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Artigos-->FAMÍLIA E PSICOSE -- 18/02/2004 - 04:13 (Don Cuervo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








FAMÍLIA E PSICOSE, UMA INTERAÇÃO COMPLEXA

Ieda Porchat




Palestra proferida no IIIº Encontro Nacional de Coordenadores de PA e APPA



Quando comecei a pensar no que iria dizer hoje para vocês, a palavra "ternura" me veio à cabeça e fiquei pensando por quê. Em seguida, me veio a imagem de uma ex-paciente, que apresentava transtorno bipolar. E que, quando saia de uma de suas fases, maníaca ou depressiva, me dizia, meio sorrindo, meio tristonha, mas ao mesmo tempo transmitindo muita força, que ela era como uma fênix, renascendo sempre das cinzas.

Por isso pensei em ternura, porque tive com essa paciente uma relação de grande ternura. Respeitava sua dor e admirava sua enorme coragem para prosseguir após cada crise. Perdia namorados, perdia empregos e recomeçava sempre.

Fiquei pensando também em como o psicótico e sua família lutam arduamente por sua sobrevivência psíquica, por sua saúde mental. E aí lembrei-me das palavras de Bíon, analista inglês, que dizia que todos nós temos um núcleo psicótico, uma parte psicótica em nossa personalidade. E pensei que o muro que nos põe do lado de cá, que nos separa da psicose, não é feito de concreto e talvez seja bem mais frágil do que imaginamos.

Durante certo tempo era comum culpar ou responsabilizar a família pelo desencadeamento da psicose em um de seus membros. Havia um peso moral muito grande nessa afirmação: a família era a culpada, condenada. Felizmente, existe hoje mais ponderação em relação a isso. A psicose em um dos membros da família é vista como resultado de uma "armadilha interacional"; o desempenho de cada um e de todos resultou numa interação do ponto de vista psíquico profundamente perturbada, na qual um dos membros foi apanhado. Talvez por ser o mais sensível, talvez por ter um componente químico abaixo ou acima do desejado. Pouco importa. Nesse jogo familiar inconsciente de roleta russa, a bala saiu para ele, assim como poderia ter saído para qualquer outro. Mas todos os membros fizeram parte do jogo. Aliás, poderíamos ampliar essa afirmação e dizer que toda a sociedade fez parte desse jogo. Winnicott, famoso pediatra e analista inglês, dizia que "não há nada semelhante a um bebê e, sim, o bebê e sua mãe; o que existe é uma dupla". Com a psicose, dá-se o mesmo. Não existe o psicótico mas, sim, o psicótico e o meio no qual ele está inserido. Por isso, o tratamento ou a ajuda terapêutica, para obter bons resultados, inclui a dupla psicótico/família. Se pudéssemos, incluiríamos também a sociedade. Se tratarmos apenas um dos elementos da dupla psicótico/família, dificilmente poderão ser alterados os padrões de interação disfuncionais da família, que constituem um dos fatores determinantes no desencadeamento e manutenção da psicose.



Propusemos como título desta palestra "Família e Psicótico, uma Interação Complexa". Essa interação complexa, embora com seus matizes específicos, não difere lato sensu da complexidade de qualquer outra interação humana em seus componentes básicos. Sabemos que em qualquer interação -e aqui vou focalizar a interação do casal, ou seja, a do casamento por que dela irá originar-se a interação familiar - existem motivações inconscientes e conscientes e que os conflitos se originam do entrecruzamento dessas duas vertentes.

Quando os cônjuges se escolhem como parceiros para constituir uma nova unidade familiar, eles o fazem, em geral, a partir de motivações conscientes: a partir de uma atração física, de semelhanças sócio-culturais, de afinidades psicológicas. Pensam que têm muitos gostos parecidos, projetos de vida semelhantes etc. Por isso estão felizes, seu casamento dará certo.

Mas, na realidade, há nessa escolha dos cônjuges um encaixe de motivações inconscientes, que terá enormes consequências sobre o desenvolvimento de sua interação conjugal. Chamemos esse encaixe de "conluio inconsciente". Resumindo, trata-se do seguinte: ambos os cônjuges, em suas relações com suas respectivas famílias de origem, vivenciaram, em sua infância em particular, uma série de experiências emocionais gratificadoras ou frustradoras. Quando casam, inconscientemente vão reeditar com seu parceiro muitas dessas relações, buscando compensações pelas frustrações que tiveram ou, ao contrário, buscando a continuidade das gratificações outrora existentes.

Esse encaixe ou conluio pode, ou não, realizar essas expectativas, pois, se é verdade que o parceiro escolhido pode ter possibilidades reais de complementar essas necessidades psíquicas de seu cônjuge, por outro lado muito de como ele é percebido é fruto da idealização, da fantasia, das projeções postas nele pelo cônjuge que o escolheu, e ele pode não estar apto para a elas satisfazer.

Então, ao nascer um primeiro filho, "ele não chegará no vazio"; além de um "berço de amor" com o qual os pais o esperam, ele cairá também numa rede interacional emocional altamente complexa, que é a do casal, ou seja, a de seus pais. Que lugar irá ocupar esse filho nessa rede? O que nela está marcado para compensar as frustrações e carências dos pais. Isto é, ele será, em certa medida, o desejo inconsciente de seus pais. Quero frisar "em certa medida" para indicar que, além de seus pais, há outras variáveis na formação de sua personalidade.

É preciso lembrar que a chegada de um filho faz surgir aspectos do relacionamento de seus pais até então não-manifestos. Tais como ciúmes, competição, ansiedades, sentimento de exclusão etc., denotando às vezes comportamentos danosos para a relação do casal. Basta lembrar aqui a alta incidência de relações extraconjugais nessa fase (e que não pode ser atribuída somente à não-disponibilidade sexual da esposa). Mas quero enfatizar que não é o filho o causador dessa situação e, sim, a reação intrapsíquica e interpsíquica de seus pais em relação à presença de um terceiro numa relação até então dual. Então, quando pensamos na família, na sua interação e o que dela pode decorrer, temos que considerar seu contexto psíquico a partir de sua matriz original -o casal.

Mas é também muito importante não desconsiderar a influência dos contextos sócio-histórico-culturais sobre a interação familiar. Pensar que há uma imbricação entre valores e normas de uma cultura e a subjetividade, a emocionalidade, o psíquico de um indivíduo. Portanto, o psiquismo familiar está inscrito num macro-contexto social, que poderá influenciar, num sentido positivo ou negativo, o desenvolvimento da saúde mental na família.

Se pensarmos a família de um ponto de vista histórico, por exemplo, notaremos de imediato a diferença entre a família extensa, que aqui no Brasil predominou no período colonial, e a família nuclear, que predomina hoje em grande parte de nossa sociedade. Penso que a família extensa, com seus vários membros, parentes, agregados, muito provavelmente desenvolveu uma rede emocional diferente da rede emocional da família nuclear. Os complexos mecanismos psicológicos de projeção e identificação que atuam de uma maneira muito concentrada e intensa na família nuclear, pois incidem sempre sobre um círculo pequeno de pessoas, muito provavelmente atuaram de forma mais diluída na família extensa colonial, pelo fato de que mais membros alteram a dinâmica da intimidade familiar e influem, portanto, sobre a emocionalidade da família.

Se pensarmos a família no contexto social de hoje, podemos refletir, por exemplo, sobre o efeito da violência ou das drogas na interação emocional familiar. Um exemplo bastante corriqueiro é o da ansiedade, do conflito, da tensão que surgem quando os filhos estão na adolescência e desejam mais liberdade. Quem não fica ansioso quando um filho ou filha sai à noite e volta de madrugada? Que pais não querem impor limites à liberdade do filho para diminuir sua justa ansiedade? No entanto, sabemos como isso é difícil, porque significa, em muitas ocasiões, excluir o filho de seu meio social. Basta pensar que, na minha geração, as festas para quem tinha 19 ou 20 anos terminavam às 11 da noite, hoje elas começam a partir de 11 ou meia noite.

Entretanto, nosso enfoque principal aqui, hoje, é o contexto psíquico da interação familiar . O que é a família sob esse ponto de vista? E quais são, na família do psicótico, os mecanismos psicológicos mais específicos?

Embora a organização familiar siga parâmetros gerais, ou seja, toda família deva cumprir determinadas funções (como educar, por exemplo) e seus membros desempenhem papéis específicos, deparamos com o fato de que as famílias diferem em sua dinâmica, no modo como os membros agem e interagem entre si. E é nessa variação que podemos ter funcionalidade ou disfuncionalidade nos padrões de interação. De um modo geral, pode-se dizer que as famílias cujos padrões de interação são funcionais são aquelas que permitem o crescimento e a diferenciação emocional de seus membros, que os conduzem a uma personalidade madura, capaz de amar, aceitar frustrações, desenvolver responsabilidade.

A família é a matriz do desenvolvimento emocional do indivíduo. Lugar de crescimento e de diferenciação, lugar onde passamos do não-ser ao ser, onde forjamos nossa personalidade. No percurso desse caminho que nos leva ao ser adulto, atravessamos várias etapas nas quais nosso Ego se vai constituindo, a partir de trocas emocionais com nosso meio familiar. São essas trocas emocionais o ponto central de nosso interesse. Nelas reside um dos embriões da possibilidade de saúde ou doença mental.

Antes de citarmos alguns tipos de troca que se manifestam em determinados padrões de interação disfuncional e que costumam ocorrer em famílias de psicóticos, quero lembrar que não somos donos de nosso inconsciente. Que não fazemos trocas disfuncionais porque queremos. Todos os pais têm a sua história emocional inconsciente e o desconhecimento dessa história os podem levar a atuar de uma maneira disfuncional.



a) interação fusional: aquela que dificulta ou impede um processo de

individuação. Algumas razões para isso:

-o medo de que a separação do filho resulte em perda, ou seja, o

medo de que a liberdade, o espaço para crescer afaste o filho;

-o medo de perder a razão de existir, porque ela toda foi colocada no

filho: um excesso de amor, ou um amor mal canalizado.

b) interação que infantiliza: ela pode estar a serviço de uma

necessidade de controle, de dominação inconsciente; ou pode servir de desvio para problemas muito dolorosos existentes na interação do casal; o foco de atenção passa a ser o filho infantilizado.

c) interação de extensão, onde o filho é uma extensão da mãe (pai).

Somente lhe é permitido ser um Outro, se ele for um clone dos desejos, expectativas, necessidades da mãe (pai). Uma enorme dificuldade de discriminar os dois Egos. O medo de algo diferente de mim e que talvez se possa voltar contra mim. A vontade de que o filho realize os anseios e desejos que os pais não puderam realizar: os filhos se tornam uma extensão da vida dos pais.

d) Interação de exclusão: o que há de difícil, de intolerável, pode

ser colocado em um dos membros da família. Assim os outros membros não vêem sua própria perturbação, esta fica obscurecida, sua atenção está voltada para a pessoa na qual foi projetada a disfuncionalidade. Um bom exemplo disso está no filme Beleza Americana, no qual aparece uma família com tres personagens: o pai, ex-militar, aparentemente o membro da família sem problemas; uma mãe depressiva e um filho, que já tinha sido internado por conduta anti-social (traficava drogas, era marginalizado em seu meio escolar). No final das contas, o pai era o membro mais doente da família, era um homossexual latente; mas isso não era sua doença e, sim, o que fazia para lidar com esse seu conflito, ou seja, as terríveis defesas que usava para conter sua vida pulsional (era extremamente rígido). Pressionava (vigiava) terrivelmente o filho no sentido de induzi-lo à "normalidade", projetando nele seus desejos. No final do filme, ele fantasia que o filho tinha tido uma relação homossexual e, não conseguindo mais conter seus próprios impulsos, busca uma relação homossexual; sendo repelido, acaba matando o homem que o atraiu e se tornara o objeto de seu desejo.



Esse são exemplos de trocas que não favorecem a individuação. Onde não há limites do Ego, onde não há fronteiras entre os Egos dos indivíduos envolvidos na relação. Quero lembrar que, numa troca emocional, há sempre, no mínimo, dois lados. E que o psicótico é alguém que, com frequência, inconscientemente trabalha para reforçar sua dependência, sua regressão a etapas mais infantis, usando de vários meios para para sabotar os esforços que pais ou outros membros da família possam estar fazendo para ajudá-lo a romper essa armadilha.

Com frequência, do lado da família isso também ocorre, a família também manobrando para manter essa relação doentia. Porque, apesar de que psicótico e família queiram se livrar dessa relação doentia, parece haver ganhos secundários com sua manutenção. Já vimos algumas razões para isso do lado da família. Do lado do psicótico, poderíamos citar como ganhos secundários a manutenção de uma proteção infantil, o não assumir responsabilidades etc.

Quero enfatizar que, para que se compreenda o sentido específico de um sintoma e suas peculiaridades, o delírio por exemplo ou um conflito, é preciso sobretudo entendê-lo a partir desse contexto psíquico familiar. Entender como trocas ou vínculos emocionais se organizam a partir de desejos ou fantasias inconscientes dos membros da família. Por isso, alguns terapeutas de família, atentos a essa organização e estrutura incosnciente variada, lançam mão de classificações tais como família edípica, família anaclítica, família narcísica e assim por diante.

Quero lembrar ainda que, se a família pode tender às vezes a manter

seu status quo ou seus padrões de interação de maneira rígida, essa manutenção dentro de limites razoáveis é o que garante a possibilidade de convivência, o que permite haver coerência, continuidade e previsibilidade nas ações, sentimentos e pensamentos na família. É o que chamamos de equilíbrio ou homeostase familiar. Por outro lado, se houver rigidez, se nunca se puder romper o equilíbrio, uma outra força que opera na família e que chamamos de poder de transformação, a família terá muita dificuldade para promover as mudanças nececessárias para eliminar sua disfuncionalidade.

Um dos momentos de crise na família ocorre quando qualquer um de seus membros, sentindo-se aprisionado e psicologicamente empobrecido dentro de padrões de interação rígidos, atua e emite sinais no sentido de romper esses padrões ou esse equilíbrio rígidos. É um momento de ruptura, onde forças de transformação começam a agir.

Para terminar, gostaria de afirmar que a rigidez de comportamentos, sentimentos, idéias, na família e na sociedade em geral, talvez sejam um dos grandes inimigos no trato com a psicose. Quanto mais rigidez houver, mais o psicótico será marginalizado, segregado. Pelo contrário, quanto maior a aceitação de diferenças, daquilo que consideramos estranho porque foge às nossas normas, maior será a possibilidade de integração emocional e social do psicótico nos contextos em que atua.

Gostaria ainda de dizer que, não apenas o psicótico, mas pais e demais membros da família podem muitas vezes necessitar de uma terapia individual, para entender e melhor lidar com suas motivações inconscientes. Podem também necessitar de medicação para poder lidar com as angústias e ansiedades de uma situação familiar que atinge a todos.















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