torvelino
Fora a folha que me desforra,
afora o lápis em que seguro
sou o marco de minha vida,
a via e o limite que me retém.
Há dias que não escrevo e
escrevo os dias num diário imaginário,
inimaginável e existente no
ranço que me provém e, que,
portanto, venho por ser um escravo.;
sou um filho da memória.
Me esqueço de palavras dóceis,
me detenho na aspereza de
lógicas cabalísticas
de canibais da língua e da linguagem.
As palavras que agora me arrebatam
são sempre desordenadas. Não partem de uma consciência clara,
de uma límpida razão, mas do obscuro e do inatingível
de uma desrazão, uma não emoção,
o nada.; do nada que nos cerca e
que me envolve. O lápis corre na
folha e deixa escorrer o lastro que
a faca transformaria em sangue:
a tinta desordenadamente na folha torna-se uma vereda
de gotas que resvalam não pelo corte ou a cisão que provoca,
mas pelo corpo da escrita que se emancipa num corpo de ossos.
A linguagem corta como lâmina.
Na escrita o corpo sangra
sem derramar o plasma, sem jorrar,
porém rebentando vida em cada palavra de morte.;
mortificando o homem-personagem-de-papel dá-lhe a morte
vida na posteridade, em folhas numeradas, amareladas, tipografadas.;
velhas legendas transformadas em ícones preenchem o extenso labirinto,
limítrofe de duas abas,
paredes de celulose que cercam e dão margem,
à margem de uma sociedade que serve a uma Literatura,
a uma escrita,
a um meio de difusão de si própria,
vive a letra, escarlate,
púrpura.;
o crime de um padre.; o castigo para os amantes. O espectro do amor
vive intempestivo, sobrevive impetuosamente entre as páginas,
por entre as linhas de um romance.; de uma novela.;
no folhetim índio e burguês se encontram,
se amam,
se constróem um ao outro.
O amor está entre as folhas, no limite de capa e espada,
até que o FIM provoque o epílogo
e o preâmbulo de um amor que se reinicia a cada leitura,
a cada releitura o amor se renova,
nasce na retina de um leitor, amadurece
e na verdade, não morre.
A linguagem corta como lâmina,
porém a precisão do bisturi cabe à palavra.
Passa-se o tempo
emadurece o leitor,
morrem leitor e tempo num espaço vazio e inconoclástico.
Vive a palavra porque traspassa a cronologia de uma época.;
a areia fina do deserto cheio de descrições e magias plásticas,
transformados homem tempo e espaço no objeto onírico da arte,
inviabilizada pelo deserto de uma moralista e reacionária sociedade,
a destruidora de tempos mórbidos,
responsável pelo embalsamento de uma época
que se transforma,
mas como artífice da linguagem plástica, sonora, narrativa
deixa as marcas de um tempo,
a impressão de uma época,
o registro da manifestação de um povo.
A língua corta como lâmina,
porém à palavra ...
A palavra.
Ainda não é o fim. |