atrás dos novos tempos anunciados, sem se importar com o que é anunciado e com quem o anuncia. Assustadas, sem ter onde se refugiar, num presente sem solidez, as pessoas vão aderindo ao pacto sinistro da reificação totalitária. A assimilação em tudo se parece com a do comedor compulsivo, que deglute sem mastigação e seleção rumo ao empachamento. A regra é preparar-se para o que ainda não existe ou que tem hora marcada para acontecer. Quem resiste fica de fora, com os dias contados à inanição. A exclusão deixa de ser um conceito essencialmente econômico para se estender a outros campos.



Nesse presente de difícil moradia, é inevitável que busquemos proteção visitando algum lugar do passado que nos devolva o senso de orientação e lógica que alicerça e alavanca o estado mental de qualquer sujeito. É lá que vamos encontrar a presença marcante das fontes, das essências e da energia própria. Da fluidez de aportes acessórios, ninguém segura a vida. Tem de haver algo que é regente, principal, com escritura, gramática e pontuação.



No seqüestramento de mentes e vontades comandado pelos ditames da globalização, despenca a cotação das relações interpessoais e é devassada a intimidade. Isso propicia um estilo de vida eminentemente externo, voltado para as investidas de ocupação e distraimento permanentes das potencialidades dos indivíduos. Disso resultam altas taxas de retorno econômico.



Doença da moda, sinal dos tempos, bola da vez, o que for, a depressão impressiona pelo número de diagnósticos que assume em psiquiatria. Será que há mesmo tanta gente deprimida? É o imenso arsenal terapêutico que não pára de crescer que corre atrás de candidatos à doença? Foi decretada a “ditadura da alegria e do bom humor”? Desapareceu o lugar para a expressão depressiva na moderna sociedade emergente? Desmilingüiu-se a expectativa na tendência à remissão espontânea dos episódios depressivos em prazo variável com os ganhos da elaboração lenta? Ou isso converteu-se em estoicismo dispensável?



Havendo motivos razoáveis para o reagir depressivo, é natural reconhecer o esforço do aparelho psíquico em face dos condicionamentos no ar para sobreviver com alguma lucidez e acuidade.



Considerar apenas ou preponderantemente o papel da neurotransmissão na gênese da doença depressiva é correr o risco de um reducionismo biológico, subestimando as determinações multifatoriais do contexto sociocultural e do sentir de cada sujeito.



A esse respeito, é interessante ouvir o médico gaúcho, não psiquiatra, Moacyr Scliar:

“Quem não produz, não consome ou não compete não pode estar bem da cabeça. A depressão é o resultado dessa conjuntura, mais especificamente do sentimento de culpa que se apossa das pessoas incapazes de participar na nova ordem econômica. Da culpa nasce a depressão. Ou seja, a melancolia é a doença dos excluídos, que aos poucos cresce em número”.



Sem pretender contestar ou desvalorizar os conhecimentos acumulados pela ciência até o momento, meu propósito neste texto é o de apontar as frestas das categorias que catalogam o psiquismo, nem sempre dando conta da abrangência envolvida. É certo que todas as classificações estão repletas das boas intenções de apreender os fenômenos e permitir uma melhor comunicação entre os profissionais. Porém, – atenção –, devagar com o andor. Tramita um bocado de equívoco nos altos escalões. “Palavras, palavras, palavras / Eu já não agüento mais...” Ligar o som e escutar Gonzaga Júnior.



“Desde quando sorrir é ser feliz

Cantar nunca foi só de alegria

Com tempo ruim

Todo o mundo também dá bom dia.”



*O autor é médico psiquiatra da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.













Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui