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Contos-->Os passos do pé direito -- 01/11/2001 - 01:54 (Eduardo Henrique Américo dos Reis) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Como uma simples referência a um ponto, lugar longe, imaginário ou fora de alcance do presente espaço em que atuamos, já ouvimos através de ditados ou expressões populares histórias sobre a cena desta nossa narração.
O leitor, como o principal viajante, poderá coordenar o local preciso dos acontecimentos narrados aqui, sendo livre para imaginar-se em qualquer sítio, chacará, fazenda ou casinha humilde longe dos grandes centros urbanos espalhados pelo mundo.
Entitule este ponto como quiser, pois devido à falta de informações omitiremos a relação do local com as botas de Judas, a esquina do vento, o orifício pelo qual o mundo desfaz-se de seus dejetos ou coisa que o valha.
Sabemos que as grandes concentrações de seres humanos foram semeadas através do próprio desenvolvimento destes, grupo do qual este que vos narra e você, nosso nobre viajante, também fazem parte.
Para finalmente darmos início à essa história lembraremos de alguns detalhes que, num futuro próximo, podem ser de maiores valores no complemento de nossas informações.
O ato de caminhar, por exemplo, apostamos que o nosso caro viajante sabe o pleno significado desta combinação de letras, não resguardando sequer uma única informação nova sobre a ação de locomover-se utilizando seus próprios meios.
Também não apresentamos nada de novo dizendo que ao apontarmos uma determinada idade em nossas vidas acabamos por perder boa parte da capacidade lógica acumulada no decorrer dos aprendizados biográficos.
Pois bem, o personagem principal do fato ocorrido e a partir deste momento nosso companheiro é um senhor já passado da meia idade, morador de um lugar qualquer, residente numa casinha feita pelo esforço dos próprios punhos, agora cansados da jornada da vida. Punhos estes que já não possuem forças para alimentar o velho estômago deste esgotado trabalhador.
A velha casinha no lugar qualquer é cercada por grama alta e descuidada. Poderia não ser desta forma caso o narrador não houvesse assassinado, com ajuda da seca e do calor de verão, doze das quatorze vacas residentes na propriedade de nosso companheiro.
Do lado esquerdo se encontra a porteira e uma estreita estrada de terra que segue poeirenta até o horizonte. De frente, a vista de uma bela floresta montanhosa, imagem esta que, sem dúvidas, nosso companheiro já sente enjôo ao observar. Atrás, simplesmente capim seco e ossos da boiada morta.
E finalmente o lado direito, onde situa-se um atalho de descida até o rio, uma árvore de tronco forte e frutas vermelhas e como pano de fundo mais florestas montanhosas, usadas agora unicamente para suprir a falta de criatividade do narrador e irrelevância da característica.
Poucos pássaros cantarolavam na manhã daquele dia, nosso companheiro já preparara o café. Posto sobre a mesa de madeira nobre e acompanhado de fatias de queijo, o velho solitário beijava calmo a ferrugem do jarro para degustar do líquido preto.
Sem interesse em adiantar os momentos da vida, nosso amigo sempre guiou seus horários por um método prático. Claro. Escuro. Chuva forte. Chuva fraca. Sol forte. Sol fraco. Nuvem.
Ao acender a vela aos pés da cama de palha observava todas as noites a dança das luzes do fogo refletindo nas paredes foscas da casa e ao ajoelhar-se implorava aos céus para nunca faltar-lhe comida.
Pedida a proteção, nosso velho companheiro, fazia suas orações de paz e agradecimentos. Caso o nobre leitor não se lembre, nosso amigo é um velho solitário que, ao contrário de nós, não ocupou sua vida aprendendo a ler, escrever, empanturrando-se de guloseimas e assistindo TV. Ele não possuía informações sobre a guerra, nem ao menos um rádio à pilha ou uma geladeira.
Os acontecimentos mais marcantes desde sua existência foram, primeiramente, a morte da mãe e logo em seguida, uma picada de cobra que o fez perder dois dos dedos do pé direto.
As botas de couro defendem nosso herói da imagem triste do pé deformado pela fatalidade já narrada. Todos os dias, depois de beijar a ferrugem com sabor de café, ele vestia as botas e descia até o rio. Fazia isso sempre quando não vinham as chuvas fortes. Tratava dos animais ainda vivos da mesma maneira que uma mãe recém dada as crias sorri ao ver as crianças engolindo os bicos dos seios afogando a fome.
Nos fins de tarde, naquele momento poético quando o sol despede-se para ir libertar-se da fadiga, o velho o acompanhava. Tirava os sapatos, caminhava através de seus próprios meios, ou pernas se preferirem, até a árvore das frutas vermelhas. Curtindo a derradeira sombra antes da escuridão provava daquela fruta.
Essa fruta vermelha de sabor agradável à maioria dos paladares é rica em líquidos. Talvez isso não nos tenha importância, mas nunca sabe-se quando uma futilidade pode tornar-se sabedoria. Ora, convenhamos que isto ocorre todos os instantes.
Nas noites claras, atrasava um pouco o sono e as orações para ficar observando da janela de seus aposentos o suave reflexo da lua sobre a água do rio. O som das águas ameniza a rotina. E é de preferência do nosso companheiro se este efeito vier de braços entrelaçados com a brisa nas folhas da árvore da frutas.
Suponhamos que nesta região, em tempos de calor e graças às florestas montanhosas, assim como nos vales, formem-se grandes correntes de ar que penetram o vão dos grandes calos cobertos de mata fechada exatamente para atingir os galhos do nosso pé de frutas vermelhas e saborosas.
Em todas as noites claras lá estava ele, debruçado no peitoral da janela observando todo o lado direito da casa, o atalho, a árvore, o rio, todos deliciados com a alegoria dos ventos e da lua.
Conforme os dias iam se passando o velho, talvez por causa da idade ou por algum motivo de força maior, sentia-se cada vez mais cansado ao ir colher da gostosa fruta no pé.
As costas já não eram as mesmas de quando a mãe ainda exibia contente a falta de dentes pela casa. O defeito no pé direito não era motivo para doer mais do que o esquerdo. E as mãos, rachadas pela história da vida, já não se prendiam com firmeza aos galhos.
Então, sabendo não mais pertencer ao grupo de garotos levados e fortes para o trabalho, o nosso velho companheiro deixou de manter os costumes antes comuns.
Vez ou outra rumava pelo atalho até as margens do rio. Colhia umas frutas e pescava o necessário para alguns dias. Preocupava-se ao máximo em estocar a comida. O único dos velhos costumes que continuou exercendo foi recolher-se aos aposentos e ficar a admirar a vista do atalho, da árvore e do rio.
Todo dia lá via-se nosso herói, debruçado no parapeito de braços cruzados olhando para a mesma imagem que, ao contrário da frente do casebre, ele não enjôa de contemplar. A vista do lado direito parecia mudar a cada dia, poderia ser um máximo e reparável detalhe que pelos olhos experientes do velho de qualquer forma, nunca seriam notados, mas somente sentidos.
Diferente do que se pensava, as orações e pedidos de nosso companheiro um dia foram negadas. E foi exatamente quando faltaram-lhe forças para locomover-se através de seus próprios meios, ou caminhar se preferirem. A doença atingiu o nosso amigo, que durante duas escuridões da noite ficou desacordado.
O caro amigo, leitor e viajante deve estar se perguntando qual a razão de tanta desconversa, mas o vosso amigo aqui lhes garante que nada é tão ilógico como a natureza, a vida e a insanidade humana.
Ao despertar no sol forte após duas escuridões, o velho impedido pela fraqueza de caminhar livremente, transitou pelos cômodos arrastando-se pelo chão empoeirado. Não encontrou nada mais do que um pequeno pedaço de queijo velho jogado sobre a mesa.
Sofrendo de fome, fraqueza e transtornado por uma violenta tontura, o velho solitário pensou em uma única forma de sobreviver. Alcançar as frutas do pé do lado direito da casa.
Mas o nosso velho e frágil amigo que observara calmamente todos os dias a mesma imagem por sua janela, sentia, mas não notara o injustiça que lhe acontecia. A diferença diária daquela mesma paisagem era desapercebida. Até mesmo quando a saúde ainda lhe acompanhara até o pé direito de frutas vermelhas, não notara o crescimento do trajeto e o cansaço maior em cada caminhada.
Olhando pela última vez para aquela imagem emoldurada pela janela do quarto, viu que a árvore de frutas vermelhas havia caminhado ao outro lado do rio. E assim termina a história de nosso herói que sobreviveu a solidão da vida e desistiu dela sem nem ao menos suspeitar dos delírios da mente humana.
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