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Artigos-->Um Lugar Para os Sentimentos Abandonados.(Orfanato Portátil) -- 04/02/2004 - 23:21 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um Lugar Para os Sentimentos Abandonados.

(Orfanato Portátil: a Poesia de Marcelo Montenegro.)





Na história literária, o lugar da poesia parece ser o das formas agônicas, o do esforço radical da palavra em superar sua própria mudez, o da entrega absoluta do poeta àquela urgência extremada de comunicação com os seres e as coisas, com os outros homens. A poesia só quer romper uma espécie de crosta de silêncio que se impõe a partir do indivíduo, abrir espaço, tomar contornos, instalar-se nos limites da voz. A poesia só quer dizer tudo o quanto calamos diariamente, nossas dúvidas, nossos anseios, nossos desejos estranhos, dispersos e alheios. A poesia deve ser, antes de tudo, uma forma de nos sentirmos vivos, de nos tomarmos pelas palavras, de nos confundirmos, esteticamente, com as sensações mais adversas que o poema pode despertar.



O problema é que, nas últimas décadas, graças a uma herança poética fundamentalmente construtivista, legado da geração de João Cabral de Melo Neto e dos concretistas, a poesia tem se confundido apenas consigo mesma, reclusa no perigoso e asfixiante jogo da auto-referenciação. A poesia metalingüística, cujo matiz é essencialmente o da linguagem que representa a própria linguagem - como o cão que corre inútil e exaustivamente atrás do próprio rabo -, revelou-se uma verdadeira obsessão estética. O rigor das construções, a materialidade da linguagem, a necessidade de tornar aparente as relações entre significante e significado e um certo niilismo artístico, fizeram da poesia algo disforme, vacilante, esquizofrênico, em outras palavras, conceberam uma poesia de autistas, em que as sensações, os desejos, os impulsos naturais e humanos se perdem numa espécie de insensibilidade e alheamento do mundo.



O consolo é saber que, apesar dessa tendência narcisística que faz da poesia um modo de representação que se deslumbra com a própria imagem, vão surgindo, com o tempo, poetas cuja produção destoa consideravelmente desse estado de coisas. É o caso de Marcelo Montenegro, poeta paulista nascido em São Caetano do Sul, em 1971, e que acaba de lançar "Orfanato Portátil", seu segundo livro de poesias. Conheci um pouco da poesia de Marcelo Montenegro através de seu blog na internet: www.carrobombanaterradon.blogger.com.br, segundo ele, “uma sitcom literária”. Logo no início, o que me chamou a atenção para a poesia de Marcelo foi o excesso de vida que escapa de seus versos e vai, lentamente, contaminando o mundo a sua volta.



A epigrafe do livro, do músico, ator, poeta e escritor californiano Tom Waits, revela, sob muitos aspectos, a natureza mais funda de "Orfanato Portátil": “Bicicletas quebradas, velhas correntes rebentadas/ Guidons enferrujados lá fora na chuva/ Deveria haver um orfanato/ Para estas coisas que ninguém mais quer”. O livro de Marcelo Montenegro é esse lugar imaginário, esse orfanato onde o poeta guarda as miudezas diárias que nos cercam, as idéias, as sensações, tudo o que é pequeno, frágil, que poderia passar despercebido não fosse uma memória lírica que não se dissipa e que, ao contrário, grava em relevo os flagrantes poéticos de uma realidade comovente pelo que tem de simples, natural e intensa. O poema que abre o livro, Semáforos desligados, é um exercício de perspectiva, uma espécie de fotomontagem poética de forte apelo visual: “semáforos/ desligados/ Piscam// pupilas/ de Ninfas/ urbanas// madrugada/ úmida/ no Asfalto// a Lua/ na língua/ de um Cão”.



A maioria dos poemas revela essa tendência à descrição, à criação de imagens plásticas de uma visualidade rara, criando uma poesia urbana em que o eu-lírico se perde na liberdade plena dos passeios noturnos, do giro pela cidade, do olhar descompromissado que fixa um mundo feito de fragmentos e estilhaços, pedaços de lugares, coisas, idéias e pessoas que vão cruzando seu caminho e deixando suas marcas. É o caso de "Chiado do disco": “O chiado do disco entre uma música e outra/ A gruta onde os lobos dormem/ Alguma espécie de amor a cada passo em falso/ Um ralo por onde as coisas somem/ No metrô, saber qual livro a menina está lendo/ A vizinhança é um barulho de panela de pressão/ Há um vinho que sempre acaba antes da sede/ Um resto de sol que rabisca a parede/ Alguma espécie de oração”.



Como no poema "Geometria Folk", o poeta parece escrever “retirando os excessos de um texto/ como quem tira a importância das coisas”. O segredo é não cair na tentação de um sentimentalismo barato, vulgar, fácil, nem pensar que a poesia é o exercício dos significados cifrados, do hermetismo, da incompreensão. Marcelo Montenegro, em seus versos, sempre deixa entrever a idéia de que a poesia é aquela que se faz dessas coisas e sentimentos que, em geral, vamos jogando fora ao longo da vida. Assim, temos o belíssimo "Buquê de Presságios": “De tudo, talvez, permaneça/ o que significa. O que/ não interessa. De tudo,/ quem sabe, fique aquilo/ que passa. Um gerânio/ de aflição. Um gosto/ de obturação na boca./ Você de cabelo molhado/ saindo do banho./ Uma piada. Um provérbio./ Um buquê de presságios./ Sons de gotas na torneira da pia./ Tranqueiras líricas/ na velha caixa de sapato./ De tudo, talvez, restem/ bêbadas anotações/ no guardanapo./ E aquela música linda/ que nunca toca no rádio”.



As influências de Marcelo Montenegro aparecem no diálogo íntimo e secreto que seus poemas estabelecem com elas: Sam Shepard, Jack Kerouac, Ginsberg, Bukowski, Gregory Corso, Paulo Leminski, Torquato Neto, Wally Salomão, Tom Waits, Rogério Sganzerla, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, toda uma geração de poetas, músicos, cineastas e escritores que passaram a vida ou perderam a vida tentando desesperadamente fazer sentido. As personagens de seus versos são estranhas, indefiníveis e deslocadas criaturas: Penélope Charmosa, Clarabela, o Bandido da Luz Vermelha, “groupies de cabelos rosa”, Clara Crocodilo, Buster Keaton, Recruta Zero. Um universo de ícones e símbolos de uma cultura quase anárquica pelo que tem de díspar entre si. Mas Marcelo Montenegro não se importa e segue criando uma poesia necessária nesse mundo de aparências e simulações. É o que sugere Ademir Assunção, escritor e poeta, autor de "A Máquina Peluda" e" Zona Bran"ca, no prefácio do primeiro livro de Marcelo, De Soslaio (1997): “Não será a poesia essa alquimia que transforma novamente a palavra em palavra, corpo-vivo, pulsação uterina, sangue circulando pelo corpo da cultura? Quando palavras se gastam na enxurrada de (des)informações cotidianas de um final de milênio engarrafado, a poesia é que vai explodir colorida a couraça dos cinco mil sentidos. Alguns explicam, outros ousam. A poesia de Marcelo Montenegro ousa fazer sentido aos sentidos”.



O Marcelo é essencialmente poeta, acho que até à espinha dorsal. E os poemas do cara refletem um mundo de pequenas coisas, de miudezas, de sentimentos estranhos, mas plenos diante dessa que Drummond chamou um dia de Vida Besta. Uma poesia vital, urgente, que não cai no tom melodramático ou desesperado (esse desespero artificial), patético, que ronda os poemas de alguns contemporâneos. Ao contrário, em meio a tantas (in)definições, há espaço para um humor solto, leve, que toma o cuidado de ficar a um passo da ironia descarada, como podemos perceber em "Espantalho descarado": “ando assim/ tipo um erro flácido ambulante/ sem êxito, hesitante/ disco riscado/ fora de catálogo/ no pó do instante/ (...) ando assim/ mais opaco que olímpico/ esquivo, íntimo, insípido/ um mastodonte pensando/ desamparado/ (...) ando assim meio buster keaton/ um tanto de lágrima hasteando o riso/ ando assim raso/ indiferente/ me divertindo um bocado/ eu ando mijando no poste/ porque o banheiro/ está sempre lotado”.

Recebi o livro e guardei para ler depois, madrugada adentro, entre um cigarro e um uísque, sozinho, com a luz mortiça tremendo um pouco, pensando que a vida tem muito a ver com essa poesia intensa, feita de esquinas, avenidas, discos riscados, palavras de amor, sentimentos velhos, desejos alheios, paixão e entrega. Nada desse autismo deliberado de ficar escrevendo versos que falam em como fazer versos. É vida mesmo, pulsando, batendo na cara da gente, pedindo um canto pra sentar e chamando logo o garçom. "Orfanato Portátil" é um lugar para os sentimentos abandonados, para as quinquilharias líricas que levamos no peito, assim, entre perdidos e sem jeito, como quem não sabe ao certo o que fazer com tantas lembranças, com tantas paisagens, rostos, imagens, coisas e objetos que, não fosse a poesia, estariam irremediavelmente condenados a perecer.



Para terminar, "Fim de Tarde", ponto alto da poesia de Marcelo Montenegro, imagem pura, um tipo de plano-seqüência, daqueles que vemos nesses road movies antigos, alternando quadros que se abrem de uma solidão a outra, sem queixas ou remorsos grandes: “Com a alma e sua data de validade vencida/ Contempla, com o chope gelado da vida/ O lilás com que as tardes se ferem/ Esta brisa que excita e ainda viva se despede/ Da rapaziada trocando de assunto/ No longa-metragem que deu origem à série”.



P.S – O livro "Orfanato Portátil", Atrito Art Editorial, R$ 10,00, pode ser comprado pelo e-mail do autor: mmsmontenegro@ig.com.br. Vale a pena conferir.

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