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Artigos-->O Tempo - Crónica da Cidade Grande -- 21/11/2003 - 22:04 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O Tempo - Crónica da Grande Cidade





No enclaustro de mais uma semana de trabalho, este desfilar dos dias arrasta-nos para além de nós como quando num comboio somos inexoravelmente afastados do sítio de onde partimos. Vejo tão depressa passarem os dias, como me vejo conduzida por eles sem nada poder fazer para alterar o seu curso. A seguir a um Domingo virá uma Segunda e é inevitável que se lhe siga mais uma terça e depois uma quarta já em descida para o fim de semana. Em breve diremos: foi mais um Outono. E daremos por nós cada vez mais frequentemente a dizer: naquele Outono... Entramos talvez no momento mais precioso e delicado das nossas existências: começamos a perceber o valor real do tempo e a entendê-lo como a moeda de troca da nossa vida. Este é assim um bem tão precioso como a água ou o ar ou a verdadeira evasão, esta cada vez mais afastada das nossas vidas organizadas e responsáveis. E se tudo se desenrola vertiginosamente na nossa vida, sentimos, sinto, que há que travar o tempo inútil, o tempo que passou para nada, aquele que perdemos na fila do IRS, ou dos correios, ou no Trânsito, ou no médico. Aquele tempo que nada trouxe, nem um momento de reflexão, nem de sereno repouso, ou uma simples ideia. Ter tempo para ficar a olhar o mar em cada dia, ou para me perder no fresco arvoredo da serra. Tempo para visitar a minha casa entre os pinhais, ou a solidão da minha mãe em terras de além-Tejo. Ter tempo para dar forma e expressão às metáforas que florescem no coração e escrever todas as histórias que nos povoam, e contá-las e lê-las às crianças nos seus sonhos... Por isso, porque o tempo se escoa numa ampulheta oculta em nós, quando voltei à grande cidade, na passada semana, por obrigações dessas de improdutiva espera, persignei-me e decidi que não haveria de ser uma perda de tempo. Resolvi absorver da cidade o seu melhor e trazer momentos recheados de novidades para saborear com tempo. E foi no Chiado que almocei, um mero acaso, nada produzido por mim, nem coincidência, mas um almoço que fará história nos meus dias e foi marcado para ali. Brasileira à 1 hora da tarde. Eu esperando, com vontade de me sentar ao lado do meu poeta, mas sem me sentir no meu espaço, nem me lembrar de jamais ter visto alguém ali sentado. E depois as pessoas sentadas mirando os pombos, esses no seu lugar, pessoas passando sem os ver, provocando autênticas revoadas

e uma mulher que se aproxima de mim, para me perguntar perigosamente próxima do meu espaço se eu gosto de literatura. Se gosto de literatura? Um sorriso. Estará escrita na cara de desconhecidas tímidas que observam quem passa o gosto pela literatura? Olhei para o meu poeta e confirmei. E ela, então, pede-me para lhe dar uma opinião sobre os seus poemas. Para breve a sua publicação, diz-me febril, citando nomes e editoras interessadas. E eu leio, de pé entre encontrões de gente cega no seu rumo. Depois, quando me vê sorrir, pede-me que lhe compre um exemplar fotocopiado dos vários que traz numa sacola. Até ilustrei um deles, diz, e insiste que veja um desenho pueril em traços violeta. Reparo no cansaço do seu rosto e na perturbação do olhar demasiado franco e luminoso para os gestos inseguros que a fazem espalhar as cópias pelo chão e o conteúdo da bolsa, uma infinidade de pequenos papéis, talvez facturas de galões e sandes e a atrapalhação já faz de mim o seu apoio, eu também já no seu mundo, procurando afanosamente que nada voasse do seu inútil espólio.

Assim me encontra quem vem almoçar comigo. Abraços, a confusão maior ainda, ela que não quer perder a posse do seu interlocutor e pede-me uma exorbitância pelos seus poemas, que sendo originais e assinados, em breve aumentarão de valor após publicação... Modiggliani enfraquecido pela fome, nos seus últimos dias de vida vendendo as suas obras pelos cafés; Camilo escrevendo febrilmente dia e noite para sustentar Ana Plácido e os seus filhos, Camões apodrecendo com a sua tença de soldado, Fernando Pessoa olhando-me complacente do fundo do tempo ? e eu que decido propor-lhe uma quantia razoável pelos seus escritos. Porquê? Porque lhe admiro a coragem, a inconsistência dos gestos, a força do verbo e a fome que lhe assoma ao olhar, fome de atenção, fome de falar, se não mesmo algo mais a que outros chamariam loucura. E talvez porque ainda não criei anti-corpos de indiferença em relação à grande cidade e ao seu oculto rosto. Deixo aqui um bocadinho desta poetisa de rua que vende poesia para afastar o medo. E o tempo ri-se já de nós duas, como se riu de todos os outros que julgaram cristalizá-lo na redoma das palavras.



"Conto da Ausência II



Decomponho musicalmente um baralho de cartas,

Porém, não encontro a sequência melódica para te

Reencontrar...

Os trunfos são copas, oiros, espadas aguçadas,

Resultando em emoções descoordenadas, paus

Trilhados no quarteirão do vazio. De longe avisto

O rio.

Dispo a pessoa que sou, visto um uniforme de

passividade e assim mergulho na escrita o único

colo onde existem refúgio e liberdade.

Cavalgo ondas de cor vermelha, e anulo o que fui.

Se a beladona fosse uma flor ?verdadeira?,

Deparar-me-ia com uma bandeira que não

sinalizasse perigo, mas sim, o poder de estar

sempre em paz comigo mesma e contigo!"



Tila Ramos





Não desperdicei tempo na minha ida à grande cidade, cadinho de todas as fomes. Serviu pelo menos para concretizar o sonho de alguém. Que ela me possa ler neste momento e sinta que não vale a pena desistir dos sonhos, nem temer a voracidade do tempo, ou a indiferença de quem desaprendeu a ser igual.



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