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Contos-->O Furo -- 16/04/2000 - 14:06 (Bruno Ribeiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

"Para Franz Kafka"

Tudo começou quando ele descobriu o furo na parede, quase perto do pé da cama. No princípio era apenas um furo, um pequeno e redondo furo que não servia pra nada mas também não incomodava. Esteve lá durante algum tempo, até que um dia, quando ele voltou do trabalho, notou que alguém havia tapado o furo com cimento. Perguntou para a empregada quem havia feito aquilo. A esposa, naturalmente. Não que ele estivesse se importando com o fato, mas já havia se acostumado com o furo. Nas noites de insônia, ficava deitado de lado na cama, fumando e olhando para o furo. Colocava a brasa do cigarro quase dentro do furo e podia ver o interior. Não havia nada lá dentro, o buraco era muito pequeno, mas ele gostava de ficar imaginando as coisas que poderiam caber dentro do furo. Chegou a conclusão de que quase nada no universo poderia entrar por aquele buraco. Apenas as coisas microscópicas, as moléculas, as bactérias. E também alguns poucos insetos. Quando viu que a esposa havia tapado o buraco, tratou de providenciar outro. Durante a madrugada, enquanto a mulher e os filhos estavam dormindo, ele ia até o quarto de visitas, onde havia iniciado um segundo furo, e ficava cutucando com o dedo até enjoar. Depois, escondia o furo com um quadro e voltava para a cama, ao lado da esposa. No fundo, ele gostava mesmo era daquele furo menor, que ficava no seu quarto, perto de sua cama e que a mulher havia tapado. Mas se ele fizesse outro furo no lugar a mulher com certeza iria notar e iria querer tapar de novo. Nem ele mesmo entendia essa obsessão. De repente, percebeu que o buraco era o que dava sentido para a sua vida. Chegava do trabalho e ia direto para o quarto de visitas. Se trancava nele e dizia que estava com enxaqueca. Ficava lá, admirando o buraco na parede, que estava cada vez maior. Tinha mais ou menos o diâmetro e a profundidade de um copo de requeijão e ele conseguia imaginar milhões de coisas que poderiam caber lá dentro. Não conseguia mais viver longe daquilo. Foi demitido da fábrica, porque estava muito relapso. Na verdade, não conseguia mais se concentrar em nada. Não dava mais atenção para a esposa, nem para os filhos. Não ia mais ao cinema, não ligava mais para os amigos, nada. Só o buraco importava, o buraco era sua própria vida. Dia e noite trabalhava exaustivamente diante do furo na parede. Levava para o quarto de visitas uma colher de sopa e ficava tirando cimento do buraco, que aumentava a cada dia. A mulher chorava muito no quarto do casal, achando que ele estava saindo com outra ou que ele havia perdido o interesse por ela. Nem uma coisa, nem outra. Ela era menos atraente que o buraco, simplesmente. Quando estava para amanhecer, ele escondia o buraco com o quadro e ia para a cama do casal. Era o mesmo ritual todas as manhãs. Um dia, ele percebeu que não dava mais para esconder o buraco. Ele havia ficado muito largo e muito profundo. Tanto que, às vezes ele colocava a cabeça dentro da parede e ficava horas e horas pensando, quase dormindo, sentindo o cheiro do cimento úmido. Mas quando ele notou que não daria mais para esconder o buraco da família, trancou-se no quarto e disse que não iria sair nunca mais. Que estava doente, uma doença contagiosa e incurável, que o médico o aconselhara afastar-se da família. A empregada deixava a comida perto da porta duas vezes ao dia. O buraco havia ficado tão grande, que ele já vivia dentro dele, não saía mais pra nada. Vivia como um bicho, defecando dentro do buraco, dormindo o dia inteiro dentro da escuridão e da umidade. Os amigos tentaram convencê-lo a sair, mas ele não saía, não dizia nada. Vez ou outra os amigos e a família ouviam um grunhido. Achavam que ele desaprendera a falar, mas ele apenas não tinha vontade de falar com eles; não havia mais nada para ser dito, as palavras não faziam mais sentido algum. Com o passar do tempo, foi sendo esquecido pelas pessoas. Não perguntavam mais por ele, ninguém mais se preocupava, nem os amigos mais íntimos, nem os parentes mais próximos. Ninguém. A única que ainda pensava nele era a esposa. De vez em quando, deixava a comida perto da porta e colava o ouvido na fechadura. Ficava lá por alguns minutos, tentando ouvir a respiração daquilo que um dia, fora seu marido. Sofria por ele. Será que sente frio ? fome ? solidão ? Mas não. Ele não era mais humano. Ele havia se fundido à parede. Agora fazia parte do interior daquele buraco. E ele nunca esteve tão feliz dentro do infinito abandono. Era o próprio feto no interior do útero, ele e o buraco faziam parte de uma coisa só. Quando os filhos se formaram, foram morar em outra cidade. A mulher, depois de muitas crises de depressão, casou-se com um ex-amigo de infância e vendeu a casa para um velho surdo, que colocou um piano na frente da porta do quarto. Nunca mais se ouviu falar dele. Era como se nunca tivesse existido, como se não tivesse passado pela vida, no absoluto esquecimento, dentro do seu buraco.


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