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Artigos-->A genealogia do espanto -- 11/11/2003 - 16:52 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"A genealogia do espanto



Momentos há em que Lula é capaz de vocalizar o que ou passa por nada menos que preconceito ou — traduzidos os seus juízos no mundo da substância, da história — caminha justamente na contramão daquilo que sua figura simboliza no Brasil e mundo afora



Não houve quem, no Brasil, não reagisse indignado à batatada dita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Namíbia. Primeira Leitura derivou um pouco na reação: optou pela ironia. Pareceu-nos a atitude mais adequada àquela, como dizer?, circunstância patética. Mas é chegada a hora de devolver a bola ao chão. Querem saber? Lula não disse nenhum absurdo. Expressou o juízo de um homem comum, do povo. Fez uma observação baseada no aparelho intelectual de que dispõe: o empirismo.



Ora, o presidente visitou Angola: um pardieiro para a larga maioria daquele povo sofrido, que padece sob o tacão de uma ditadura comunista, controlada a ferro e fogo por uma conhecida nomenklatura tão ineficiente como corrupta. Visitou Moçambique. A mesma coisa, com o agravante de que esse país não dispõe das riquezas naturais do seu parceiro de língua portuguesa. Tinha ido a São Tomé e Príncipe — que só pode ser considerado um país segundo, bem... segundo certos ditames do empirismo! Aí, coitado!, foi bater na Namíbia. E se espantou.



Na África do Sul, se tivesse percorrido certas áreas da Cidade do Cabo, poderia fazer a mesma observação: “Nem parece a África: bonita e limpa”. Ora, é preciso que investiguemos em nós mesmos o motivo do nosso choque com a observação do turista aprendiz (já nem tão aprendiz a esta altura, convenhamos...). Namíbia e África do Sul, dois países africanos que parecem ter algum futuro, não por acaso, são praticamente as duas únicas nações que se tornaram senhoras de seu destino sem passar por guerras de libertação contra ex-metrópoles européias. A luta antiapartheid, por mais dura e sangrenta que tenha sido, consolidou-se com uma transição política, não com uma luta armada, com guerra de guerrilha, que regrediu para conflitos tribais.



O que Lula exalta em seu espanto de turista classe-média, sem que o saiba — e isso deixa os seus colegas de esquerda no Brasil abespinhados —, é a herança deixada pelo colonizador europeu. Os dois países se libertaram dos “opressores” sem que precisassem regredir a uma guerra de características tribais. Mesmo os impertinentes zulus, na África do Sul, aliados objetivos dos brancos pró-apartheid, foram contidos com concessões de natureza política.



No resto da África subsaariana, não-islâmica, as guerras de libertação ressuscitaram lutas anteriores à chegada do capitalismo europeu, mas com as armas fornecidas pela modernidade. No caso de Angola e Moçambique, a clivagem obedeceu a um corte ideológico: a camisa-de-força marxista — marxismo em colônia africana seria de deixar marxista lido de barba eriçada...—, que contribuiu para tornar a vida do povo dos dois países pior do que nos tempos de opressão colonial.



E aqui está, vamos dizer, o ponto nevrálgico do escândalo provocado pelo raciocínio de Lula: se algum país pode, efetivamente, sair da miséria na África não-islâmica e ter algum peso na economia mundial é justamente a África do Sul — e, com menos peso, a Namíbia. E não por causa da resistência dos negros ao apartheid; e não por causa da “herança maldita” (para usar expressão cara ao petismo) deixada pelos antigos opressores. E sim por causa da herança bendita que os brancos também deixaram. Goste-se ou não, o sistema impediu a regressão do país à guerra tribal. Além de sua histórica resistência, eis o que faz de Mandela um estadista de verdade: ele percebeu que o sistema político dos brancos governantes era hediondo porque excluía os negros, a maioria da população. Mas soube a tempo que era preciso compor com seus meios técnicos. Embora com algumas particularidades históricas, a essência do que aqui se diz vale também para a Namíbia.



Lula não sabia. Mas, sem saber, vocalizava um juízo de valor que a esquerda mundial — e brasileira, em particular — considera “de direita”. Durante muito tempo, ser progressista aqui e alhures também era conceder com o banditismo do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola) ou com a truculência da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). De fato, os homens de Jonas Savimbi, da Unita (União Nacional pela Independência Total de Angola), que se opunham ao MPLA, ou os da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), adversária do governo, não eram gente melhor, é claro. Só que o mundo sempre soube e os tratou como bandoleiros, delinqüentes, assassinos. Ao passo que seus inimigos, tão truculentos e venais quanto, eram santificados — alguns com o estatuto de poetas do povo oprimido... Infelizmente, não se viram nem governo decente nem boa poesia. E conseguiram fazer aquela miséria que Lula viu, aquela sujeira que Lula viu, aquela feiúra que Lula viu.



Dito isso, absolvamos Lula pela batatada, que batatada é. A um chefe de Estado e de governo não é facultado olhar com os olhos do homem comum. A rigor, nem mesmo se concebe que o presidente pudesse chegar aos detalhes de leitura política a que aqui se chega, independentemente de qualquer viés ideológico que possa ter. A verdade é que a declaração de Lula, motivada pelos sofrimentos do “homem comum da miséria” evidencia a “miséria do homem comum”. Espantamo-nos com a fala porque nos damos conta de que a rusticidade analítica do presidente, que tanto encanta a alguns acadêmicos, que viam nela certa sapiência telúrica, natural, se choca com a realidade da política internacional, mediada por outras formas de representação — às quais não falta, é verdade, certo componente de cinismo e até de mentira. Os progressistas da simplicidade — na verdade, apologetas do simplismo — dão-se conta de que nem sempre a vocalização do senso comum, que serve ao arranca-rabo de classe interno, veste a roupagem de um discurso supostamente progressista.



Momentos há em que Lula é capaz de vocalizar o que ou passa por nada menos que preconceito ou — traduzidos os seus juízos no mundo da substância, da história — caminha justamente na contramão daquilo que sua figura simboliza no Brasil e mundo afora. Eis a genealogia do espanto.



Fonte: http://www.primeiraleitura.com.br/auto/entenda.phpid=2861"









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