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Contos-->A desdita do bancário ensaboado -- 23/11/2001 - 20:00 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A desdita do bancário ensaboado






Deu de engordar o Aparício.
Aos primeiros sintomas, logo se viu não se tratar de gordura alarmante, perigosa, a submeter seu portador ao alcance do ridículo e aos riscos do enfarte. Também não se poderia considerar a humilde barriguinha prenúncio de banhas fartas, suarentas, das que estouram botões, arrebentam cós de calças, inutilizando roupas e criaturas. O parcimonioso aumento de peso chegado a Aparício aos quarenta e cinco anos de idade seria mesmo imperceptível ao exame mais apressado, sequer disfarçava a dança de ossos que lhe aparecia sob a pele ao menor movimento. Mas, apesar de poucas, banhas suficientes para engordar de otimismo o mais sombrio dos magrelas.
Em Aparicio, as gramas acrescentadas também corroboravam a certeza de que tudo mudara, nada mais existia como antes, nem ele com seu feitio seco de arenque defumado, nem a vidinha doméstica que lhe deixara de sorrir, e sabia a fel, nem Esmeraldina, cujo amor, tinha absoluta certeza, fora para o brejo.
Seu mundo ampliara-se, mais que ele.
Deitado na cama, Aparício apalpou-se, correu os dedos sobre as dobras das nádegas, mediu a espessura das coxas, avaliou a textura do tríceps, do bíceps, sentiu-se mais consistente, mais cheio de carnes, e mais vazio de sentido ficar ali se apalpando.
Tinha certeza. Chegara o dia da esperada decisão.
Às cinco e trinta da manhã, ao primeiro toque do despertador, Aparício saiu da cama para mudar de vida, para não mais voltar àquela cama.
Esmeraldina ressonava, inocente, com a inocência e o sono assegurados pelo lexotan.
Cardíaca e notívaga, a discretíssima senhora varava as noites lendo às escondidas do marido as seções de carta das revistas eróticas. As imagens evocadas pela excitante leitura costumavam deixá-la assaltada por umas febres esquisitas, por umas fantasias inconfessáveis, e na solidão das madrugadas transpirava e tinha idéias de suicídio. Aplacava-se com dois comprimidos de lexotan, e se aquietava imaculada até às 10 da manhã, hora de levantar-se.
O casamento de vinte anos não produzira filhos.
Homem de costumes extraordinariamente regulares, o bancário Aparício levantou-se para a arrojada empreitada. Mandaria às favas tudo quanto o reduzira a simples e fidelíssimo esposo e a dedicado gerente-adjunto da agência suburbana do Bradesco.
Mas, tanto se apegara às repetições do dia-a-dia, que delas se tornara dependente.
Ia mudar. Certa rotina, porém, seria observada: - não vejo motivos para agir diferente, por que não? o método forma o homem, subi na vida firmado em alicerces, mudo o rumo, a base fica, não abro mão do meu eu, pensava.
Começava o dia cuidando do seu eu, malhando.
Esfalfou-se nos alongamentos, na vigorosa dança do ventre, para dar flexibilidade aos quadris, para incentivar a irrigação sanguínea nas melhores áreas masculinas.
Saltitou, flexionou-se, agachou-se.
Gastou a próxima hora e meia nas abluções: pela ordem, vieram os cuidados com os dentes, a escovadela demorada, o fio dental francês fazendo o enérgico vaivém nos intervalos dos caninos e molares, o spray importado da China vaporizou a geladíssima menta para amenizar o hálito. A barba foi escanhoada com a última novidade em matéria de barbeador elétrico. Depois, a vez dos cuidados com os cabelos e demais pêlos e pentelhos: das sobrancelhas, penteados; do sovaco, desodorizados; do púbis, catados (temia os chatos, se infestara numa farra na mocidade), das narinas e orelhas, aparados, porque não as queria felpudas como de um mico; no sanitário, esvaziou-se; colocou-se sob a ducha boiler, com tampões americanos nos ouvidos para evitar infiltrações de água nos pavilhões auriculares.
Pesou-se na balança digital:
- Ótimo! - disse. Sessenta quilos ao portador, à portadora.
Chegar aos sessenta quilos para o bancário Aparício culminava o rendimento diário de cinquenta gramas, em média, atingira a cota pré-fixada, o corpo desenvolvera seus próprios mecanismos de overnight e fundo de renda fixa, chegara o dia do resgate, a data fatal do reembolso, o dia de dar o fora.
Para cair na gandaia, conhecer o lado bom da vida, se libertar enquanto você é moço, cheio de saúde, charmoso, da vida nada se leva, filosofava, insistia a amada Dorita.
Para se livrar do insosso casamento; da obrigação de ser flexível para com a clientela rica; inflexível para com a arruinada; indiferente para com todos os desvalidos.
Para mandar à merda a gravata. Para mandar à merda todas as gravatas!
Dia de ir embora. Antes, apanhou os sais e colônias, folheou o caderno de economia e o noticiário de TV de O Globo, ligou o celular, encaixou no som o CD do Pavarotti cantando a Nessum Dorma, da ópera Turandot, espichou-se na banheira de hidromassagem, abandonou-se: foi ao Scala de Milão, fez dueto com Pavarotti, concedeu bis - diminuiu o volume do Pavarotti, solou a ária a pedido da platéia -, voltou ao aborrecido cotidiano, disparou telefonemas para a agência e se inteirou dos mesmos expedientes diários. Despediu-se com um até já mentiroso.
O relógio à prova d’água de quartzo marcava dez para as sete.
Às sete, pontualmente, a meiga Doraci chegaria. De Inhoaíba.
Aparício a aguardava, com incontida ansiedade. Havia seis meses, desde que viera trabalhar na casa, Doraci levava-lhe o café fresquinho na banheira, e lhe tornara em sessões do mais desvairado prazer a segunda parte das abluções.
O bancário e o marido extremoso escorreram pelo ralo. Doraci ensaboara o novo Aparício.
No princípio, ela entrara tímida no lar dos Aparício (sobrenome de família, o prenome ele o escondia: Evanildo). Com o passar dos dias, vencidos os primeiros instantes de timidez e recato, a moça se afeiçoara aos costumes do patrão, e o fazia com crescente desembaraço e competência.
No primeiro dia de contrato, ao receber ordem para servir o café matinal ao patrão na banheira, Doraci reagiu feio, indignada. Disse que não queria mais o emprego, está pensando que eu sou dessas, manda sua mulher levar, não se enxerga?, chorou.
Persuasivo, Aparício falou-lhe dos novos costumes das casas modernas, afinal, como vou adivinhar que o café taí? o banheiro é enorme, fico lá dentro d’água curtindo meus momentos de paz e sossego, e de solidão, te acho uma moça simpática, seria o último a querer te desrespeitar, podia ser minha filha, entre como profissional, cumpra sua parte, e saia, nem precisa me olhar...
Na quarta vez, Doraci entrou com o café e aspirou fundo, que perfume gostoso, é da Avon? tenho uma prima vendedora da Avon, o senhor querendo eu faço encomenda, estou dando uma força pra ela, o marido ficou desempregado.
Vieram dois vidros de colônia, quatro de sais aromáticos para o banho, duas loções de barba, uma caixa de desodorantes. Aparício deu um pré-datado, o troco é seu, só peço a você pra guardar isso no seu quarto, vai trazendo aos poucos, fica entre nós, não conta nada para Esmeraldina, você entende essas cismas de mulher ciumenta. Ciumenta e chata.
- Muito chata - Doraci reforçou.
Doraci revelou completos dotes de massagista, calista, cabeleireira, aplicava do-in e acupuntura, ensinava yoga, era hidrosexiterapeuta, Aparício reconhecia.
Nenhuma outra mulher dedicara-se com iguais desvelos aos seus cabelos, pêlos e pentelhos.
Só reclamava um pouco do gosto do sabão.
Às sete e cinco no prova d’água de quartzo, Doraci entrou de shortinho, no auge da Nessum Dorma. Levou bandeja repleta de café, queijos, uvas, geléia de mocotó, biscoitos, sustage, nescau e torrada petrópolis. Mais um pacotezinho nas mãos.
- Pra você, bem - avisou, mostrando o embrulhinho: - Pra nós. Bom dia.
- Oi, querida. Beijo.
Beijaram-se durante um agudo do Pavarotti.
- E aí? - ela perguntou.
- Sessenta quilinhos. Chegamos lá. Adeus, meus complexos!
Ela riu, gostosamente:
- Bom de cálculo, hein, meu filho! Decidiu?
- Claro. Não te prometi? Chegou o dia. Renasci, graças a você.
- Vim preparada. Trouxe roupas, avisei em casa. Estou tão feliz!
- Comprei as passagens, reservei hotel em Guarapari. Deixo o carro, tudo pra ela. Ficamos por lá, já amarrei negócios na cidade. Sociedade em revenda de carros usados. Que embrulhinho é esse?
- Iogurte, sabor de acerola, uma delícia...
- A saideira?
- Não te prometi? Estou te achando triste, pra baixo, logo hoje. Come biscoito, bebe o nescau, fofinho.
- E não é pra ficar dividido? São vinte anos de casamento, vinte e um de banco que jogo pela janela, por você.
- Loucura. Escoa a água. Nossa? Já?
Ele desligou a hidromassagem, esvaziou a banheira. Doraci prometera, o iogurte sabor de acerola na ponta dos dedos dela espalhava-se no corpo dele, uma maravilha de gosto, ela disse, veio gelado, está me dando umas cócegas danadas, vai devagar, é bom pra você?, ele ria, ai, eu prefiro, sabão me dá afta, ui.
Dona Esmeraldina, ao contrário do marido, sofria de inconstâncias, sempre alterava os próprios horários. Acordou às oito.
Aparício e Pavarotti, em uníssono, prometiam a Turandot revelarem o segredo proposto pela enigmática princesa: - Tramontate, stelle All`alba vincerò! Vincerò! Vincerò! Vincerò!
Gostou?, Doraci quis saber, por você rompo todas as minhas barreiras viro devassa cê gosta?; do cacete, Pavarotti tem uma voz do cacete, ele grunhiu; posso fazer um pedido? unzinho só, minha vez de ouvir, me faz a vontade, bota um pagode, Doraci gostava da banda Cravo e Canela.
Levara o CD.
Dona Esmeraldina cismou aí tem coisa, deu de engordar, nunca mais me procurou, e ainda se esgoela nessa cantoria? cadê a sirigaita?
O squindimbum do samba paulista sacudiu o casarão, Esmeraldina se arroxeou com um abrasão no peito, mil jararacas ferroaram-lhe as entranhas, lá vem o negão, cheio de razão, te catá, te catá, te catá, pouca vergonha debaixo do meu nariz?
Por baixo das pilhas de play-boys ficava o revólver calibre 32, miúdo como um bibelô, cabo de madrepérola azul, para uso de madames.
- Me amarro em pagode, rap, timbalada, axê-music, na banheira escorrega, me segura, me agarra, assim, ui, você não presta, te catá, te catá, te catá, aí não, cheio de tesão, te catá, te catá, mais.
Esmeraldina voltou da porta: ai meu Deus onde botei o lexotan? não enfrento essa situação sem ele, estava aqui, onde ando com minha cabeça a caixa na minha mão nem vi.
As unhas de esmalte grená cintilante cravam na cartela do medicamento. Dois comprimidos se despregam, em pedaços. Vão à garganta, num gesto brusco e definitivo, como quem agride a própria boca. Os caquinhos descem goela abaixo para serenar os nervos em pandarecos. Menos um, o diacho do caco renitente e pontudo, que encravou no goto. Seguiu-se o engasgo medonho.
Madame estacou no corredor, entalada, o entupimento logo esfriando o ímpeto homicida. Muda, estuporada, passou do vermelho ao roxo, com dispnéia de enforcado. Fez força para gritar, soltar a cascata de xingamentos, emitiu fiapos aspirados de ar comprimido. Suada e pastosa, tossiu, vomitou, soprou ventos matraqueados
Correu ao quarto à procura do leque chinês para se abanar e dissipar o fartum.
- Vem gente aí - disse Doraci, recolhendo as roupas, encharcadas em consequência das estripulias na hidromassagem.
Escapuliram pela porta dos fundos: foi um tal de ajeitar cintos, botões e alças de sutien, o fecho ecler da barriguilha de Aparício beliscando-lhe, com alguma dor.
Duas quadras adiante, mochilas nas costas, irresponsáveis como dois colegiais, entraram no táxi, rumo à Rodoviária Novo Rio.
- Puxa vida, pensei que a besta da tua mulher ia nos pegar numa boa - disse Doraci.
O taxista ajeitou o retrovisor.
Aparício não gostou da referência pejorativa. Preferiria considerar Esmeraldina mera vítima das maquinações do destino. Mas, ficou calado.
O par de olhos do motorista o procurou, pelo retrovisor, talvez esperando a defesa da mulher.
- Meu CD do Pavarotti! - Aparício bateu na testa, chateado com o esquecimento.
A gravação esquecida associou-se à casa, com todos os haveres, ao Escort do ano, quitado, aos vinte e um anos de banco, à reputação de cidadão probo, ao prestígio de gerente-adjunto, ao apelido de CDF, à má-fama de cu-de-ferro nos cochichos entre os colegas.
A alegria irresponsável cedia espaço ao velho abatimento.
Doraci aninhava a cabeça entre suas pernas, roçava-lhe o rosto no sexo.
- Hummm...elezinho tá tristinho.
O taxista seguia em frente, a vigilância voltada para a retaguarda.
A introspecção do bancário condenava manifestações efusivas, de amor ou amizade. Palmadinhas nas costas, vulgaridade barata, coisa de brasileiro, dizia. Conversas amistosas, enfeitadas de elogios, mesmo algumas piadinhas, ele somente admitia entre meia dúzia de pessoas, por sinal, as melhores contas correntes do banco. Esgotava, assim, o estoque de simpatia, fineza e salamaleques para com a humanidade. Aos restantes, a formalidade de um bom dia, como vai? bastava.
Até o início da lua-de-mel heterodoxa, Doraci era uma desconhecida fora de casa, fora da banheira.
- Benzinho - ela disse, sopesando-lhe o sexo distraído - esquece o passado, esquece as músicas de velório. Seja outro homem, mais jovem. sem caretices. Assuma o novo jeito de ser.
O CD lhe fora presenteado pelo italiano distribuidor de jornais. O siciliano reunira compatriotas para se emocionarem, às suas custas, na récita do tenor no Municipal. O adjunto que descontava títulos e segurava estouro de contas merecia o agrado. O jornaleiro decidira convidar o casal Aparício para participar da noite de emoções desatadas. Aparício agradecera, alegou urgências no banco. Na verdade, o contrariava fazer algo que não estivesse adredemente planejado, a obediência à rotina lhe era essencial para o equilíbrio orgânico. No fundo, já andava embeiçado por Doraci, o convite estendia-se à excelentíssima família, a morena ainda não fora elevada à tal posição. O jornaleiro substituiu o convite por gravações, comprou meia dúzia de Cds, distribuiu-os à praça como brindes aos benfeitores da capatazia, entre os quais, Aparício.
Doía, portanto, perder a Nessum Dorma. Doía desfazer-se do CD. Doía, doeu, constatar que o ouvido de Doraci destoava do corpo - o corpo receptivo aos grandes prazeres -, era surdo ao bel-canto, o confundia com música fúnebre.
- Meu fofinho está distante, esquisito. Pense no nosso futuro - a mão insistia nas carícias indiscretas; a cara do motorista estava toda no retrovisor, na Avenida Brasil intransitável.
cd cdb rdb fgts ipva icms iof cdf cdf cdf cdf o gerente-adjunto tentava organizar idéias fugidias compostas de retalhos embaralhados do abecedário.
O olho do taxista - agora, um só olho enquadrado na moldura do retrovisor - fitava-o com uma eloquência incômoda.
O gerente-adjunto vivia mimoseado com agrados do Lions, do Rotary, as muitas associações de serviços e filantropias acenavam-lhe com a filiação, a benemerência.
O banco exigia comportamento ilibado; o seu ilibadíssimo comportamento escancarava portas e facilitava degraus. Alguém o considerara mola propulsora do progresso suburbano em um dos muitos jantares a que comparecia. A imagem o agradou, incorporou-a ao repertório. Assim, quando avisava ao rico cliente que iria "disponibilizar recursos para alavancar sua empresa", cumpria a plenitude da sua função propulsora. Alavancava, era mola, aço de boa têmpera.
E agora?, o olho indagava:- rasgou a embalagem da mola?
Sem o emprego, prestes perdido numa cidade estranha, à qual sequer conhecia, vendedor de carros usados, aos quarenta e cinco anos de idade tentando recomeçar do nada... teria Lions Clube em Guarapari?
- Fofinho... de repente você murchou, ficou estranho... cadê elezinho... o meuzinho... está dormindo?
O olho desceu o foco, crítico.
- Vamos saltar - disse Aparício, impelindo o corpo contra a porta ao lado da via seletiva, na qual os ônibus passavam despertando ventanias.
- Eu, hein? Ficou maluco? - Doraci travou o pino da porta. - Morrer só porque está sofrendo com o que perdeu? Casamento, quando não dá certo, tchau pra ele. Já acabei três casamentos e não morri.
Doraci interrompeu o riso diante da cara sofrida de Aparício.
- Quer saltar?, vamos, então ela propôs. - Ali adiante, entramos na Dutra, curtimos um motel esperto. Pegamos o ônibus da noite.
Romper o adredemente traçado exigia muita reflexão, exame minucioso das conveniências e, sobretudo, coragem para alterar a rota, ajustar o leme aos novos ventos. Talvez valesse parar no motel, passar lá um dia, dois, avaliar a situação, esfriar a cabeça. A dúvida o atormentava. Dela, o aborrecia os modos desabridos, já duvidava se conseguiria manter uma convivência por certo tempo. Que fazer? Ficando no motel, a vinte minutos de casa, a sensação de perda poderia se tornar incontrolável e a capitulação, humilhante. Se retornasse à casa, Esmeraldina o receberia com perdões? Espinafrações? Quanto a Doraci? Comprovadamente transformava a alcova numa câmara de compensações, porém a pergunta se impunha: ela lhe daria a segurança de uma aplicação em moeda forte? Doraci endireitava-se ao seu lado, parecia amuada com o nariz espetado na janela. Aparício olhou-a de viés. Não, aquele rosto definitivamente não era traçado com silhueta de moeda forte. Talvez uma esfinge de peseta, fugidia linha dágua de uma ação ao portador.
O gerente-adjunto recostou a cabeça na poltrona; talvez o olho o inspirasse, o socorresse com a solidariedade masculina. Talvez apontasse caminhos, o compreendesse, fosse habituado aos pequenos dramas do cotidiano e lhe dissesse: - isto acontece a toda hora, não há razões para se desesperar, guie-se pela sua inspiração de bom aplicador.
Ou seria o olho burguês, evangélico, pai de família exemplar, nada receptivo a desenlaces matrimoniais? e sobre ele lançasse a maldição do fogo eterno?
Aparício olhou para o retrovisor: o espelho mostrava só a testa do motorista, o olho não estava para consultas. Doraci falava baixinho ao motorista, que sorria obsequioso. A Avenida Brasil, agora desimpedida, e logo a Via Dutra, desfilavam sua feiúra melancólica. As circunstâncias conduziam o metódico bancário, tomavam-lhe das mãos organizadas o antigo jeito de ser, traçavam-lhe outro destino para o qual não se prepara. Murmurando a Nessum Dorma com a tristeza de um réquiem, Aparício chegou à portaria do motel certo de que a mudança de vida lhe fora de alto risco e o final trágico se desencadeara. Esmeraldina era inexorável.
- Suíte presidencial com hidromassagem, doutor? - indagou o porteiro, o olhar profissionalmente desinteressado no casal.
- Um quarto de solteiro, com balança. Sem banheira - ordenou, peremptório. Encarou o olho perplexo grudado no retrovisor: - Leve a senhora até Inhoaíba, deixe-a por lá.
..........................................................................................................................

No dia seguinte, a meia dúzia de clientes preferenciais e quatro ou cinco colegas de trabalho –todos homens, nenhuma bancária - , que há tempos vinham percebendo alterações de comportamento no cdf, assentaram, muito compungidos, o corpinho de Aparício furadinho a bala (calibre 32), na cova, cada um prometendo de si para si reavaliar, a curtíssimo prazo, as condições de risco dos investimentos heterodoxos que costumavam manter longe da matriz...

Odir Ramos da Costa
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