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Contos-->Vestido preto -- 03/11/2001 - 01:29 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não consigo resistir. É uma coisa que talvez tenha correlação com um passado funesto. Não sei afirmar a causa. Desconfio, porém não consigo confirmar. Mas o vestido preto, realçado pelas meias-finas escuras, curto ou longo, grudado ao corpo ou largo, tanto faz, excita todo o meu corpo. O tecido não importa. Pode ser cetim. Pode ser chita. Qualquer coisa, eu não ligo. O fato é que não posso ver um vestido preto. Sempre achei que fosse uma neurose. Mas não era. Dane-se a opinião dos outros! Não sou tarado, longe disso. É apenas meu fetiche. Não foi à toa que me apaixonei pela freirinha Lurdes, na infância. Seu rosto alvo, sua pele sedosa, aquele traje preto me seduziram ao ponto de eu não me interessar por nenhuma garota da minha idade. Carreguei esta paixão por anos. Uma paixão singela, única, sigilosa. Ninguém entenderia esta minha paixão. Cresci com ela. Morrerei com ela. Ninguém precisa saber.

Todavia, sempre controlei meu ímpeto. Tenho 43 anos e divido meu apartamento na Praça Roosevelt com meu gato Homero. Trouxe para minha casa algumas mulheres e nunca exigi que elas usassem trajes negros. Aliás, a maioria delas sempre estava colorida. Rosa, pínk, verde-limão. O branco predominava. Mamãe se vestia de preto para ir às missas na igrejinha da Vila Palmeiras. Levava-me à tiracolo com meu terninho azul-marinho. Cores revelam a personalidade das pessoas. Eu acho. Acho tantas coisas na vida... Nunca tenho certeza de nada. Vivo para questionar as coisas. Cheguei à conclusão de que nada é uma certeza absoluta. Era incrédulo quanto a destino traçado. Até o mês passado. Pelo menos até o mês passado.

Há duas coisas que nunca joguei fora na vida: minha coleção de figurinhas de jogadores da seleção e dinheiro. Eu lecionava Inglês na capital, numa escola de renome, tradicional, respeitada. Um dos diretores pediu-me para cobrir a licença maternidade de uma professora do interior. Sete, oito meses distante da minha terra. Pensão e alimentação pagas. Mais um extra de 20%. Topei na hora, sem fazer charminho. O único problema era Homero. Desde que minha tia Raquel morrera, a única pessoa capaz de cuidar do meu gato era o Toninho – zelador do prédio. Acontece que ele tinha uma pastor alemão enorme, que vivia babando, que vivia atrás do felino. Era um Deus-nos-acuda toda vez que o levava para passear. Não podia deixar a chance escapar, entretanto. Em São Paulo há hotéis para animais, só que eu não confiava em nenhum deles. E, além do mais, se hospedasse Homero num lugar desses, os 20% a mais iam para a casa do beleléu. Dei uns trocados para o Toninho. E obtive a promessa de que Conan ficaria bem longe. Muito longe...






Quando era adolescente sonhava conhecer Londres. Ou, se não houvesse outra opção, Nova Iorque. Nunca guardei dinheiro suficiente para embarcar para uma dessas cidades. Fora o litoral de São Paulo, jamais tive oportunidade de sair daqui, da capital. Araçatuba não era um nome estranho. Fui um bom aluno de Geografia, na infância e adolescência. Fui para lá. Cinco meses depois de minha chegada para cobrir a lactente, e antes do previsto, fui recrutado para dar aulas na unidade de Campinas. Justamente quando estava me habituando aos costumes da cidade, tinha de abandoná-la. Fui à rodoviária na sexta-feira e comprei uma passagem para o domingo de manhã. Os amigos do colégio marcaram uma despedida no bar do Leônidas, na praça da Matriz. Iam todos os professores mais o dono da franquia. E alguns alunos. Aqueles alunos mais fuleiros que freqüentam as aulas mais por obrigação do que por vontade de aprender a língua bretã. Sempre detestei festas. Festas de despedida conseguiam ser piores, porque alguns bêbados faziam questão de discursar alguma idiotice. Entretanto, notei nas pessoas que organizavam alguma sinceridade. Então topei e fui um dos primeiros a chegar. Além da pieguice dos companheiros, teria de aturar os jovens estudantes, a me paparicar diante dos outros professores, na esperança de alcançarem as notas desejadas por seus pais. Enxergo a vida de um modo negativo, é inevitável. Tomei um copo de chope, para não contrariar os amigos. Vi o mundo girar. Tudo ao meu redor parecia fictício. Dei algumas gargalhadas, coisa incomum. Os convidados foram chegando, aos poucos. Senti saudade de Homero. Desejava que aquela sexta-feira passasse sem que eu percebesse. Ameacei levantar da mesa mais de uma vez, porém os companheiros não deixaram que eu fosse embora. Aleguei que estava cansado e que ainda não tinha arrumado as malas. Não teve jeito. Fiquei.

Quando estava no segundo copo, ela apareceu. Minha íris enxergou primeiro o vestido preto, curto, decotado, realçando as pernas e os seios alvos. Uma mulher imensa, catapultada pelo salto do sapato fino. Parecia uma gigante. Os olhos muito claros, vívidos, vasculhavam o ambiente. Carregava uma bolsa discreta, que combinava com os outros trajes. Era tão esguia que parecia não existir. Maria Rosa, minha irmã, encontraria algum defeito naquela deusa. Eu não encontrei. Ao seu lado outra garota, bem mais baixa, sorriso aberto e franco – contrário à inibição da dama de preto. Vieram me cumprimentar.

- Oi, professor! – disse-me a acompanhante da menina de olhos verdes. Essa aqui é minha prima Andrea, de São Paulo. Vai ser doutora!...

Fiquei mudo. Só então reconheci Fatiminha, minha aluna do turno da tarde. Estendi a mão para Andrea. Deu vontade de entrelaçar minha mão em seus dedos esguios, longos, atraentes. Ela simplesmente sorriu. Pedi mais um chope. Nunca me dei bem com bebidas alcóolicas.





Meia hora depois as duas desapareceram. Discretamente, perguntei a um amigo onde estavam as moças que chegaram por último. “Foram embora. Foram a uma festa.” Desolei-me. A praça começou a rodopiar, sem que eu desse permissão. Não reconheci mais os rostos das pessoas que estavam ali para me homenagear. Cadê o vestido preto? Procurei-o com o afã de quem busca água no deserto. Que porra de festa era aquela? Quis bater de porta em porta para saber onde estava Andrea. Os amigos me contiveram. Vomitei. Vomitei tudo o que comi e o que bebi. Só não vomitei a dor de não ficar com Andrea, andando pelas ruas largas de Araçatuba, sem pressa, sem vontade de voltar. São Paulo é uma cidade imensa. Onde encontrar Andrea?
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