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Contos-->Excelentíssimos Deputados -- 21/04/2000 - 15:32 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
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1: Fernando Henrique Nogueira

- Boa noite, senhor presidente! – cumprimentou, inesperadamente, o homem gordo e baixo que se apresentava à mesa. Fernando não esperara aquilo. Tinha visto o homem, se lembrava que o havia conhecido, mas definitivamente não esperara a – quem sabe – agradável surpresa do cumprimento. Havia se acostumado a conhecer as pessoas e, imediatamente após conhecê-las, desconhecê-las, como se todos se tornassem estranhos após duas horas de prosa agradável. Com aquele ser humano calvo e maciço havia sido o mesmo.
- Ora! Não pensava que vinha aqui, senhor Pestana. Agora, senhor Deputado deputadíssimo Pestana, né? – respondeu, abrindo um largo sorriso. Não que estivesse verdadeiramente feliz com aquele encontro, mas algo o tocou por dentro. Era uma noite chuvosa, e Brasília parecia desanimadamente sorumbática quando chovia. Um dia árduo de trabalho, uma noite chuvosa. Um ou dois drinques num bar num fim-de-tarde. Parecia absolutamente mundano e normal. E um encontro absolutamente inesperado com um deputado que ele nem se lembrava mais que conhecera. Deputado Pestana. Quem diria? Quem diria que se lembraria de uns e outros goles numa festa dos amigos-em-comum? Absolutamente estranho, porém estranhamente agradável.
- Na verdade, não tenho mais tempo pra nada, sabe? As coisas no plenário, na Câmara, uma bagunça toda. Às vezes, muito às vezes mesmo, venho e dou uns goles por aqui. Eu gosto desse lugarzinho, mesmo com essas bichas todas. Hm.. o senhor não é bicha, é? - perguntou, sentando-se à até então solitária mesa de Fernando sem pedir licença nenhuma. Bicha, ele? Não, nunca. Nem nunca havia se incomodado com aquilo. Parecia algo muito insignificante para se incomodar quando tantos outros problemas muito mais graves haviam para se resolver. Na primeira vez que o havia visto, o Deputado – então ainda não-deputado - lhe parecera alguém simpático porém esquisito. Pessoa com manias estranhas, tirava muco do nariz na frente de todos, espirrava alto, comia com a boca aberta, falava como poucos. Parecia mesmo um Deputado. Lembrava-se que o homem havia bebido muito na festa: aquilo estava ainda muito sólido em sua mente - ele não havia bebido normalmente, como todos fazem nas festas. Havia sido algo nada normal. Lembrava-se de ter conversado com Pestana por umas duas horas, enquanto ele ainda estava medianamente sóbrio. Ele próprio havia bebido muito, também, na ocasião, mas nada comparado ao que acontecera naquela noite. Fazia já uns cinco anos. Por isso achara o encontro tão incrível. O homem devia ter uma memória no mínimo assombrosa, afinal, pessoas bêbadas não costumam lembrar de muita coisa do que aconteceu no dia seguinte, quiçá depois de cinco anos! Verdadeiramente incompreensível! Naquela época, Fernando ainda cursava faculdade, curso de Administração na Universidade de Brasília. Não era rico, nem a família, mas seu pai era muito amigo de um empreendedor que morava no Lago Sul, pessoa com muito dinheiro. A casa parecia um castelo, mas a festa era bastante intimista. Poucas pessoas, algumas influentes. O homem e o pai de Fernando haviam sido colegas de faculdade. Era essa a única ligação que ele sabia existir entre os dois. Não sabia bem o que sustentava aquela amizade, nem nunca soube, porque seu pai já havia morrido há dois anos. Estava sozinho, morando num cubículo nas 400 da Asa Norte.
Fernando se lembrava que Pestana havia tomado um porre muito incomum. Ele simplesmente não parava de beber. Misturava todos os tipos de bebida, devia ter consumido pelo menos trinta latas de cerveja, muito vinho, conhaque, uísque, tudo. Parecia um animal berrando, passando a mão nas esposas dos convidados, nas filhas, nas empregadas. Lembrava-se que havia sido uma noite no mínimo surreal, e o mais incrível é que ninguém tivera a coragem de reprimi-lo, ou mesmo se incomodar com aquilo. Pestana passava a mão no traseiro das esposas de homens sérios presentes ali, e todos respondiam ao ato apenas com sorrisos, como se aqueles inescrupulosos gestos não passassem de brincadeiras dóceis e bobas. Sabia que ele era um boa-vida, como o próprio o havia contado. Vivia metido em coisas como jogo do bicho, transporte ilegal, construtoras, negociava imóveis, não tinha emprego fixo, mas parecia ter muito dinheiro. Era muito amigo do tal empreiteiro, já havia se casado mais de quatro vezes, pagava todas as pensões, era uma história complicada. Elegera-se Deputado, como ficara sabendo. E se lembrara, depois de duas embriagadíssimas horas de conversa há cinco anos atrás, de Fernando Henrique Nogueira.
- Não, não. Mas eu gosto de vir aqui. Geralmente venho uma vez por semana. Hoje foi um dia corrido. Minha vida anda uma merda.
- Mesmo? Por onde anda teu pai?
- Morto. Enfartou faz dois anos. Minha mãe mudou pro Mato Grosso. Foi morar com minha tia que tem grana. Estou sozinho aqui, acredita? Fechei o curso. Faz um tempo desde aquela festa, né?
- Faz, deve fazer uns...três anos?
- Cinco, eu acho.
- Tudo isso?
- Tudo isso, senhor Deputado! Anda avoado?
- Muito. Essas coisas de politicagem são muito mais difíceis do que se imagina. Toma meu tempo, é foda. Cinco anos, então. Pensei que nem ia se lembrar de mim. Engraçado, aquela nossa conversa naquele dia foi boa. Não me esqueço, não.
- É mesmo. Eu já tinha até te visto, mas não pensei que você fosse me reconhecer. Muito estranho mesmo! Ainda mais porque naquela noite ninguém estava muito bem...
- Hehe. Você ainda precisa aprender umas coisas, rapaz. Anda trabalhando, então. Tá diplomado?
- Tô, mas ainda tá uma merda pra conseguir algum emprego decente. Passei por uns estágios, mas tá foda. Parece que ninguém quer ver pobre trabalhando. Estou trabalhando de caixa, num BrB da W3. O cara disse que é um estágio, que depois eu posso ir prum cargo mais alto, mas eu não confio muito. Uma bosta, né?
- Heh – balbuciou ele enquanto tomava o primeiro gole da cerveja que havia pedido. Fernando estava achando aquilo muito estranho. O homem parecia que tinha encorpado, como se seu corpo tivesse crescido alguma coisa em proporção perfeita nesses cinco anos. Não sabia exatamente o que conversar com aquele homem, que era, afinal, nada mais que um estranho. Pestana parecia uma criatura completamente absurda! Sua voz era grossa, espessa como um tronco, seu hálito era horrível. Imaginava que ele havia consumido pelo menos uns cinco maços de cigarro naquele dia. Estava quase careca, mas era todo peludo. Os pêlos saiam pelas frestas da camisa. Parecia um urso, um neanderthal de paletó.
- Ser caixa deve ser mesmo uma merda, meu amigo. Estão difíceis as coisas?
- Muito. Eu me casei, mas as coisas nem estão dando certo. Quero evitar filhos, e essas coisas. Estou só esperando uma oportunidade qualquer, sei lá. Esse diploma tem que valer alguma coisa. – realmente era patético. Parecia uma súplica. Ele sabia que Pestana era uma pessoa cuja influência ia além dos poderes até mesmo de um deputado. Sabia que, se ele quisesse, estava empregado. Mas, afinal, porque não pedir? A iniciativa de se sentar à mesa e beber alguns chopes e alguns copos de cerveja não havia sido dele mesmo? Fernando às vezes se sentia mal com o próprio moralismo. Se sentia um verme por ser honesto, por ser idiota, por não saber passar as pessoas para trás. Sentia raiva dos pais, que assim o haviam criado, dos colegas de estudo, da esposa, das pessoas em geral. Era um tímido, um introvertido que não sabia como curar os problemas psicológicos a não ser com a bebida. Fazia já um mês que vinha ao Beirute quase todos os dias. Começava a sentir falta do dinheiro que gastava com tantas cervejas e tantos chopes. Parecia, na verdade, sentir falta de tudo. Parecia que nada lhe pertencia, como se mulher fosse um empréstimo, a casa um empréstimo, até a mãe, os discos, a televisão. Sentia-se um completo inútil.
- Me sinto um pouco inútil. – disse.
- Sua mulher dá direito? – foi a pergunta de Pestana, direta, incisiva, bem no átrio esquerdo. Fernando sabia o que ele havia perguntado, mas por moda das tradições urbanas e das ditas relações sociais, fingiu não entender. Não havia porque não fingir.
- Minha mulher o quê? – retrucou, esperando ansiosamente uma resposta “deixa pra lá” ou um “esquece”. Não queria entrar no assunto. Não queria de forma alguma exibir seus problemas a uma pessoa quase que completamente estranha. A conversa se tornava um pouco angustiante.
- Sua mulher trepa bem? Foi isso que eu perguntei. – disse Pestana, olhando diretamente nos olhos de Fernando, que desviou o próprio olhar instantaneamente. Como responder àquilo? Ele sabia que Pestana era um homem de muitas mulheres, bastava ver o que fazia com as filhas dos casais naquela festa há cinco anos. Tentou, rapidamente, calcular a quantidade de mulheres que ele certamente já havia fodido. Mais de cem? Mais de duzentas? Mais do que ele imaginava? Como responder sinceramente àquilo? “Na verdade, não temos ânimo para isso”? “Minha mulher e eu chegamos muito tarde e cansados em casa”? “Temos medo de ter um filho agora”? Sentiu-se diminuído. Não gostava nem de pensar nesse, que era certamente o pior de seus problemas. Era casado e, muito raramente, em momentos de esforço incrível, transava com a esposa. Era um quadro crítico, desesperador. A cada dia que passava, sabia que se tornava mais impotente, e nem fazia idéia da causa. Jamais havia contado aquilo para ninguém. Nunca discutia isso com a esposa. Era como se ambos ignorassem o problema. Nunca teve coragem de ir ao médico. Sentia medo só de pensar naquilo. Chegava a ser cômico. Era um completo infeliz.
- Sim, sim. Porque você perguntou isso? – respondeu Fernando, visivelmente nervoso.
- Hm. Você tem um emprego de merda, mas pelo menos tem uma mulher na cama.
- E... qual o... o que isso significa?
- Esse seu sentimento... essa coisa de se sentir inútil. Isso parece coisa de corno, de bicha enrustida, de um cara que não come mulher nenhuma. – metralhou pestana, sempre daquele jeito estranho, aquela voz grossa e grave, bebendo cerveja como se fosse água. Olhava de uma forma tão amena que parecia conhecer Fernando há anos e anos a fio. Falava com a franqueza de um melhor amigo.
- Deve parecer mesmo, mas o problema é grana. Não tenho grana nenhuma. Estou quebrado, quase no fundo do poço. Como é que pode um cara com diploma da UnB não servir pra nada?
- A maioria não serve pra nada, rapaz! Tá pensando que as coisas são fáceis assim desse jeito, é? Um diplominha merda desses não vale porra nenhuma mesmo! E nem tem que valer. O que vale aqui é a esperteza dos homens, rapaz. É isso que você não vê. Eu, você acha que eu fui pra alguma universidade alguma vez na minha vida? Nem terminei estudo nenhum! Acha que eu sei alguma coisa dessas ciências, desses cálculos aí que você faz? Você acha que sabe administrar alguma coisa com uma porra de um curso de administração? Você não sabe nada, rapaz! As coisas correm por fora. Você tem que ser olho vivo, pegar e agradecer por aquilo que te oferecem. Ganhar dinheiro e honestidade, vou te dizer porque sou seu amigo, são coisas que nunca andam juntas. Conheço tudo quanto é rico aqui dessa porra desse lugar! Você acha que alguém, algum desses deputados, senadores, acha que algum desses ganha dinheiro trabalhando honestamente? Você tem que parar de pensar que nem comuna senão nunca vai crescer. E vai ficar aí se lamentando? Um homem macho pra mim é aquele que me diz com firmeza que fode a mulher até ela dizer chega! Isso eu respeito! Agora, acha que eu respeito diploma? – Pestana parecia possuído. Falava alto, energicamente. Sua voz se projetava majestosamente no bar. Parecia que todos ouviam, mas todos simplesmente ignoravam. Os olhos brilhavam, ele gesticulava, bebia chope atrás de chope, uns quatro, já. Fernando não sabia o que fazer. Cada palavra de Pestana parecia martelá-lo. Naquela hora, percebeu o poder daquele homem. Percebeu que todas aquelas ilusões de salvar o País da corrupção não passavam mesmo de ilusões. Pestana parecia um homem inquebrável, alguém que lidava com pessoas como se lida com gado. Quantos pestanas não existiriam naquele Congresso e em todas essas câmaras de deputados espalhadas pelo Brasil? E, por mais incrível que aquilo pudesse parecer, percebeu que tudo aquilo que ele dizia era a mais pura verdade. Num tempo de meia hora de conversa, descobriu que a honestidade e a fraternidade não era o caminho dos homens. Como alguém que falava daquele jeito poderia estar errado? Não podia, não podia! De jeito nenhum.
- É... é...
- É o que, homem? Diz alguma coisa! Mostra que você é homem! Eu tô te insultando, não tá vendo? Tô te chamando de merdinha, tô dizendo que sua mulher não gosta de dar pra um merda que nem você! Tô dizendo que o seu diploma bosta de UnB não vale nada, que todos os anos que você ficou estudando não vão servir pra nada! Reage, rapaz!
- Acho que você deve ter razão...
- Sabe porque teu pai nunca ganhou grana? Porque recusava os serviços que o Vitão oferecia pra ele! Só por isso! Seu pai morreu bem, com dinheiro? Porra nenhuma! Seu pai morreu que nem um fracassado, e acho que você vai ser isso também se não mudar essa posiçãozinha de merda!
- O que você sugere pra mim? – arriscou. Depois de ouvir tudo aquilo, parecia determinado a aceitar algo novo. Mas o quê? Não sabia exatamente o que aquele homem o ofereceria. Um cargo de secretário na câmara? Algum emprego indefinido nessas veredas da política? Distribuir panfletos? Vender drogas? Roubar? Que tipo de emprego alguém como Pestana poderia sugerir? E oferecer?
- Eu sugiro que você pare de beber essa merda e vá lá pra sua casa comer a sua mulher que nem você nunca comeu. Vai lá e fode ela que nem uma puta, sem dó, quase estuprando. Entende? Vai fazer isso?
- Eu não posso fazer isso!
- Mas é uma bicha?!
- Não! Ela tá viajando. Foi ver a mãe. Mas quando ela voltar, vou fazer isso. – era um mentira. O que diria? “Não posso estuprar minha mulher”? Como explicar esse tipo de moralismo para Pestana? Como fazê-lo compreender? Como explicar para ele que a impotência é uma doença, e que pode atingir qualquer um, até mesmo ele? Fernando sabia que ele não compreenderia. Poderia virar a mesa, poderia até bater nele, espancá-lo. Pestana parecia ter impulsos violentos. Os olhos dele estavam vermelhos, o hálito de cigarro estava misturado ao de bebida. Estava embriagado, mas ainda assim parecia falar com lucidez. Qualquer palavra estranha poderia acionar em Pestana uma ação completamente imprevisível. Fernando preferia ser cauteloso. Na verdade, se borrava de medo. Começava a pensar que aquele encontro com Pestana não havia sido nada bom. Não gostava de encarar a verdade. Sabia que o problema com a mulher era um problema seu. Sabia quando tinha começado, e porquê havia começado. Sabia que Pestana tinha razão em tudo que dizia. Tentava se enganar, mas não conseguia. Tremia.
- Quer comer uma mulher? Eu acho que isso ia fazer bem pra você. Quer comer uma mulher?? – perguntou Pestana, gesticulando com as mãos. Parecia um lunático, como se estivesse indignado.
- Quero! – respondeu Fernando, num impulso só, quase não acreditando no que havia dito. Na hora, não teve idéia alguma da dimensão do que aquilo poderia implicar. Um estraçalhamento da moral, um adultério, o risco de falhar, de ser humilhado, de ser preso, de acabar com a própria vida. Ele não agüentava mais. Por alguns instantes, se sentiu aliviado. Depois, voltou a ficar apreensivo.

2: Ana Flávia

- Uhh... ahn... estou cansada. – disse Ana Flávia, se levantando da cama. Oscar continuou deitado, arfando um pouco, suado. A sessão havia acabado. Nos últimos tempos, ela passara a preferir o atendimento em casa. O negócio estava se tornando verdadeiramente lucrativo. Alguns clientes chegavam a pagar 700 reais por sessão. Oscar pagava menos, apenas 400, que estavam todos em um bloco de notas de dez em algum lugar na sala. O apartamento era pequeno. Dois quartos em algum canto das 300 da Asa Norte. Para ela, que morava sozinha, era mais do que suficiente.
- Tá cada vez melhor, meu amor. – disse ele sorrindo, enquanto se levantava nu da cama. Ana Flávia se dirigia ao chuveiro, também toda nua, um corpo estonteante. Oscar era bem mais velho, alguns fios grisalhos já apareciam em sua cabeleira despenteada. De tudo já havia vivido: desde programas na adolescência até a militância durante a ditadura. Se considerava um homem correto, sem pecados. Acreditava que ia para o céu. Empregar uma prostituta nunca havia sido empecilho. Já havia transado muitas outras, com uma freqüência muito alta. Separou-se da primeira mulher graças a isso: sempre fora muito mulherengo. A segunda ainda não suspeitava de nada, para sua felicidade. Encontrava-se com Ana Flávia apenas uma vez por semana, nas quintas-feiras. Mas, para ele, era algo normal. Não se importava. Ana Flávia já fazia parte de sua vida. Era uma cúmplice, alguém que sabia de muitos de seus segredos políticos. Para ele, uma mulher louca, mas maravilhosa. Não via motivos para ser fiel. Podia ter, provavelmente, um dos melhores sexos da cidade. Ana Flávia geralmente era contratada para os mais altos figurões: magnatas estrangeiros, empresários, senadores. Ultimamente estava mais seletiva. Trabalhava apenas nos fins de semana e em mais dois dias da semana à escolha dela. Um deles era a Quinta-feira de Oscar.
- É mesmo. Tu não nega fogo também, né? – respondeu ela de dentro do chuveiro. Oscar ficou sentado na cama, olhando para o quarto da amante. Televisão, vídeo, fitas de vídeo, máquina fotográfica, alguns retratos. Um retrato de menina, de quando morava nos pampas gaúchos, com alguém que ele imaginou ser o pai, um homem alto, sorridente e austero. Quem olhasse para aquele quarto imaginaria uma vida normal. Havia revistas, livros, telefone. Quem poderia imaginar que aqueles inocentes ursinhos de pelúcia na estante pertenciam a uma puta?
- É você, aqui?
- Sou. Quem mais podia ser?- respondeu ela, rindo um pouco. Mesmo fazendo serviços para Oscar já há algum tempo, não gostava muito da intimidade que ele procurava impor. Trabalhava como uma profissional, mesmo para ele. Era uma mulher madura, já tinha lá seus vinte e tantos anos, ascensão social muito rápida. Havia sido selecionada num concurso de miss no Rio Grande do Sul quando tinha 13 anos. A partir daí, rodou por muitos lugares. Era modelo em São Paulo quando recebeu a proposta de trabalhar em Brasília. Cartel de prostituição, coisa pesada. Sabia de muitos esquemas sujos, tentava ser esperta. Se considerava uma pessoa esperta. Em Brasília, era ela e mais ninguém. Tinha poucos amigos, preferia se isolar e se sentia bastante confortável com isso. Gostava de trabalhar.
- Não sei. Podia ser algum parente, não? Quem é esse cara?
- É o meu pai. Ele é bonito, né?
- Parece ser. Onde é isso?
- Lá em Amurgo, onde eu nasci.
- Fica no Sul?
- É. No Rio Grande do Sul.
- Você já me disse alguma vez que era de lá?
- Não. Sei lá. Não sei. Pode ser.
- Não tem sotaque.
- É. Eu perdi. Faz muito tempo que eu não vou pra lá. Minha família, acho que pensou que eu morri. Eu desapareci.
- Nunca mais deu notícia?
- Não. Eles não aceitariam. – disse ela. A voz era um pouco rouca. Na verdade, ainda se ouvia um leve sotaque sulista. Era uma loura esbelta. Depois de alguns anos de profissão, criara alguma celulites, seu corpo ficara um pouco gasto, mas ainda era um sonho para qualquer homem. Os olhos eram verdes, fortes, penetrantes. Rejeitara a carreira internacional em prol da prostituição. Pensava que havia sido precipitada. Hoje, ela reconhecia alguma amigas da infância do sul nas revistas de moda e passarelas internacionais. Só a ela havia sido relegado esse destino. Mesmo assim, se considerava uma pessoa com sorte. Conhecia vários políticos e pessoas importantes. Quando alguma delegação internacional chegava a Brasília, se deliciava. O acesso à prostituição de luxo era muito simples, e fácil. Todos conheciam, todos sabiam onde. Alguns gringos pagavam até 1000 dólares. Já havia recebido 1500, 2000, muito dinheiro. “Do dinheiro que eles usam pra limpar a bunda”, dizia ela.
- “O Capital”? Não sabia que você lia essa coisas. – disse Oscar, olhando para a estante de livros. Nada de mais. Coisas de esoterismo, livros de auto-ajuda, Paulo Coelho e “O Capital”.
- Eu nunca li. Ganhei isso faz muito tempo. – respondeu ela.
- E porque nunca leu?
- Não me dá vontade. Parece grande. Todo mundo tem raiva desse cara.
- Quem? Marx?
- É. Não foi ele que escreveu esse livro?
- É, mas nem todo mundo tem raiva dele. Eu não tenho raiva dele. – disse Oscar, puxando o livro da estante. Era uma versão em alemão bem nova. Dentro, havia uma pequena dedicatória que dizia “para a melhor puta desse hemisfério. Alex”
- Nem o cara que me deu. Um comuna filha da puta.
- Alex?
- É. Eu nunca li também porque o livro é em alemão.
- Você sabe alguma coisa de alemão?
- Não. Esse Alex queria me levar pra Alemanha. Disse que lá eu podia ser uma rainha, uma coisa assim. Ele não falava português direito. – disse ela, enquanto saía do banho enrolada na toalha. Oscar continuava sentado nu na cama folheando o livro. Ana Flávia abriu o armário a começou a se vestir.
- Não vai se vestir, não? – perguntou ela.
- Posso tomar banho aí? Você tem uma toalha? – perguntou ele, enquanto fechava o livro.
- Pode, mas não se acostuma. E guarda o livro onde cê achou.
- Tá. – disse ele se levantando. Olhou novamente para o corpo dela, desta vez de camisola. Era uma noite fria e chuvosa. Os longos cabelos louros ainda estavam molhados. Se deteve por alguns instantes no olhar e entrou no banheiro.
- Dá vontade de mais uma, né? – disse ele, de dentro, rindo.
- Hoje não. E se quiser, tem que pôr mais 400. – respondeu ela enquanto trocava os lençóis da cama. Apesar de sempre parecer antipática com ele, Ana Flávia gostava de Oscar. Parecia ser um homem justo, de causas boas. Um maníaco por sexo que considerava a poligamia uma coisa saudável. Tinha uma bela esposa e belos filhos. Gostava de conversar com ele porque parecia ser alguém inteligente. Nem todos os deputados de esquerda eram assim. Alguns eram grossos, estúpidos, corruptos. Oscar era manso, mas também era metido em muita politicagem. Ele mesmo dissera pra ela: “no mundo da política não tem gente inocente. Todo mundo é culpado.”
- Eu tava brincando. Você continua dando praquele filho da puta?
- Qual?
- O Pestana.
- Às vezes. O Pestana é um escroto. Gosta de comer puta do Conic. Filho da puta... come duas, três por vez.
- É. Um filha da puta mesmo. De calibre grande. O esquema parece que tá armado.
- É mesmo? Você conseguiu grampear o telefone? – perguntou ela olhando para a porta. Parecia mais interessada.
- O quê? – perguntou ele do chuveiro.
- O esquema do grampo deu certo? – disse ela, levantando a voz.
- Parece que deu. Se você incitar umas conversas sigilosas no telefone...
- O quê? – perguntou ela.
- Vê se você conseguir fazer ele falar umas merdas no telefone! – respondeu ele quase gritando. De dentro do banheiro saía muito vapor. Oscar gostava da água muito quente.
- Não quero me meter nisso.
- Você já tá metida nisso, Ana. E você sabe disso.
- Não quero me meter mais. Se ele, você ou qualquer um se fuder, eu posso ir junto! Não tô afim disso!
- Tá bom, tá bom. Acho que tô pegando umas provas de um esquema grande. O Pestana tá mandando o dinheiro das obras pro exterior.
- Você já tem prova disso?
- Não. Só uns documentos, umas obras paradas. Ainda não dá pra chamar a CPI. Vou fazer papel de otário.
- Hm.. – murmurou ela enquanto ouvia o chuveiro ser desligado. O quarto já estava praticamente limpo outra vez. Os lençóis sujos estavam abarrotados dentro de um cesto, o chão já estava varrido. Gostava de ser uma mulher organizada. Foi até a sala e guardou o pagamento em uma caixinha. Já tinha muitas economias. Como só cuidava de si mesma, gastava pouco. Dentro de alguns anos já poderia abandonar de vez a profissão, sair do país, da cidade, publicar um livro. Tinha muitos planos. Tinha também interesse na política, queria chantagear todos os caras que a tinham transado.
- Tem toalha aí? – gritou ela da sala.
- Tem! – respondeu ele. Ana Flávia voltou ao quarto. Tudo arrumado. Olhou para as fotos na estante. Quem sabe algum dia pudesse voltar para o sul cheia de grana com alguma história doida? Talvez pudesse também aprender alemão. Olhou para o livro. Quem sabe não pudesse lê-lo algum dia também?
Oscar saiu do banho já vestido, penteado e perfumado. Era corpulento, cabeludo, alto. Era digno. Todos o consideravam um político honesto. Ana o achava bonito, sua voz era engraçada. Sempre parecia que estava falando por um cano. Vestia terno e gravata, como era obviamente de praxe para todo político. Estava sorridente, barbeado, se sentia bem. Ela também se sentia bem. Sorria enquanto abria a porta para ele ir. O que ele diria agora para a esposa? Muito trabalho? Jantar de negócios? Cervejinha com amigos? Quando ele foi, Ana voltou ao quarto e ligou a TV. Logo depois, o telefone tocou:
- Alô.
- Ana.
- Pestana?
- Eu mesmo, minha flor. Preciso de um favor seu. Pode ser?
- Não, eu... não tô afim.
- Como assim? A gente tem um contrato.
- Pestana, a gente resolve isso no Sábado, tá legal?
- Não, Ana. Eu preciso de você pra hoje. é um favor pra um camarada meu.
- Não quero saber, Pestana. Vai procurar outra vaca!
- Não fala assim, vadia!
- Não tô afim, Pestana! Quero ficar em casa!
- Porra, é pra um chegado meu! Você vai receber. É coisa rápida.
- Quem é o cara?
- Um bostinha. Cê nem vai cansar. O cara vai pagar!
- Quanto?
- Porra, quanto cê quer?
- Quinhentos.
- Tá. Foda-se. Quinhentos, então. Depois a gente acerta direito, vadia. Não tô afim de perder meu humor. Hoje eu tô de muito bom humor. Essa chuva que não pára...
- Tá. Tudo bem. Aqui em casa.
- Não. Pega o teu carro e vem pro hotel. Melhor ele não saber quem é você.
- Olha lá, hem Pestana! Não me enrola!
- Vem pro Hotel!
- Tá bom.
Ana suspirou. Mais trabalho em uma só noite. Agora chovia torrencialmente, como Pestana bem havia notificado. Pestana era um canalha, mas era sempre melhor não contrariá-lo. Se fosse receber mais 500 reais seria bom para as economias. Às vezes ele fazia isso. “Ana? Vem pra cá. Serviço pra você.” Não gostava dos jogos de Pestana. Muitas vezes ela ficara sem pagamento. Desta vez, não aconteceria. Iria lá, faria o serviço, pegaria o dinheiro e voltaria pra casa, para dormir. Desejou que toda a investigação de Oscar, da imprensa e da esquerda desse certo. Pestana era um assassino. Matava as putas, enrolava. Enrolava todo mundo. Teria que desmarcar outro compromisso. Uma das poucas amigas que tinha. Era uma vida dura, a de prostituta, mesmo uma de luxo, como ela. Quem é que quereria ser amigo de uma prostituta? Outras prostitutas, cafetões, políticos, pessoas doentes, só. Discou rapidamente o número e acendeu um cigarro:
- Alô? Ângela?
- Alô. Oi Ana! E aí?
- Não vou poder ir mais jantar hoje.
- Por quê? Trabalho?
- É.
- O cara do PT?
- Não. Esse já foi. Outro.
- Outro deputado?
- Não. Um “camarada” do Pestana.
- De novo?
- Ele disse que vai pagar 500.
- Bom, então, hein?
- É...mas eu tô cansada, mas foda-se. O que importa é a grana. Me desculpa, tá?
- Não tem problema nenhum, Ana. Eu também ia desmarcar.
- É? Por quê?
- Tenho um encontro também.
-. ...oh...! Legal! Nossa! Vai fazer isso mesmo?
- Vou. Tô cansada de esperar, já.
- Você sabe o que eu acho. Que bom! É o cara da academia?
- É. Vou lá. Se rolar... é... se rolar...
- Se rolar aproveita!
- Tá. Esse jantar fica pra outra. Depois você me liga. Tchau. – disse Ângela, desligando o telefone. Ana Flávia soltou um riso sarcástico. Considerava Ângela uma boa amiga. Pelo menos era uma amiga que não nutria preconceito algum. Tinha uma vida normal, muito dura, mas normal. Agora, era adúltera também.

3: Ângela Nogueira

Ângela se considerava uma pessoa simpática. Vinte e seis anos e se considerava também uma pessoa infeliz. Porque uma pessoa jovem e simpática tinha que ser infeliz? Era o que ela pensava enquanto terminava de se arrumar para sua mais nova empreitada: o adultério. Foram longas horas de discussões com amigas e consigo mesma para tomar aquela decisão. O que seria mais importante, afinal? A felicidade pessoal ou a felicidade dos outros? E havia como as duas conviverem simultaneamente? A conclusão a que ela havia chegado, junto com suas amigas, era que não. Não era possível encontrar felicidade tentando fazer os outros felizes. Parecia egoísta, mas parecia sensato. Chegara à conclusão de que as leis da civilidade e dos compromissos socais haviam sido criadas para serem desobedecidas. Porque tantas pessoas cometiam o adultério? Era imoral, mas e daí? O que é moral para uns não pode ser amoral para outros? Quem havia determinado o que era verdade, e onde? E por quê? Ângela pensava se os homens, caso o adultério fosse socialmente aceito, fariam isso com freqüência ou respeitariam as esposas, como num lindo casamento feliz entre duas pessoas completamente apaixonadas.
Ângela não entendia bem o porquê, mas passava com raiva o batom pelos lábios. Pensava em quão enfurecida estava naquele momento. Não borrava os lábios, que aos poucos adquiriam uma bela coloração rosada, mas às vezes perdia a firmeza. Tremia de medo. Não sabia porquê, mesmo depois de todas aquelas conversas e de profundas reflexões pessoais, estava com medo daquilo. Porque temer uma simples noitada com um homem que não era seu marido? Não conseguia relaxar, não conseguia sorrir. Pensava na palavra: “adultério”. Seria uma adúltera. Seria tão ruim assim? Caso seu marido descobrisse, seria mesmo aquelas coisas de que ele a chamaria: vadia, vagabunda, puta? Milhões de questões inundavam sua consciência. Sempre se considerara uma mulher direita, consciente, culta. Ia agora passar a ser uma vagabunda? Mas e se não sentia nada por seu marido? Tentava ficar tranqüila, mas não conseguia direito. Havia marcado às dez com o cara da academia, mas já eram dez e quinze, e nada. E nem ela estava pronta. Era uma moça baixa, mas magra. Ostentava um belo corpo, porém quase sempre cansado de tanto trabalhar. Tentava limpar as olheiras com um pouco de maquiagem. Aos poucos, o semblante de tristeza sumia. “Surge uma bela mulher!”, pensou ela enquanto terminava de pentear os cabelos negros, curtos e ondulados. Era o máximo que podia fazer.
Escolheu uma calça preta simples, uma blusa branca nova que revelava um pequeno decote, nada de mais. Enfeitava-se na medida do possível. Não era uma noite de gala. Botinhas pretas, alguns anéis, brincos novos. Há quanto tempo não saía à cata de um homem? Há um bom tempo nem saía com homem nenhum! Tentava entender a própria infelicidade. Porque teve aquele destino tão cruel? Lembrava-se que nenhum momento em sua vida desde o casamento havia sido feliz. Não conseguia entender o que havia visto naquele homem no início. Pensara que seria feliz, que ele a faria feliz. Ledo engano. Não tinha uma boa conversa, não se divertia, não ia ao cinema, não fazia nada! Não fodia, também. Sentia uma sufocante falta de sexo. Fernando era uma múmia, talvez tão infeliz quanto ela, mas não conseguia sentir nenhuma pena dele. Apenas raiva. Sentia raiva por todas aquelas maravilhosas promessas de felicidade e sucesso terem falhado. Ele não tinha parentes agradáveis, não tinha muitos amigos, não tinha um emprego decente! Não tinha nada. Não podia nem dizer que ele era ruim de cama, porque “cama” não existia. Seus olhos avermelharam-se. Nas últimas semanas, havia sido daquela forma: chorando o tempo todo, em todos os lugares, para todas as situações.
Ouviu uma buzina do lado de fora. Tentou secar os olhos com um lenço de papel e borrou-se um pouco. Olhou-se novamente no espelho: estava linda, mas ainda parecia triste. Não sabia o que esperar daquele sujeito da academia. Sabia que ele tentaria fodê-la, mas não conseguia pensar a respeito. Pensava que estava preparada para aquilo, mas não sabia ao certo o que aconteceria. Se Fernando descobrisse, provavelmente pediria o divórcio. Seria assim tão ruim? Foder com o primeiro cara musculoso que aparecesse? Não parecia má idéia. Se policiava para tratar sua felicidade pessoal como prioridade. Precisava de sexo, urgentemente. Era impossível viver sem sexo! Lembrava-se dos tempos de colégio e faculdade, quando isso era tão freqüente, e tão bom. Olhou na janela. Um Gol novo, azul, como ele havia dito. Era ele, o malhador simpático. Estava acomodado, os braços descansando sobre o volante. Haviam sido duas leves buzinadas. Ele não a havia percebido. Olhou-se mais uma vez no espelho e ajeitou cabelo com as mãos. Deixou um bilhete para Fernando Henrique, pegou a bolsa e desceu.

- Então você tem um consultório? – perguntou ele, enquanto se dirigiam a lugar-nenhum. Chamava-se Pedro. Enquanto ligava o som olhava os dotes da conhecida que ali se apresentava: era realmente muito bonita. “E gostosa”, pensou ele. Parecia uma moça bastante frágil. Falava baixo, a voz era aguda, mas enrouquecida. Ela olhava-o com desconfiança. Ele sorria. Porque não sorrir? Tentava encontrar uma rádio que combinasse com o clima romântico do encontro. Era bem sucedido, bonito, galante. Não falharia.
- Não. Estou atendendo por convênio. Queria um consultório. Queria atender particular. Convênio cansa demais. – respondeu Ângela, enquanto observava o ambiente. Ele vestia uma camisa pólo azul. O homem parecia gostar de azul. Segundo o que sabia, ele era um boa-vida, gerente de uma loja de roupas. Parecia ser filho de quem já tinha dinheiro. Encaixava-se bem ao perfil. Era perfeito demais. Faltava só ser inteligente.
- Você trabalha numa loja? – continuou ela.
- Trabalho. Gerencio, como eu te disse. Uma loja de roupa no Conjunto Nacional. Se chama Tolloui. Conhece?
- Conheço, conheço. Já até comprei roupa lá. Parei de comprar roupa faz um tempo. – respondeu Ângela. Sua voz cada vez se diminuía mais. Não sabia o que a fazia se encolher diante daquele homem. Sentia-se muito intimidada. Sentiu novamente vontade de chorar. Não chorava por seu marido, mas por si mesma. Tentava lembra-se dos caminhos errados tomados na vida, quando saiu de casa cedo, e as intermináveis horas de desemprego. Não sabia se valeria a pena desistir de tudo, tentar recomeçar, uma nova faculdade, talvez, uma nova vida, um novo homem. Sentia medo. Sentia medo de que não conseguisse mudar nada, e de que sua vida fosse definhando aos poucos. Tentava tomar fôlego, coragem. Por mais que se interessasse por ele sexualmente, não conseguia se interessar de verdade por aquele Pedro. Não gostava de tentar. Era isso.
- Você tá legal? Parece que você não tá muito bem. É alguma coisa? – perguntou ele. Mostrava-se compreensivo, mas não entendia direito as mulheres. Não era casado nem compromissado. Vivia de galinhagem, gostava daquilo, mas sempre tinha que cruzar com os malditos problemas das mulheres. Menstruação, crises de consciência, histeria, complexos e mais complexos. Mas estava bastante acostumado. Sabia lidar com aquilo. Mulheres não eram felizes.
- ... não...eu só... – murmurou ela, sem conseguir completar. Estava chorando de novo. Pedro parecia um homem compreensivo. Ela queria apenas ser ouvida.
- Eu não sei se você fuma, mas eu tenho cigarro aqui. Você quer? – perguntou ele ainda questionando os motivos daquilo tudo.
- Quero! – exclamou ela de imediato. Estava nervosa. – por favor. Você gosta de fumar?
- Não muito, mas às vezes, sim. Não sou muito compulsivo.
- Eu sou. Muito. Ia comprar uma carteira aonde a gente parasse. – disse Ângela, chorosa.
- O que há com você? Não gosta de mim? Eu entendo se não estiver te agradando isso aqui. Entendo! Mas você tem que me explicar o que é que há! Está com medo de mim? Você parecia bem aquele dia na Academia... – ele tentava ser manso, para não assustá-la.
- Sim... malhar faz bem pra mim. São momentos que eu me sinto bem...
- Então...
- Eu não gosto de sair! Tenho medo de tudo! – disse ela enquanto escorria uma lágrima borrada de seu olho direito.
- Olha...você tá se borrando...! Não precisa chorar..! Você quer ir pra casa?
-...não! Não! Não é isso. É bom estar saindo aqui com você!
- Então, o que há? – perguntou ele. Não esperava por uma pobre mal-amada. Queria apenas se divertir. Tudo corria bastante bem: sairia com uma mulher interessante numa Quinta-feira, com grande possibilidade de conseguir um relacionamento de muitos dias. Era ótimo. Estava em uma grande fase de sua vida. Solteiro, ganhando bastante dinheiro, tinha muitas mulheres. Não gostaria de se aborrecer naquela noite. Mesmo assim, demonstrava apenas paciência.
- Eu tenho medo de sair na rua... – respondeu Ângela, já com a voz distorcida pelo choro.
- Como assim?
- Eu saí de casa muito nova, com só dezoito anos... só dezoito anos...
- Sim, mas... – Pedro não compreendia. Aos poucos, ele ficava impaciente. Ela não explicava nada direito. Seria difícil entender o que se passava na cabeça daquela mulher. Seriam todas as mulheres loucas?
- Eu saí de casa, achei que seria uma maravilha! Eu achei que ia me dar bem, fazer faculdade, que não precisava de mais ninguém, entende?
- Sim! Mas o que aconteceu? Você está sem dinheiro? E a sua família? Onde ela tá?
- Minha mãe morreu faz uns três meses. Eu não consigo me recuperar disso! Não consigo! Minha mãe morreu por minha causa, eu tenho certeza!
- Sua mãe não morreu por sua causa. Não morreu por sua causa! Os filhos são os filhos! Os pais não tem que se culpar pelo que os filhos fazem!
- Ela me disse! – falou Ângela. Logo depois, ele procurou um lenço de papel no porta-luvas. Não havia. O rosto dela marcava-se pelas lágrimas. Pedro sentiu um aperto no peito. Não sabia bem como agir diante daquilo.
- A minha vida é um inferno! Você pode ver isso? Um inferno! Meu marido é um merda que eu detesto! Destruí a minha vida pra casar com ele! Minha mãe me disse que morreu por minha causa! Ela me disse! Dois dias antes de morrer, ela disse: “Ângela, eu tô sofrendo por sua causa! Porque você foi ingrata e me abandonou!” – ela agora chorava desmedidamente. Sentia uma vergonha imensa, mas não conseguia parar. Achava patético. Aquela cena, para ela, simbolizava a sua vida. Chorava e berrava diante de um desconhecido que só tinha interesse no corpo dela.
- Calma. Eu vou te levar pra casa. Você não tá legal. Outro dia a gente sai.
- Não! Eu não quero ir pra casa! Ele vai tá lá. Vai me ver assim! Não tem jeito!
- Porque você não me disse que era casada? Pensei que você fosse solteira!
- Eu sou casada! No começo, eu gostava dele! Eu amava ele! Mas hoje ele não faz nada! Ele não serve pra nada! Ele não sabe se divertir, não gosta de nada, não sabe fazer nada!
- Porque você não se separa dele?
- Porque eu tenho medo! Eu fugi da minha casa! Disse pra minha família que ia embora, que não precisava deles, que não gostava deles, que não agradecia por nada que eles tinham feito! Minha mãe morreu. Meu pai e meu irmão me odeiam! Não posso voltar. Meu marido é a minha família! A gente não tem dinheiro pra fazer nada. Eu tenho muito medo do que pode acontecer comigo. Se eu largar ele, não vai sobrar nada pra mim..!
- Calma. Fuma um cigarro. Eu posso fazer alguma coisa por você. Não precisa desse medo todo. Essas pessoas que têm medo de tudo não conseguem subir na vida. Você pode subir na vida.
- Me desculpa, me desculpa. Eu tô descontrolada ultimamente. Eu não sei mesmo o que fazer... não tô ganhando nada com esse emprego. O Estado não paga nada, você consegue ver isso? Eu não ganho nada...!
- Calma. Eu acho que posso te ajudar. Se você quiser, pode trabalhar na loja, eu arrumo um lugar pra você lá. A gente tem quatro filiais. Você é bonita. Pode trabalhar lá com certeza. Vai ser até bom ter você lá.
- Não, eu não posso aceitar isso. Eu mal te conheço! Você não devia estar ouvindo isso. A gente só ia sair...
- A gente ainda vai sair. Você está muito desesperada. As coisas que você fez no passado, você não pode mais desfazer. Não adianta ficar desesperada! Você tem que tentar se entender. O que o seu marido faz? Você não pode pedir ajuda pra nenhum parente? – aos poucos, Pedro tentava entendê-la. Não podia jogar o corpo fora em uma situação como aquela. Não podia simplesmente abandoná-la de novo na casa dela e nunca mais vê-la. Apesar de todo aquele escândalo e toda aquela situação inesperada, havia gostado dela. Pensava se apenas pela beleza ou se também pela personalidade. Havia gostado do jeito dela. Sentia um pouco de pena, e sentia-se sentido. Era uma bela mulher. Talvez a aparência realmente fosse vital para ascensão social de uma mulher. Ou de qualquer ser humano...
- Ninguém gosta de mim na família. Eu xinguei todos eles! Reneguei tudo! Eu não queria nada com eles. Meu Deus, hoje eu tô arrependida! Muito arrependida! Eu estraguei minha vida!
- Você vai viver muito, ainda! Você tá só traumatizada por que sua mãe morreu! Todo mundo morre, e você tem que encarar isso! O que o seu marido faz?
- Trabalha no BrB. Eu gostava tanto dele... mas a gente não transa mais! Ele virou brocha! Eu tô te dizendo isso, eu tô desesperada!
- Mas porque ele virou brocha?
- Eu não sei! Foi a gente! A gente conduziu a isso. A gente é muito novo pra passar por essas coisas...
- Será que ele não é bicha?
- Eu não sei. Eu sentia pena dele, mas não sinto mais. Agora só sinto raiva! Ele não faz nada! Mas sofre também. – disse ela. Agora, estava mais calma. Já tinha parado de chorar. Pedro sentiu-se aliviado. Guiava estrategicamente o carro dando voltas pelas comerciais e eixos da Asa Norte.
- Acho que você precisa se divertir um pouco. Você gosta de dançar? A gente pode ir pruma boate qualquer. Não preocupa com dinheiro. Eu pago tudo pra você.
- Tá bom... pra onde a gente vai?
- Não sei. Você gosta de algum lugar em especial? Você gosta de boates?
- Gosto, gosto, eu gosto de dançar. Vamos lá, sim. Pode ser qualquer uma.
- Tá bom. Vou te levar pra uma que acho legal. Você não tem mais nenhum amigo que pode te ajudar, nada?
- Tenho algumas amigas, mas tô muito distante delas nos últimos tempos. Tem uma amiga que é muito amiga mesmo. Ela é prostituta. – disse Ângela. Pedro ficou estupefato. Quem seria essa bela mulher sentada ao seu lado, cuja melhor amiga era um prostituta?
- Prostituta?
- De luxo. Ganha muito, muito mais do que eu. Ela é linda, sabe? Uma loira linda, de olhos verdes.
- Uh. Quanto ela ganha?
- Quando faz serviço pra caras muito ricos, ela ganha muito mesmo. Mil... por aí.
- Nossa... Como você conheceu ela?
- Eu fazia Yoga com ela, acredita? Há muito tempo, isso. Eu morei com ela um tempo.
- Você morou com ela??
- Morei, mas fica tranqüilo. Eu nunca fui prostituta. E naquela época ela não fazia serviço em casa. Hoje ela faz serviço em casa. Numa casa maior. Morei com ela quando saí da minha casa. Aí, eu conheci o Fernando Henrique e me separei dela.
- Fernando Henrique?
- É. Eu me casei com o presidente.
- Pelo menos não era Fernando Collor! – disse Pedro. Ângela sorriu. Ao menos, ela sabia alguma coisa sobre ele: tinha bom humor. Sentia-se melhor. Aos poucos, perdia o medo. Falava sempre com orgulho de Ana Flávia. Parecia sempre que tudo o que ela dizia estava certo. Segurava a língua pra não falar mais coisas, tramas políticas, nomes importantes. Ana Flávia lhe pedia isso com consideração. Informação é arma.
- Meu apartamento está vazio. Eu moro sozinho. Tem uns vinhos lá. Não sei se você bebe, mas se você quiser, depois a gente pode ir pra lá.
- Tá bom, tá bom. Vamos lá dançar, depois a gente vê isso.

4: Carlos Eduardo

Fernando estava tenso. Enquanto dirigia seu Escort que logo seria sacrificado, tentava se concentrar. Nunca na vida havia pedido pelos serviços de uma prostituta na vida. Arrependia-se, já, de ter tomado aquela decisão, mas agora não podia voltar atrás. Pestana não parecia ser alguém que gostasse de ser contrariado. Ele estava dirigindo o carro da frente, um importado que ele não conhecia. Ligou o rádio para ver se conseguia relaxar um pouco. Encontrou uma rádio onde João Gilberto dizia “se você disser que eu desafino, amor...”, pensou se seria a ocasião, deixou tocando. Suas mãos tremiam no volante. Não tinha falado com Ângela, precisaria inventar uma desculpa qualquer. Mas procurava não se preocupar com isso. Quando ele chegasse, ela já estaria dormindo. Pensava em como Ângela reagiria se descobrisse aquilo. Sabia que a falta de sexo entre eles era um problema dele, não dela. Será que quereria o divórcio? Olhou no relógio: meia noite. Cada vez que se aproximavam mais do setor de hotéis, ele ficava mais tenso. Tinha que trabalhar no dia seguinte, mas já tinha aceitado a condição. Será que Pestana não trabalhava, não se preocupava com horários, nada?
Não demorou até chegarem ao setor de hotéis. A chuva estava bem mais fraca, o trânsito não era problema. Era uma noite de Quinta-feira. As pessoas comuns iam para a cama a essa hora. Olhou para o centro da cidade, para a esplanada: “Quanta sujeira”, pensou. A cidade estava linda, sob o tom da iluminação verde dos palácios. Os hotéis estavam todos iluminados, o céu estava escuro. “...saiba que isso em mim provoca imensa dor”, dizia João Gilberto enquanto Fernando seguia o importado de Pestana. “Vamos até o hotel Nacional. Ela vai tá lá.”. Na hora, ele pensou em perguntar algo a respeito do pagamento, mas preferiu se omitir. Afinal, Pestana havia pago a cerveja. Ele estava oferecendo, então parecia justo que essa mulher fosse também uma cortesia. Aos poucos, conseguia relaxar e até ficar excitado. Mesmo assim, o coração batia rapidamente. Estava muito nervoso. Olhou para o Congresso, isolado em sua iluminação, com o semblante de um palácio imperial. Era realmente grandioso, aquele local. Ali, as decisões de grande escalão eram tomadas. Pensou que uma ou duas bombas fariam um grande estrago. Nem parecia uma má idéia. Depois, riu de si mesmo. Estava já se descontraindo. Desligou o rádio. Achava, agora, que João Gilberto não combinava muito com o clima. Estava dirigindo bêbado por uma pista molhada. Não queria se envolver em acidente nenhum. Rezava para que Pestana não fizesse nada com o carro dele. Pestana dirigia muito mal, ele podia ver. Por duas vezes subira o meio fio. Os pneus gritavam, ele passava rasante sobre muitas poças d’água. Era assustador.

Quando Pestana abriu a porta do quarto 706 do Hotel Nacional, Fernando sentiu um calafrio. Entraram, e havia lá dentro apenas um homem estranho. Chamava-se Carlos Eduardo. Era conhecido como Cadu. O quarto era, naturalmente, enorme. O Hotel Nacional era um dos maiores de Brasília, um prédio alto, que se destacava mesmo entre os muitos outros hotéis do lugar. Fernando sabia que coisas muito sujas aconteciam diariamente no setor de hotéis, mas não imaginava que um dia veria aquilo, e muito menos que participaria daquilo. Cadu estava sentado em uma poltrona em frente a uma mesinha de vidro, assistindo televisão. Era um sujeito muito branco e magro, e parecia ter passado naquele quarto o dia todo. Em cima da mesinha estavam oito latas de cerveja, um cinzeiro atolado, um vaso com flores de plástico, uma livro e uns papelotes. Cadu olhou-o com desconfiança, e depois voltou o olhar para Pestana. Logo notou que ambos estavam embriagados. Suspeitava que Pestana pudesse ter cometido alguma idiotice.
- Quem é esse, Pestana? – perguntou ele, se levantando e cumprimentando o deputado.
- É um amigo. Trouxe ele pra ver a Ana. Onde ela tá? – respondeu Pestana, sentando-se no sofá logo depois. Parecia sentir-se em casa no local. A sala era enorme, havia belas cortinas rosadas, o ar estava enfumaçado. Havia também um bar enorme, e várias garrafas abertas, cálices e copos sobre a mesa. Pestana foi até a geladeira e encheu um copo azul com gelo. Depois, serviu-se de Uísque.
- Ela não trabalha hoje. – respondeu Cadu, olhando desconfiado. Era um homem enfezado, gostava de fazer o serviço corretamente. Geralmente, não cometia erros. Odiava-os, e tomava sempre as precauções necessárias para evitá-los.
- Ela vai fazer um extra pra esse meu amigo, aqui. É o Fernando. Esse é o Cadu, Fernando. Ele trabalha aqui comigo. – respondeu Pestana. Cadu olhou-o extraviado. Havia já dois meses que Pestana não reorganizava as coisas nos negócios, não pagava ninguém, não mostrava nenhuma competência administrativa. Aquele era o dia escolhido para uma conversa importante, que arrumaria alguns pontos essenciais, mas Pestana trouxera um amigo para foder com a puta de luxo dele. Cadu estava enfurecido. A inconseqüência de Pestana o irritava. Sabia que tudo terminaria em lixo se ele não fizesse nada.
- Pestana, eu tô aqui porque preciso acertar aquelas coisas com você. Meu horário até já passou aqui. – resmungou ele enquanto passava os canais americanos da TV 29 polegadas que estava atrás da mesinha.
- Agüenta um pouco aí, Cadu. Até a Ana chegar. Aí, a gente sai e resolve esses problemas. – respondeu Pestana, indicando um lugar no sofá para Fernando se sentar também. A sala era bem grande, luxuosa o suficiente para acomodar hóspedes internacionais de grande escalão.
- Porra, eu já tô esperando aqui o dia todo. Não agüento mais esse lugar. E não agüento mais essas suas merdas, também! Não dá pra fazer negócio com você, Pestana! Se continuar assim, você tá fodido. Você tá fodido, eu tô fodido, todo mundo no mesmo barco! – disse Cadu, levantando o tom de voz. Parecia estar verdadeiramente irritado. Se remexia na cadeira, fumava. Fernando se assustou. Tentava imaginar que tipo de negócio aqueles dois tinham, e porquê todo mundo estava “fodido” se “continuasse assim”. Na verdade, estava mais tenso do que nunca. Era um noite de Quinta-feira, e estava perdido em um quarto de hotel com um Deputado certamente envolvido em negócios ilegais e com alguma espécie de sócio dele, mais assustador ainda.
- Cala a boca, Cadu. Já disse que depois a gente discute isso. – respondeu Pestana. Apesar de todos os chopes e toda e euforia demonstrada no bar e durante o percurso até o hotel, ele parecia bem mais sóbrio agora. Fernando não conseguia acreditar na esquisitice daquele homem, e preferia não se envolver. Sentara-se no canto do sofá e não abrira a boca para dizer uma palavra até aquele instante. Cadu passava os canais da TV a cada três segundos. Parecia mesmo exausto. A camisa estava aberta, os cabelos despenteados, ele fedia a sovaco. Odiava trabalhar com deputados, mas odiava mais ainda trabalhar com Pestana em especial. Achava-o um troglodita descerebrado, odiava a impulsividade com que ele fazia as coisas. Sentia que o negócio com Pestana ia por água abaixo.
- Sentaí, Fernando. Ela deve chegar logo. Como tá chovendo, ela deve ter se enrolado no trânsito. E mulher, mesmo sendo puta, se atrasa sempre. Não liga pra esse viado do Cadu, ele só sabe reclamar. Haha. – continuou Pestana, rindo. O clima dentro da sala era o mais denso possível. Fernando podia ver a ira nos olhos de Cadu enquanto passava os canais da TV a cabo. Imaginava se aquele homem era um contato de Pestana dentro do bicho, ou das empreiteiras, ou dos transportes ilegais. Depois, observou Pestana abrir os papelotes em cima da mesa e começar a enrolar um canudinho com um panfleto de vidraçaria que havia retirado do bolso. Era pó, como ele havia imaginado. Quatro pacotinhos de cocaína. Cadu estaria envolvido com o tráfico de drogas, então? Talvez fosse apenas um usuário, não havia como saber. Pestana, então, sem dizer nada, começou a preparar as carreiras com um cartão de crédito em cima da um livro sobre casas suíças na mesa de vidro. Cadu bufava da poltrona.
- É disso que eu tô falando, Pestana, e você sabe.
- Já disse pra calar a boca, seu merda. – respondeu Pestana, enquanto terminava de retocar as três fileirinhas. Os olhos de Fernando pareciam atemorizados. Por um relance, Cadu olhou para ele e deu uma breve risada. Sabia que Pestana estava fazendo alguma besteira. Sentia pena do rapaz que estava sentado ali do lado, confiando o que quer que fosse em um desequilibrado como aquele. Riu, mas logo depois se fez sério. Toda aquela coca e provavelmente toda a coca que Pestana já cheirara na vida havia sido fornecida por ele. Se lembrava bem de quando haviam feito os primeiros negócios. Não conhecia Pestana. Não sabia que não poderia fazer negócios com ele. Depois, ficou sabendo dos casos no Nordeste. Mais de trinta mortes, muitas delas efetuadas pelas próprias mãos. Se lembrava que Pestana estava muito excitado na ocasião. Comprara meio quilo de uma só vez, começou a beber muito, pagou uísque e a cachaça para todos os presentes. Lembrava-se que Pestana estourara uma garrafa de Gold Label na cabeça de um dos meninos que estavam lá assistindo a negociação, sem nenhum motivo aparente. Os outros três traficantes tentaram reagir, tentaram linchá-lo. Cadu riu. Ele era um dos três. Nunca havia visto ninguém brigar com tanta selvageria. O homem era baixo, mas imenso. Com meia garrafa de uísque na mão desmaiou os outros dois. Só havia sobrado ele, Cadu, o chefe das transações. Lembrava-se que Pestana berrava feito um louco dentro da sua própria casa. Não tinha medo nenhum da polícia. Quando ele sacou a arma, Pestana sacou uma de dentro de uma gaveta também. E Pestana era o deputado presente ali. Teve que seguir as regras dele. Não podia matar um deputado, senão seu próprio couro seria caçado. O que valiam aqueles meninos cuja cabeça havia sido arrebentada por aquele gorila? Nada. Eles não valiam nada, por isso o negócio foi pra frente.
- mmhhnnf... – foi tudo o que Cadu conseguiu expressar. Já havia entrado em contato com gente do pior calibre naquela cidade. Morara na Ceilândia, sabia o que era verdadeiramente violento ali. Fazia parte do tráfico de drogas, sabia quem era quem dentro das satélites, já havia recebido duas ameaças de morte de outros criminosos. Já havia participado de tiroteio, já vira muita gente morrer, gente sendo espancada. Mesmo assim, ficava inquieto quando tinha que tratar negócios com Pestana. Sabia que o homem fizera fortuna no Nordeste subindo por degraus e degraus de histórias meladas com muito sangue. Mas Pestana era muito protegido. Desde que se elegera deputado, tinha se tornado praticamente intocável. Só alguém não comprometido com a lei poderia derrubá-lo, afinal, era o próprio Pestana que garantia a proteção da polícia em boa parte das zonas de troca. Era Pestana quem trazia a droga no seu jato, não tinha alfândega, não tinha nada. No começo, Pestana realmente havia sido um grande negócio. Fazia as coisas prosperarem, pagava os aviões. Ele mesmo cobrava apenas a sua parte no lucro, e as alianças naturais que esse tipo de negócio oferece. Depois, começou a desandar. Cadu desconfiava que havia sido a cocaína, mas pensava também que ele já era assim antes disso. Pestana começou a atrasar os pagamentos, a atrasar as entregas e a perder a organização do negócio. Os próprios barões da Colômbia, que era de onde vinha a droga, já haviam reclamado da falta de fluxo das trocas. Eles mandavam muita droga para Brasília, mas recebiam pouco dinheiro de volta. Pestana desviava. As cargas vinham com menos do que parecia. Pestana misturava outras merdas no pó, e eles ainda não sabiam quem fazia isso por ele. Aos poucos, todos começaram a ficar contra ele, e ele contra todos. Cadu era o único que conseguia travar diálogos com ele. A morte dele já havia sido encomendada, mas o homem era mais poderoso do que parecia. Naquele momento, mexer com Pestana era mexer com muito mais gente, principalmente relacionada aos outros negócios dele, como o jogo do bicho e até mesmo outros políticos com poder dentro do crime organizado. Pestana era um problema.
- Isso é coca, Fernando. Já experimentou? Cocaine? – disse Pestana, após cheirar as três fileiras com o canudinho e encher os pulmões de ar. Fernando ficara tenso novamente. Não podia encarar aquelas atitudes e aquelas pessoas como normais. Não sabia no que estava se metendo, mas já podia fazer idéia. Pensava que aquela seria uma história para guardar e contar quando estivesse velho. Uma pequena viagem ao submundo, e a tal da puta ainda nem havia chegado. Não conseguia se concentrar, não imaginava o que faria quando ela chegasse. Mas agora não tinha mais volta. Era uma oportunidade única. Tentava se tranqüilizar e se convencer de que seu problema poderia ser resolvido ali. Ângela mesmo poderia gostar do resultado. Começava a recuperar a auto-estima. Pestana não faria nada com ele, era o seu próprio convidado. Mesmo assim, continuava se sentindo inquieto e angustiado. Por quanto tempo mais demoraria? Olhou para a TV, para ver se se acalmava, mas a presença de Pestana ao seu lado o incomodava. Além alcoólatra, o sujeito era um cheirador. Não tardou a perder a confiança que havia adquirido no bar. Que outros podres ele não esconderia?
- Não, não. – respondeu.
- Não precisa ter medo. É bom. Lembra do que eu disse. Medo é pros fracos.
- Não, mas eu vou ficar aqui mesmo. Eu... não quero isso, não.
- Tudo bem, tudo bem. Eu entendo. Não quer dar uma cheirada também não, Cadu?
- Não, Pestana. Meu horário já passou aqui há muito tempo. Tô aqui desde a tarde. Quero falar sobre o negócio da grana!
- Olha lá, Cadu. Já disse que eu não quero falar isso agora! Espera a Ana chegar que a gente sai!
- Porra, eu não quero saber! Você só faz merda! Tá dando mole! Os barões tão ficando puto com as tuas merdas, seu filha da puta! Eu quero a grana que você deve pra gente! E a tua proteção não tá adiantando de nada!
- Cê tá muito abusado, seu merda! Eu determino aqui quando a gente fala! – respondeu Pestana, se levantando. Cadu olhava cheio de raiva. Havia se levantado também. O coração de Fernando estava a mil. Simplesmente não acreditava no que havia se metido. Estava fragilizado, queria ir embora. Queria sair correndo dali e se esconder debaixo das cobertas. Queria abraçar Ângela, queria nunca mais pensar em traí-la novamente. Queria que tudo voltasse a ser como antes. Mas sabia que isso não aconteceria.
- Você tá fodido, Pestana! A gente vai te matar! A gente vai comer seu couro! – respondeu Cadu, apontando o dedo para Pestana. Logo depois, Fernando se jogou para o chão. Pestana havia derrubado Cadu sobre a mesinha, que se estilhaçou, levando junto toda a cocaína, as latas de cerveja, as flores de plástico, o cinzeiro atolado e o livro com fotos de casas suíças. O barulho era enervante. Pestana continuava sobre Cadu batendo forte em seu rosto. A cena era furiosa. O deputado parecia um monstro. Era quase duas vezes a massa de Cadu, que mal conseguia reagir. Pouco depois, Pestana se levantou. Cadu estava estirado no chão, a cara ensangüentada. Recebeu, ainda, mais alguns chutes raivosos do agressor, que retirou a camisa suja de sangue e se sentou no sofá depois disso.
- Merdinha... – resmungou ele, olhando para o homem desmaiado no chão. Fernando Henrique não conseguia falar. Estava tremendo, encolhido, mais do que impressionado.
- Não se preocupe, Fernando. Isso aí é raça ruim. – dizia Pestana, com a voz alterada. – Vende droga pras crianças na Ceilândia, no Gama, nessas porra toda...
- Isso aí merece apanhar muito, Fernando. – continuava ele. Fernando continuava sem dizer nada.
- Não precisa ficar assustado. Eu cuido disso aqui. Desse entulho aqui. Me matar! Hahaha! Me matar! No dia que um merda desse me matar, aí... aí...
- Por favor, Pestana. Acho que hoje não dá pra eu... – disse Fernando, criando coragem, pela primeira vez. Estava assustado demais para continuar com aquilo.
- Não, não se preocupe! Eu vou tirar esse cara daqui e limpar tudo. Eu te prometi uma noite boa, e vou te dar uma noite boa. Aliás.. vou te dar outro quarto. Quando a Ana chegar, te dou a chave do outro quarto. Ela vai saber fazer você perder essa tensão. Vai ser uma puta noite pra você! Pode deixar! Ninguém aqui viu nem ouviu nada disso aqui. Mas você deve saber que se você falar alguma coisa que viu aqui pra qualquer um, você tá morto também... sabe disso, né? – Pestana dizia as coisas rapidamente, olhando para os lados. Às vezes comia letras, se engasgava. Parecia nervoso, também.
- Tá, tá. Tá bom. – respondeu Fernando, finalmente. O que poderia fazer, afinal?

5: Fernando Henrique + Ana Flávia

Quando abriu a porta do quarto 402 do Hotel Nacional, Ana Flávia não acreditou no que viu. Estava lá, sentado em uma poltrona, calado, à sua espera, o marido de sua melhor amiga. Fernando Henrique Nogueira. Pestana a guiara até lá, sujo de sangue. Já tinha desconfiado do que poderia vir adiante, mas certamente não imaginara aquilo. Que diabos Fernando estava fazendo ali? Não era correto, não era possível. Não era certo! Estava estupefata. Estava nervosa, não podia acreditar naquilo. Primeiro, tinha que fazer um serviço extra, em um dia errado, depois da meia-noite. Depois, teve que agüentar as neuroses e palavra vagas de Pestana, dizendo pra ela “não se preocupe, você não tem nada a ver com isso, fui eu que fiz isso, Cadu filhadaputa”, entre outras coisas menos esclarecedoras. Estava fervendo. Não sabia nem se conseguiria trabalhar. E, é claro, por fim, aquilo. Parou diante da porta e ficou olhando por alguns segundos, sem conseguir dizer uma palavra sequer. Então, era isso? Ele nunca comia Ângela, uma mulher extremamente carinhosa e atraente, não conseguia levantar seu maldito pau pra ela, mas iria gastar quinhentos reais com ela? Com ela própria? Ana Flávia? E o que Pestana tinha a ver com aquilo? Desde quando Fernando conhecia Pestana? Sua mente fervilhava. O que diria, agora? “Fernando, sou uma puta. Vem me comer”? Fingiria que não o conhecia? Sairia correndo? Ou diria apenas “Fernando”?
- Ana Flávia? – disse Fernando, antes. Sua surpresa não foi menor ao ver a melhor amiga de sua esposa. Seu coração imediatamente disparou. Ele simplesmente não entendia o que se passava. O que estaria acontecendo? Teria o mundo enlouquecido? Todos, então, todas as pessoas do mundo tinham segredos ocultos do calibre de... ser uma prostituta ou de... consultar uma prostituta? E Ângela? O que sabia disso? Era armado? Ela teria o seguido? Que diabos Ana Flávia estava fazendo ali? Sentiu uma bigorna de dez toneladas caindo sobre sua cabeça. O mundo era cruel. Não bastava tudo aquilo por qual já tinha passado: impotência, álcool, Pestana, cocaína, Cadu? Tinham que dar vinte tiros nele e, depois que estivesse no chão, tinham que chutá-lo e linchá-lo? O que estava acontecendo? O que estava acontecendo? O QUE ESTAVA ACONTECENDO?
- Fernando? – respondeu ela, ainda alguns segundos depois. Era real. Não era sonho, não era uma brincadeira da mente dela. Era real! O homem, suposto amigo de Pestana, que a havia contratado, era Fernando Henrique Nogueira, marido de Ângela Fontes Nogueira, que nesse mesmo dia seria comida por algum playboy qualquer de uma academia qualquer. O mundo dá voltas. O mundo só dá voltas.
- Ana Flávia, que porra é essa? – perguntou ele, levantando-se ansioso da poltrona. O quarto era praticamente idêntico ao outro, mas limpo e intocado. Pestana já havia ido embora, levara Ana apenas até a porta. Fernando olhava para os lados, para ver se tudo estava certo, se tudo continuava igual. Pensava que podia ter ficado louco, o que determinaria acontecimentos como aqueles? Era a noite mais intensa da sua vida. Estava decidido: fosse o que fosse, voltaria para casa.
- Eu não sei!! O que você tá fazendo aqui?? – disse ela, levantando a voz. Estava prestes a ter um ataque histérico. Pensou na amiga: “vagabundo desgraçado!” Naquele momento, odiava Fernando. Não tinha ouvido nada, nenhuma explicação, mas o odiava. Ana Flávia amava Ângela, não poderia desejar nada além da felicidade eterna para ela. E já desgostava de Fernando desde o começo. Sempre o achara um banana, homem sem atitude, um zé ninguém, um mosca morta. Agora, o achava um pervertido desgraçado, sádico machista, filho da puta, filho da puta! Achava que tinha esse direito de infligir mais sofrimento em uma mulher tão dócil quanto Ângela? Queria esganá-lo. Nunca havia se conformado com aquele casamento. Ângela merecia um homem dinâmico, que soubesse dar prazer a ela. Fernando era um caixa! O que um homem com diploma universitário estava fazendo como caixa? Não tinha nem parentes, quase nenhum amigo, e os poucos que tinha era perdedores como ele. Fernando não oferecia nada! Se casar com esse homem, para Ana Flávia, era tanta cegueira que ela não podia entender. Não entendia, de forma alguma.
- Peraí! Primeiro você me explica! O que é isso? O que é isso? Você é a puta? Você é a puta? É você? Você? – disse Fernando, apontando o indicador. Agora, ria. Não podia fazer mais nada. Conhecia Ana Flávia como dentista, assim como sua mulher. Nunca ouvira falar de nada a respeito de prostituição, hotel nacional, Pestana. Já havia se encontrado com Ana Flávia centenas de vezes. Era a melhor amiga da sua esposa! A melhor amiga de sua esposa, a prostituta que ele havia contratado! Lembrava-se que achava Ana Flávia uma mulher agradável, do tipo mulher independente, solteira, que não se prende a homem algum. Sempre pensou que fosse meio vagabunda, mas nunca, em nenhum momento de sua vida, passara por sua cabeça a verdade. Aquela verdade. Será que era mais idiota do que pensava? Tentava, nas poucas frações de segundos entre as falas na conversa dos dois, imaginar como nunca havia percebido aquilo. Pensava em segredos horríveis, casos de lesbianismo, drogas, adultério. O que seria Ângela, então?
- Sou, seu escroto! Sou, mas sou mais digna que você, que não consegue comer a própria mulher e vem gastar a grana das despesas da casa com puta! Você sabe quanto custa o serviço, seu...? – vociferou ela. Os nervos estavam à flor da pele. Ana Flávia era uma mulher nervosa, e se tinha uma coisa que odiava, era hipocrisia. E, se tinha uma que odiava mais do que hipocrisia, era machismo.
- Calmaí! Você não sabe de nada! Eu não vim gastar a grana da despesa! Porra, o que você tem a ver com a minha vida? – respondeu Fernando. Estava deixando seu receio de lado e começando a mostrar as armas também. Afinal, era uma puta que estava diante dele! Ouviria esses desaforos de uma puta?
- A sua mulher tá sofrendo, canalha! Fica chorando no meu ombro o tempo todo! Eu tenho a ver com a sua vida sim, babaca!
- Olha só... olha só... e eu que pensava que você era uma dentista! Que porra de dentista, hein? Você devia ter vergonha dessa porra! Devia enterrar sua cabeça no chão, Ana Flávia! Vagabunda! Você tem consciência disso, né? Vagabunda! – Fernando estava de pé. Começava a achar graça da situação. Por algum motivo, se sentia mais homem naquele momento. Não era só ele que tinha segredos sombrios. Ana Flávia era uma puta! Olha só! Olha só... Agora, achava graça, muita graça.
- Sou puta sim, seu merda! Pelo menos não sou homossexual que nem você! Não consegue comer a própria mulher! Que homem é você??
- E ela fica te contando tudo, é? É mais íntima de você do que de mim, pelo que eu tô vendo. Vagabunda... porra, o que é isso? Você é uma PUta, eu não acredito nisso!
- Pois pode acreditar. Tô melhor de vida do que você, babaca. Ganho bem mais grana do que você e a Ângela junto! Eu sou puta, e você é o quê? Um caixa! Um caixa!
- Que coisa baixa, que coisa baixa, meu Deus, que coisa escrota! Que coisa escrota! Olha, eu tô muito puto! Eu não quero discutir com você! Vamos esclarecer as coisas, tá legal? Vamos esclarecer o que está se passando por aqui! Fecha essa porta, cala essa boca e senta aqui! – disse Fernando, resoluto. Sentia orgulho de si mesmo. Sentia-se bem. Incrível como suas emoções iam e vinham naquela noite. Tentava encarar a situação como um barco já afundando. O que fazer quando um barco já está afundando? Rezar? Não, não queria mais pensar dessa forma. Com o barco afundando, o jeito era chutar o pau da barraca. Ana Flávia estava confusa. Odiava aquele homem, mas não sabia exatamente o porque daquilo. Ele nunca havia feito nada de errado com ela, sempre a tratara bem. Era uma implicância, uma raiva mesquinha e natural dos seres humanos. Talvez o odiasse pelo fato de ele ser homem. Talvez odiasse todos os homens. Fechou a porta e sentou-se no sofá ao lado da poltrona. Por mais que o objetivo daquele encontro fosse sexo, e apenas puro sexo, tinha medo de se aproximar mais de Fernando Henrique.
- E então? O que você vai dizer? – recomeçou ela.
- Eu? Sei lá! Por quê? Porque isso? – respondeu ele. Realmente, não sabia o que dizer. Sentia-se constrangido.
- Porque o quê? Não consegue aceitar as coisas?
- Porque vocês nunca me disseram que você era... era...
- Puta, babaca! Não consegue dizer, agora, é? Você acha que eu não sei o que eu sou? Pode falar! Fala!
- Puta! Puta, Ana Flávia! Porque vocês nunca me disseram?
- Porque você acha, babaca? Você faz alguma idéia disso? Tem alguma coisa dentro dessa sua cabeça?
- Eu entenderia, se vocês explicassem. Eu entenderia!
- É o que todo mundo diz, isso! Não entenderia porra nenhuma. Você entenderia o quê, sabendo que sua mulher tá saindo com uma puta? E o pior: sabendo que a melhor amiga da tua mulher é uma puta!
- Eu te conheço! Ia perceber que você é uma pessoal legal, e...
- Conhece nada! O que você conhece de mim, Fernando? Nada! Você não sabe nada sobre mim. Tudo o que a gente te disse sobre mim era mentira, é claro! Minha vida é isso aqui, tá entendendo? Eu ganho dinheiro fodendo!
- E a Ângela? O que ela tem a ver com isso? O que ela tá escondendo, também?
- Ela não tá escondendo nada! Tudo o que ela enfrenta de problema você sabe, Fernando, porque ela te conta! Você sabe o que ela esconde dos outros! Ela é infeliz, porque você faz ela infeliz.
- Não fala assim! Como você acha que eu me sinto? Acha que eu me sinto bem com essa situação? Acha que eu gosto disso? Isso é um problema meu e dela, você tinha que ficar de fora disso! Quem você acha que é pra tentar resolver os problemas dos outros?
- Eu me preocupo com ela, coisa que você não faz! Ela é minha amiga... coisa que você não é dela! Que porra de homem é você? Qual é o seu problema?
- Eu tenho problemas, Ana Flávia! Eu tenho problemas de impotência, se você quer tanto saber assim! E você sabe disso, porque ela deve ter te contado. E eu não sou gay, como você insinuou. Você acha que eu tô contente com isso? Eu preciso resolver esse problema! Eu ainda amo a Ângela!
Depois disso, seguiu-se um silêncio cômodo. Ambos pararam para reflexão. Estavam envergonhados pela situação. Se conheciam, já tinham tomado muita bebida juntos, conversado, sorrido. Já tinham ido a várias festas juntos, Fernando fingia que gostava de Ana Flávia, Ana Flávia fingia que gostava de Fernando. O mundo era cor-de-rosa. Aquilo não era para ter acontecido. A vida normal, aquela que se vive todos os dias, não pode ser desestruturada dessa forma. Era como se um terremoto tivesse abalado a consciência de ambos. Ana Flávia sabia que estava sendo injusta, mas mesmo assim precisava descontar sua raiva. Tinha sido um dia cheio, estava exausta, sua cabeça estava prestes a explodir. A imagem de Fernando despertava mais ainda essa raiva, e a traição contra Ângela, mesmo sendo ela também uma traidora, a fazia deixar a lógica de lado. E ela detestava hipocrisia! Detestava hipocrisia, mas não conseguia aceitar o problema de Fernando. Sentiu-se cruel.
- E você? Já me expliquei. Você sabe a verdade. E você? Me explica o que você tá fazendo aqui. – disse ela, tentando recobrar a calma.
- Foi por acaso. Estava no Beirute e encontrei o Pestana. Você trabalha pro Pestana? Aquele cara é maluco! Você viu o que ele fez ali? – perguntou ele. Havia se lembrado de Pestana. Para Fernando, o mais sobrenatural de todo o caso era ele. Imaginava se Pestana não seria o diabo, brincando com a sua vida, ou a de Ana Flávia, ou a de todo mundo, e se divertindo.
- De onde você conhece ele? O Pestana é uma pessoa perigosa. Você não deve se meter com ele.
- Eu sei! Eu sei! Encontrei ele lá. Já tinha falado com ele numa festa onde o meu pai estava. O cara mexe com traficante. Ele quebrou o nariz de um cara agora mesmo! Eu nem sei se o cara ficou vivo! O cara é maluco!
- Eu sei das coisas que ele faz. NÃO abra o bico sobre ele em lugar nenhum, tá entendendo? NÃO abre! Senão você pode morrer. Eu não sei porque ele simpatizou com você. É um bêbado maluco, mas ele não vai ter pena de te matar se você fizer alguma merda. Ele mata MUITA gente.
- Porque você trabalha pra ele? Ele me ofereceu você. Disse que ia arrumar um sexo decente pra mim. Eu sei, eu sei que não devia fazer isso, mas tava bêbado, tava triste, tava arruinado. Você entende isso, Ana?
- Tudo bem. Eu vou tentar entender. Mas, porra, porque o Pestana foi fazer isso?
- Qual a sua relação com esse cara? Eu acho que ele tem dedo em coisa grande no tráfico de droga, Ana. Você sabe alguma coisa disso?
- Sei, mas não posso te falar. Ele é mandachuva mesmo. Filha da puta, o canalha. Tem dedo em tudo quanto é coisa suja. Tô até com medo de pegarem ele, e eu me foder também. Mas não vai acontecer isso. Eu tenho álibi...
- Do que cê tá falando?
- Eu não sei se posso dizer.
- Pode dizer. Eu não vou falar nada pra ninguém.
- Vão pegar o Pestana. Ele tem dedo sujo demais. Vai se dar mal.
- Quem?
- Um monte de gente. Ele faz lavagem de dinheiro. Ele e mais um monte de deputado. Bando de canalha. Só tem ladrão nessa cidade. Essa cidade fede.
- Você acha?
- Eu faço parte do fedor dessa cidade. Você não conhece os esquemas. Eu conheço poucos. Conheço mais aqueles que tem a ver com o que eu faço, mas sei coisas de outros também. Mas vão pegar esse Pestana. Acho que acabou pra ele.
- Qual é o lance?
- É uma briga política. Eu sei porque também sou paga... eu.... também...
- Eu sei. Você faz serviços.
- É. Eu também dou pra um outro deputado, um cara da esquerda.
- Da esquerda? Do PT?
- É.
- Quem?
- Oscar Carvalho.
- Oscar Carvalho? Mesmo? Ele te contrata?
- Você não sabe de nada.
- Quantas vezes?
- Uma vez por semana.
- Quanto ele paga?
- Porra, o que é isso?
- O que é isso o quê?
- Um interrogatório? Não posso te dizer essas coisas.
- Você diz essas coisas pra Ângela?
- Algumas.
- Pode dizer pra mim. Você cobra quinhentos, né?
- Depende.
- Porra, quinhentos! Isso é muita coisa. Você é bem requisitada, hein? – disse Fernando, rindo. Descontraía-se. Não sabia aonde aquela conversa iria parar.
- É...eu acho que sou boa nisso. – respondeu Ana, rindo também.
- E o que o Pestana faria se descobrisse isso?
- O quê? Que eu cobro quinhentos? Ele sabe! Ele me arruma os serviços! Ele determina o preço, muita vezes.
- Ele sabe que você faz serviço pro Oscar Carvalho?
- Não! Isso é escondido. Eu gosto do Oscar. Ele é bom. Ele me procurou, a gente conversou. Ele disse que queria sexo comigo pra se sentir melhor com ele mesmo. Eu gosto de pessoas sinceras. Ele é meu amigo, ele tem idéias certas. Se o Pestana soubesse disso, mandava me matar. Ele odeia os petistas. Já saiu na porrada com o Oscar, na câmara. Ele acha que eu trabalho exclusivamente com ele. Merda, eu não agüento mais, Fernando. Ninguém agüenta mais esse Pestana. Esse cara tem que se foder mesmo.
- E o que o Oscar Carvalho vai armar contra ele?
- Eu não sei. Ele arrumou uns esquemas de grampo nos telefones do Pestana, mas eu não sei. O Pestana é cauteloso. Acho que ele tá tentando pegar as ações de caridade do Pestana. Ele tem uma instituição.
- Sei. Deixa pra lá. Não quero saber disso, não. – disse Fernando. Depois de muito tempo, sentia-se em paz. A tensão havia ido embora. Ana Flávia era interessante mesmo. Já sabia que era esperta, mas nunca imaginara que fosse tão ativa, e que soubesse se virar em questões tão complicadas como aquelas de forma tão talentosa. Gostaria de poder esquecer os próprios preconceitos e aceitá-la como a amiga de sua esposa que sempre fora. Sabia que podia fazer isso. Sentia-se excitado. O que faria, afinal?
O silêncio tomou conta da sala novamente. Ana Flávia balançava os pés levemente. Vestia uma sandália que deixava à mostra seus dedinhos. Eram tão belos, brancos e limpos que comoviam. Ana Flávia era linda, os lábios eram finos, a boca pequena, perfeita. Os cabelos eram lisos, louros, perfeitos. Fernando observava: era perfeita. Não podia deixar de ficar excitado. Ela era perfeita! A melhor amiga de sua esposa era a mulher mais linda do mundo. Não sentia culpa. Chegara ali para ter essas sensações. Não podia sentir culpa. Estava sendo curado aos poucos.
- E agora? – perguntou ele. Ana Flávia olhou-o um pouco amedrontada. Sabia o que ele queria. Fernando sentia-se um verme, mas sabia o que queria também.
- ...
- E agora, Ana? – repetiu ele.
- Você sabe. Veio aqui pra quê?
- Então...
- Você sabe como se faz ou vai precisar que eu ensine também? – respondeu ela.

6: Oscar Carvalho

- E então? Como é que vai ser? O que vocês vão pedir? – disse Oscar, abrindo um sorriso cínico. Era o primeiro que tinha chegado, tinha esperado apenas treze exatos minutos por eles. Os outros dois chegaram, mostraram um simpático porém nervoso sorriso de apresentação e se sentaram também. Oscar era o senhor da situação. Sentia-se poderoso. Tantos anos atrás de uma chance como aquela e finalmente esse sonho tinha se realizado. Sentia apenas que o sonho era escorregadio, e tinha que ter equilíbrio e concentração para não deixá-lo cair e se espatifar no chão. Mas estava calmo. Segurança era a palavra.
- É, é melhor a gente comer mesmo, antes de discutir as coisas sérias. – respondeu Cadu. Estava sentado na frente de Oscar. A cara estava inchada, os dois olhos roxos, tinha esparadrapos e band-aids espalhados por todo o corpo. Falava baixo, a boca doía, os ossos pareciam moídos, a cabeça doía, tudo doía. Havia sido encontrado dentro de uma caçamba de lixo perto do hotel Nacional. Não fosse amigo da Polícia, estaria preso, estaria morto, estaria perdido. Pestana sabia que nenhuma investigação seria iniciada, ninguém daria a mínima, nem a imprensa, nem a Polícia, nem ninguém. Terra suja.
- Esse é o delegado. Francisco, esse é o deputado. – continuou Cadu, apresentando os dois. O delegado era um homem baixo, careca, forte. Fumava um Free e não dizia muita coisa. Apenas observava, com atenção. Qualquer coisa ali poderia ser uma armação. Deputado de esquerda, traficante de drogas. Delegado de polícia. Não existia mais ninguém puro e honesto nesse mundo? Seria fácil aquilo ser um esquema armado pra pegar suas próprias sujeiras. Mas não. Aquilo era para tratar das sujeiras dos outros. As suas, Deus fosse bom e quisesse aquilo, ninguém nunca descobriria. Pelo menos ninguém que não pudesse descobrir. Mas Cadu era de confiança. Era com Cadu que os principais negócios eram tratados. Mas qual traficante era de confiança? E que confiança toda era aquela? Preferia não confiar, por isso mantia um pé atrás.
- Boa tarde, delegado. Vão pedir o quê? O que é que tem de bom aqui, Cadu? – perguntou Oscar. O local era um bar localizado estrategicamente no Guará I. Arriscado demais, para Oscar. Local público, péssimo local para o encontro de três pessoas tão distintas, mas o que poderia fazer? A lei era do traficante, era o traficante quem escolhia o local. O traficante tinha o dinheiro, tinha a polícia, devia ter até o judiciário nas costas. “Que mundo merda”, pensou. Mundo merda, que era dos criminosos.
- Eles fazem uma picanha muito boa, pra quem gosta de carne. Mas eles têm outros pratos prontos. Tem um bife acebolado ótimo. A salada é boa, a farofa é boa. A gente também pode se servir de feijoada, ali. Tem toicinho, laranja, pimenta. É boa também, a feijoada. Só tem hoje. Mas vou pedir um bife com um prato de comida. Sempre peço isso. – disse Cadu. Ainda estava possesso pela raiva. Era o fim do Pestana. Ia pagar por todos os pecados que já tivesse cometido na vida. E, se tivesse sorte, por muitos outros que não tinha cometido. Era o que chamavam de pagar o pato, servir de cristo. Ia ser crucificado, mas da forma mais cruel e lenta: por anos a fio, na justiça. Era o fim. Definitivamente.
- E você, delegado? O que o senhor vai querer? – perguntou Oscar, olhando para o delegado. Francisco estava sentado eqüidistantemente dos outros dois: estava na ponta. Entrara para a polícia militar, há dezoito anos, com uma visão ideal da corporação. Nos primeiros dias de trabalho, todo seu idealismo já havia ido por água abaixo. “Durou pouco”, pensava. Foram anos e anos pisando e comendo sujeira, recebendo dinheiro de criminosos, de todos os tipos: infratores de rua, drogados, assaltantes, homicidas. Anos e anos perdendo a consciência, deixando a justiça cada vez mais de lado, cada vez mais pensando apenas em si mesmo, e si mesmo, e si mesmo, e às vezes na família. Era assim, o que ele poderia fazer? Sobrevivia. Era humano, não era máquina. Era Francisco, não era o delegado da Polícia Federal que todos diziam.
- Pode pedir um desse pra mim também.
- Um bife com prato de comida?
- É.
- Como tenho que pedir isso, Cadu?
- Pede um “executivo”.
- E uma cerveja?
- É.
Oscar chamou o garçom. O bar se chamava “Papagaio”. Na mesa ao lado, estava sentado um grupo de quatro jovens, completamente bêbados, rindo e falando alto. Segundo Cadu, não havia lugar melhor. Era seguro, nunca aparecia ninguém para espiar o que faziam, todos no bar eram bem pagos pelos traficantes, ninguém tinha nada contra eles, e a polícia não existia. Uma espelunca que ficava ao lado de outras duas espeluncas, uma padaria e uma academia. À frente, um conjunto habitacional de apartamentos. Uma quadra, um monte de prédios de três andares. Eram quatro da tarde, era Sexta-feira, nenhum deles havia almoçado. Cadu havia passado a manhã no hospital, a alta tinha sido ao meio-dia. E o encontro, marcado às duas. Todos podiam desmarcar seus compromissos. Oscar deveria estar no plenário, Francisco, na delegacia. Quatro da tarde, e todos estavam lá. E, além deles, mais ninguém além de um grupo de jovens. Cadu realmente sabia o que fazia.
- Traz pra mim dois “executivos” e... a feijoada é self-service?
- Sim, senhor – respondeu o garçom.
- Quanto é o quilo?
- Oito reais.
- Tá. Então me traz dois “executivos” e uma Brahma. E três copos. – disse Oscar. Os jovens na outra mesa olhavam: reconheceram-no, assim como o garçom e o caixa do bar. Eram os fardos de se ser Deputado Distrital. Era um dia quente, depois de uma noite chuvosa. A secura do clima irritava a garganta e os narizes dos habitantes de Brasília. O sol estava forte, todas as pessoas possuíam um olhar desesperado. Pediam por uma cerveja, pelo menos uma água. As árvores tortas e o mato espinhento do cerrado lembravam um faroeste norte-americano. Na verdade, não era muito diferente, mas os bandidos usavam terno e gravata. Oscar odiava ser reconhecido. Não se sentia mais seguro. O calor o fazia suar. Aos poucos, ia ficando mais preocupado. Encheu o prato de feijoada, toicinho, laranja, farofa, pimenta. Sabia que um dia isso o mataria, mas não queria viver muito. Queria viver o tempo que lhe satisfizesse, apenas isso. Sabia qual era a missão que Deus lhe confiara: contribuir de alguma forma com o fim da corrupção e da política suja nesse país. Sabia que o que estava fazendo era muito pequeno, que de muito pouco adiantaria, mas sabia que pelo menos desse algum pouco adiantaria, e isso o fazia por satisfeito. Voltou à mesa e olhou bem para os outros dois. Conhecia Cadu, mas nunca tinha visto o tal delegado. O que eles tinham para ele?
- O que foi isso, Cadu? – perguntou, se referindo às muitas marcas do espancamento do dia anterior.
- Ontem. Pestana me espancou. Foi a gota d’água.
- Puta merda... – disse o delegado, em voz baixa, com uma expressão de indignação.
- Foi por isso? – perguntou Oscar, de boca cheia.
- Também. Ele vem fodendo os nosso negócios há muito tempo, já. A gente tava esperando uma oportunidade dessa. A gente vai queimar o cara.
- Queimar o cara?
- É. Ele vai ser o ralo da sujeira. Pra isso que eu preciso de você.
- Como?
- Você sabe. Você e os teus compadres que tão atrás dele faz tempo. A gente já te negou ajuda antes, mas agora, não. O Pestana tá fodido.
- Não é tão fácil assim. Como é que você pretende fazer essas coisas sem queimar o próprio nome de vocês?
- Você que vai fazer tudo. A gente só vai te dar as informações que você precisa.
- É? E o que é que vocês têm pra mim?
- Deixa a comida chegar, e a gente conversa. – finalizou Cadu, virando um copo de cerveja. Pedira também um cinzeiro para o garçom, para que os três pudessem fumar. Francisco bebia sua cerveja calmamente, enquanto Oscar se alimentava rapidamente. Comia como um mamute. Deliciava-se com tudo que fosse prazeroso, amava sua esposa, amava suas mulheres, amava Ana Flávia, amava feijoada. Apesar de viver em um mundo onde as pessoas respiram lama e sujeira, ele conseguia encontrar espaço para respirar, e sonhar com a felicidade. Ao contrário de Francisco, seu idealismo estava deturpado, mas não perdido.
- O filha da puta me jogou numa mesa de vidro, fiquei todo cortado, e depois ficou chutando a minha cabeça enquanto eu nem podia reagir. Filha da puta! Eu queria matar, mas não dá pra fazer isso. Não dá pra matar um deputado assim. Mas dá pra queimar o viado. Tá fodido. Tá todo mundo do meu lado. Ninguém mais quer esse bosta nos negócios.
- Vai acabar todo o esquema, então? – perguntou Francisco.
- Vai. Você vai ver.
- Então vamos ver isso logo. Não tenho muito tempo pra perder aqui. – disse Oscar. No mesmo instante, a comida chegou. Dois enormes pratos com arroz, batatas fritas, bifes acebolados, farofa e cumbucas de feijão. E mais duas cervejas.
- Aqui tá uma pasta com praticamente tudo que interessa pra você. Você pode ler isso depois, porque a gente tem que conversar umas coisas antes. – disse Cadu, entregando uma pasta preta grossa nas mãos de Oscar.
- Tudo bem.
- A gente não tem os contatos com a imprensa, por isso você mesmo vai ter que arranjar isso aí. Tenta botar no Correio, que eles aproveitam pra foder com o governador também.
- Resolveram foder o pau da barraca logo?
- Não. Tá tudo sobre controle. O Pestana vai ser o bode, você vai ver.
- Mas e aí? O que que você tem pra mim?
- Aí na pasta tem com mais detalhes o envolvimento dele com o tráfico. É ele que traz a droga pra gente. Na maioria das vezes cocaína, mas às vezes ele traz maconha também. O jato dele vem sempre de Manaus, porque ele é de lá. E sendo de lá ele tem o álibi.
- Sei.
- O jato dele não passa por alfândega, então busca o negócio em Manaus e traz pra cá. – o tom da conversa era baixo. Ninguém ouvia, mas as paredes podiam contar alguma coisa.
- E ele não bota dinheiro? Onde tá o dinheiro envolvido nisso?
- Ele bota, pra pagar a Polícia. É pra isso que eu trouxe o delegado. Ele vai te explicar como funciona o controle da polícia. Isso, só na Ceilândia, no Gama, e na Samambaia. Nosso território é todo bem dividido. Taguatinga, Plano, Cruzeiro e o resto do entorno não é comigo, não.
- E o que ele recebe de volta?
- Parte do lucro, assim como vários outros deputados que contribuem com o negócio. Você sabe quem é, não preciso dizer nada. E nem devo. Vamos nos limitar ao nosso negócio, tá legal? – Cadu era seguro. Não era à toa que o tráfico de drogas prosperava tanto em Brasília. Estava em boas mãos, possuía consumidores assíduos.
- Mas isso não adianta nada pra mim. Ele tem proteção dos bicheiros.
- Tem. É por isso que a gente precisa de um flagrante. Com um flagrante, você pode meter um processo nas costas dos filha da puta.
- É. O que mais você tem pra mim?
- Você sabe que ele tem proteção dos bicheiros. Eles dão grana pra ele, o viado e o partido inteiro dele dão o cu pra eles. Você sabe melhor que eu: lei nenhuma é aprovada naquela merda de congresso. – Oscar fechou a cara. Conhecia bem aquela realidade. Era tudo verdade. O congresso era um campo de guerra. O Brasil estava nas mãos de um monte de fanáticos insanos.
- A gente não tem interesse nenhum em derrubar porra nenhuma ali. Há... A gente só quer foder o Pestana. SÓ O PESTANA, tá entendendo? Você concorda com isso?
- Sim... sim, é claro. Não dá pra fazer mais nada. – disse Oscar. Era um painel desesperador para uma pessoa só. Sentia-se completamente desacompanhado, era uma jornada solitária. Os outros homens do partido eram idiotas, a maioria corruptos, também. Tinha vontade de desistir, mas, apesar de às vezes achar ridículo, ainda confiava em uma iluminação de Deus.
- Por isso, sem um flagrante, nada vai adiantar. Mas se rolar um flagrante, e a imprensa gostar do caso, você pode soltar esses documentos aos poucos. Vão cair matando em cima do cara. Vão tentar achar alguma coisa por cima, e você tem que cuidar pra que não achem mais nada. Não vão achar, porque ninguém não vai nem ouvir falar do seu nome no caso. É pra isso que o delegado Francisco Coutinho tá aqui. É ele que vai ser o nosso herói. – disse Cadu. Oscar olhou de lado. Francisco continuava impassível, apenas observando.
- Sei. O que vai acontecer? – perguntou Oscar.
- O Francisco tá a par de toda a sujeira envolvendo a polícia. Diz pra ele, Francisco. – Francisco deu uma longa tragada no cigarro, um longo gole na cerveja, e disse:
- O Pestana começou a comandar o corpo policial desde que ele foi eleito. Mas isso já tava tudo combinado, porque já tava combinado que ele seria eleito, também. O cargo de deputado só dava mais poder pra ele. A imunidade parlamentar era o mais importante. O cara sempre foi bandido. Quando ele assumiu o cargo, ele ficou responsável pelo pagamento dos policiais que liberam o tráfico.
- Aonde, isso?
- Nas zonas de ocupação do pessoal do Cadu: parte de Samambaia, parte do Gama, parte de Ceilândia. – a voz de Francisco era grossa, e o olhar revelava alguém cansado. Estava cansado, na verdade, de viver. Era uma vida dura na Polícia.
- Quantos policiais participam disso?
- Em torno de dois mil.
- Quanto eles recebem por isso?
- Em torno de trezentos por mês cada um. Isso pra PM. Patente mais alta, salário mais alto e por aí vai. – Francisco dizia aquilo com segurança. Era o maior pecador dali. Talvez até mais que Cadu. A alma de Cadu já pertencia ao diabo quando ele nascera. A de Francisco fora vendida: ele corrompia a lei, transformava em criminosos aqueles que deveriam castigar os criminosos. Era a sua única chance de largar aquilo para sempre, ir embora, nunca mais ser visto. Não podia perdê-la.
- E vocês têm provas dessas coisas aqui nessa pasta?
- Temos as coisas detalhadas, algumas assinaturas do Pestana, muitas fotos comprometedoras. Talvez isso sirva, mas você precisa achar alguma coisa. Aí tem listas de pagamentos, um monte de figurinha pra queimar, muita gente vai se foder, mas nenhum nome pra cima. Pra eles, o Pestana tem que ser o topo, tá entendendo? – disse Cadu.
- Eu consegui grampear os telefones dele. Acho que um flagrante desse já seria o suficiente pra fazer barulho.
- É com você, isso. Duvido que ele vá falar dos negócios de drogas dele pelo telefone, mas pode ser. Vai ser o Francisco que vai iniciar a “investigação”. Isso vai chegar na imprensa. Você tem que desencavar esses documentos de algum lugar. Algum moleque nosso vai bater com a língua nos dentes, vai denunciar tudo e o chefão de tudo vai ser ele. Pode deixar que na época a gente vai pôr tudo direito na hora certa. Você só tem que passar essas informações todas que você conseguiu pro público, da forma que você quiser. Só não põe a gente no meio, que senão você se fode, não preciso nem dizer. Se você vai querer botar seu nome no meio ou não, é com você. Eu aconselharia passar tudo por meio de terceiros ou ter uma equipe inteira de investigação do teu lado.
- Sei. O que mais? – perguntou Oscar. Nesse momento, os jovens da outra mesa se levantaram. Cheiravam a álcool, estavam todos cambaleantes. Passaram perto da mesa, olharam para Oscar. No mesmo momento, Cadu mudou o rumo da conversa:
- Mas esse time do Vasco não tá jogando porra nenhuma! Porra de tira onda! Esse Felipe não joga merda nenhuma.
- Tá classificado, e aí? – disse o delegado, mudando completamente de expressão. Eram profissionais, definitivamente. Os garotos foram embora. Logo em seguida, a conversa voltou ao tom baixo:
- Por último, a fonte mais forte de dinheiro do Pestana: a fundação.
- “Criança no colo”.
- Essa fundação é mantida por mais gente, mas foi criada pelo Pestana. Arrecada, só de doação, mas de cem mil por mês. E boa parte dessa grana vem do governo. Essa instituição é o ralo de toda a grana do Pestana. Se ele põe 100.000 por mês de toda a grana que ele junta, uns 5.000 vão ser utilizados na fundação. O resto vai prum banco nos Estados Unidos.
- Vocês têm prova disso?
- Tem documentos assinados, e a gente tem o número da conta. Se botar uma CPI por cima, vão descobrir tudo, depende da força de vontade da imprensa e da justiça.
- É isso, então?
- É. Você tem bastante material aí. Aproveita a primeira brecha que rolar. Não vai ser difícil. Aí tem as listas de muitos caras que ele mandou matar, com precedentes, e tudo. Tem a história do canalha no Norte e no Nordeste. Olha, esse encontro aqui já vai tarde. Eu tenho que ir trabalhar. Quando você começar a denunciar o viado, você vai ver o Francisco na televisão. Já são mais de cinco e meia, o cara do bar vai querer continuar o negócio dele. Vou terminar de comer aqui e espero que a gente não se fale mais. Tá beleza? – Cadu sorria. Seus planos tinham dado certo. Todos haviam gostado da sua própria idéia quando falou com os outros barões do tráfico. Todos estavam satisfeitos. A queima de arquivo em Pestana já estava sendo planejada, e há muito. O momento havia chegado. Seria um longo processo, que provavelmente culminaria com a morte dele em seis ou sete anos. Ninguém duvidava de porquê o tráfico era o crime organizado. Francisco também sorria. Finalmente poderia ser o homem da lei, poderia pegar os verdadeiros bandidos. Alguém tinha que se dar mal nessa história, e ele estava feliz que não seria ele. Muita gente da polícia ia se dar mal, e tantos outros iriam entrar no mesmo esquema. Era o motor da droga, que nunca parava de girar.
- Tá ótimo. Tá tudo certo, então. Foi um prazer. – disse Oscar. Era o que mais sorria de todos eles. A chance que ele tanto esperava, enfim, havia chegado. Talvez demorasse mais do que ele pensava, mas poderia processar seu plano desta vez. Saiu contente com a pacote na mão. Havia também uma fita de vídeo dentro da pasta. Era mais do que ele queria.

7: Interlúdio – Quatro Conversas ao Telefone

7.1: Ana Flávia + Pestana:
- Alô.
- Alô. Pestana. É a Ana.
- Oi meu, amor. Me desculpa pelos problemas de ontem. Não vou mais fazer essas merdas. Eu tava meio bêbado.
- Não importa. Vou precisar da grana.
- Que grana?
- A grana, Pestana, do serviço de ontem. Esqueceu também?
- O que eu tenho a ver com a grana de ontem?
- Ele disse que você que ia pagar, Pestana! Porra, que merda é essa? Quero minha grana!
- Eu não disse porra nenhuma. Manda ele pagar!
- Pestana, ele disse que você disse pra ele que VOCÊ ofereceu o serviço pra ele! Disse ontem, antes do serviço.
- Não, claro que não! Fala pra esse viado que ele tem que pagar, e que eu não vou pagar porra nenhuma. Tô trabalhando, Ana. Não me incomoda mais com isso.
- Tá. Eu vou falar com ele.
- Tchau.

7.2: Ana Flávia + Fernando Henrique:
- Alô.
- Alô. Fernando?
- Sim. Quem é?
- Sou eu, a Ana.
- Ana, porra, vamos maneirar, tá? Porque cê tá me ligando justo hoje? Olha, tô no meu horário de almoço, a Ângela tá aqui.
- É, por isso eu vou ser rápida: quero meu dinheiro.
- O dinheiro? Dinheiro de ontem?
- Isso mesmo.
- O Pestana vai te pagar. Eu já disse.
- Não vai, não. Ele disse que não disse nada disso pra você.
- Porra...
- Porra o quê? É isso mesmo.
- Mas... não dá! Ele disse, sim! Disse que tinha um presente, que ia me arrumar um serviço... Olha, Ana, Ângela tá lá na cozinha. É bom a gente não estender esse papo.
- Olha, Fernando, não importa que merda ele disse. Ele não vai me pagar. E eu conheço ele bem melhor que você. Então, você vai ter que me pagar. É isso aí. Não tem jeito.
- Não dá! Você sabe que não dá. Eu não tenho grana!
- Não quero saber, já disse. Porra, eu não vou fazer papel de otária. Essa porra desse serviço não tava agendado. Eu jurei pra mim mesma que ia fazer essa merda e ia levar os quinhentos reais na bolsa no mesmo dia. Nem levei, porque você me enrolou com esse papo de Pestana. E ele não vai pagar. Então, você vai pagar.
- Não dá. Não dá. Sinto muito. Vamos fingir que isso nunca aconteceu e que a noite de ontem nunca existiu, tá bom? Tá bom assim?
- Porra, quem você pensa que eu sou? Cê tá louco?
- É melhor assim, Ana. Eu sou seu amigo, a Ângela é sua amiga. Vamos deixar assim e esquecer tudo.
- Fernando, sem essa. O que rolou ontem foi serviço. Não foi coisa pra amigo. Haha. Sem essa, Fernando. Você não me conhece! Você vai me pagar, sim! Pode depositar quinhentos reais na minha conta!
- Ana, eu não vou pagar nada. O cara ofereceu! O que eu vou fazer? A gente tá muito sem grana aqui. A gente tá na merda. Quer que eu explique o sumiço de quinhentos reais pra Ângela como?
- Foda-se! Foda-se, Fernando. Acha que eu ia trabalhar pra você de graça? Não vou, não!
- Eu não vou pagar. Não vou! Não tenho como! Não adianta, não vou pagar!
- Você vai se foder!

7.3: Ana Flávia + Pestana:
- Alô!!
- Alô. Pestana. Sou eu de novo.
- Puta que pariu... o que é que cê quer?
- Ele disse que não vai pagar.
- Não vai pagar? Como assim?
- Não vai pagar! Ele se negou a pagar! Disse que você tinha oferecido o negócio de graça pra ele, e que não vai pagar os quinhentos.
- Que merda é essa?
- Que merda é essa eu que digo! Que merda é essa, Pestana?
- Ele disse isso?
- Porra, é claro que ele disse! Acha que eu tô de sacanagem?
- Porra, diz pra ele que não existe isso de “não vou pagar”. Diz isso pra ele.
- Eu disse. Ele disse que não vai pagar!
- Porra...! Porra! Diz pra ele que eu meto uma bala na cabeça dele se ele não pagar! Você disse isso?
- Disse que ele tava fodido. Ele desligou o telefone.
- Liga pra ele e diz que ele tá morto! Não me enche mais, Ana.
- Não tô afim de fazer isso, Pestana. Manda o serviço logo. Eu vou lá pessoalmente olhar pra cara dele quando tiver um cano apontando pra testa.
- É mais fácil, mesmo. Mas você podia me poupar tempo.
- Você que tem que me poupar tempo, Pestana. Eu fiz uma favor pra você! Um favor. Agora, faz um pra mim. Vai mandar alguém?
- Que horas são?
- Meio dia e alguma coisa.
- Tá. Cê vai ficar na tua casa?
- Vou.
- Então, lá pras três deve chegar alguém aí.
- Certeza?
- Claro.
- Ótimo. Obrigada, Pestana.
- Não há de quê, meu amor. Não me perturba mais hoje, senão o serviço vai pra você.
- Tá.
- Tchau.

7.4: Ana Flávia + Ângela:
- Alô.
- Ângela!
- Oi Ana! Tudo bem?
- Na verdade, não.
- Não? O que foi?
- Como foi ontem à noite?
- Foi ótimo! Mas o Fernando tá aqui em casa. Não posso ficar falando. Porque você tá ligando no celular? O que foi, Ana?
- Olha, aconteceu uma coisa inacreditável. Você tem que entender.
- O que foi?
- Você tem que me ajudar.
- O que foi, Ana?
- O teu marido, o viado do teu marido, é um filha da puta.
- O quê? O que aconteceu? O que ele fez?
- Ele tá aí por perto?
- Não. Tá lá dentro. Eu tô na cozinha, esquentando a comida.
- Ontem ele foi procurar serviço.
- Serviço? Puta?
- É.
- Como é que você sabe? Quem te disse?
- Era eu.
- Como assim?
- Ele foi ME procurar.
- O quê?
- É. É isso aí.
- Como? Como? Como ele soube? ... Como?
- É uma história complicada. Ele encontrou o Pestana num bar. Ele conhecia
Pestana de algum lugar. Os dois ficaram bebendo, e o Pestana ofereceu serviço pra ele. Sei lá o que ele disse pro Pestana, mas ele disse que ia arrumar uma puta pra ele. Era eu.
- Não acredito! Puta merda, Ana! Não acredito! Isso é muito...
- Ouve o resto.
- Não quero! Não quero ouvir mais nada!
- Ângela, eu falei! Tô te contando tudo, sou sua amiga. Ouve!
- ...
- Quando vi o canalha lá na porta do Hotel, xinguei ele de tudo.
- ...
- A gente discutiu, tal. Canalha! Cê tá entendendo? Babaca escroto! Foi pedir puta, e
você pensando que era exagero odiar tanto ele assim.
- ...
- Diz alguma coisa, Ângela!
- ...não consigo. Tô chorando. Se ele entrar aqui, vai tudo ficar pior...
- Ângela. Pára de chorar. Você odeia esse homem! E agora ele te deu mais motivos ainda.
- E o resto? E o resto, Ana?
- O resto...
- É! E o resto?
- Eu tive que fazer o meu serviço.
- .... porra... eu não acredito! NÃO ACREDITO!
- Não grita! Ele vai te ouvir!
- Sua puta desgraçada! Até você!!
- Não fala assim, Ângela! Ângela! Presta atenção! Eu sou profissional! Porra, há quantos anos você sabe disso? Porra, você sabe que isso não tem nada a ver!
- ... porra... eu não agüento...
- Pára de chorar, Ângela. Era disso mesmo que você precisava pra dar um fim nessa merda desse casamento.
- ... eu ainda tenho que trabalhar... porra... como é que eu vou trabalhar hoje desse jeito...?
- Ângela! Me ouve! Ele pode entrar aí na cozinha! Olha, me ouve!
- ... ... ...
- Olha, eu só fiz o serviço, porque eu queria ganhar a minha grana. Você sabe: não era o meu dia de trabalho. Não era! Depois do Oscar, eu ia dormir! Eu ia dormir! Ele me tirou da cama, e eu tive que ir até o Hotel Nacional pra segurar essa bomba, e o Pestana ainda tinha espancado um cara, foi um rolo, uma merda! Foi uma merda, Ângela. Você sabe, eu sou profissional. Você ganha dinheiro tratando dos dentes das pessoas. Pode ser qualquer um, desde que te paguem, né?
- ...
- Olha, eu ganho dinheiro assim! Porra, há quanto tempo você sabe, entende e admira isso, hein? Quantas vezes você disse que me admirava por isso, hein? Admirava minha coragem, né?
- ...*snff* ...
- Pensa bem, Ângela: a escrotice foi dele! Ele foi procurar puta! Porra, que babaca! E não me pagou!
- ... o quê?
- Ele não me pagou! Te fez de otária, me fez de otária!
- O que é que você quer, Ana?
- Quero que você se separe dele, e volte a morar comigo. Se divorciar desse palhaço, e manda ele pagar meu dinheiro! Você tem que conversar com ele! Olha, a coisa é séria!
- Eu... tenho que tomar um copo d’água... esperaí...
-....
-....
-....
-....
- Voltei.
- Você tá entendendo? É melhor você vir pra cá. Não... você tem que ficar aí mesmo. Fica aí e me ouve. Se ele entrar, finge que tá conversando com outra pessoa.
- ... eu tô chocada, Ana... é muita coisa de uma vez só...
- Eu sei. Eu entendo. Mas você sabia que esse dia ia chegar. Ele ia fazer uma merda, você ia se separar dele. É isso. Que bom que chegou!
- Não é simples... ... ... não é simples assim...
- É simples assim, sim. Me diz: como foi ontem? Como foi? Hein? Como foi?
- ...foi..?
- Diz!
- Foi bom... foi...
- Rolou? Rolou, né?
- É...
- Então! Foi bom? Como foi?
- Foi bom! Eu disse! Foi bom!
- Pronto! Acabou! Sua vida de merda acabou! Sua vida ruim acabou! Você tem que sorrir, Ângela! Deixa a sua vida ruim pra trás! Vai tudo ficar pra trás!
- mas...
- Você vai ter que falar com ele, Ângela. Ele vai pagar minha grana, vocês vão se separar, você vai juntar grana e vai morar comigo até poder comprar um lugar pra morar. A gente já discutiu isso.
- Ana...
- Olha, não tem erro. Acabou! Acabou. E o Fernando que tá fodido. Se ele não pagar, o Pestana vai matar ele. Diz isso pra ele! Diz pra ele, ele tá fodido.
- Ana... eu preciso... parar... preciso pensar... preciso chorar um pouco...
- Olha, falta o seu trabalho hoje. Falta! Foda-se. Você diz que tá doente, sei lá. Falta. Fala com o Fernando antes de ele sair pro trabalho dele. Tá bom? Tá entendido? Falta e vem pra cá.
- ...
- Pára de chorar! Pára de chorar! Não foi bom ontem? Não foi ótimo?
- Foi...
- Então, tudo bem? Você vem pra cá me dizendo o que conversou com ele?
- Vou. Vou.
- Então, tá. Não se preocupe, Ângela. Tudo vai dar certo. Vai dar certo!
- Eu... eu sei, eu sei...
- Então, um beijo. Estou te esperando.
- Tá.. tá.. tchau...

8: Fátima Moreira

- Fernando... – disse Ângela, saindo da cozinha. Sua mente era um turbilhão de emoções. O celular continuava em sua mão, ligado. Fernando estava dentro do quarto, se arrumando para o trabalho. Seriam mais algumas horas para ele poder pensar em tudo o que havia acontecido na noite anterior e naquela mesma manhã de Sexta-feira. Contas, depósitos, reclamações, tudo junto em um pacote extra de monotonia para ele se atormentar pensando no futuro de sua vida. Estava saturado. Ângela, mais ainda. Estava desesperada. Não era ela a única adúltera. Era ela, era Fernando, era até Ana Flávia, adúltera de amizade. Queria explodir, queria gritar e quebrar todos aqueles porta-retratos e vasinhos da sala. Queria partir os quadros na cabeça de Fernando, jogar o telefone pela janela, rasgar todas as camas e sofás com a faca de cortar carne, queria chutar tudo, terminar de arrancar os papéis de parede. Queria matá-lo, mas não conseguia botar a raiva para fora. Não conseguia se expressar, não tinha coragem de fazer nada. Apenas chorava.
- Ângela? Que foi? – perguntou ele. Agora, essa. Mal imaginava o que poderia vir. Estava de cabeça quente. “Você tá fodido”, era o que Ana tinha dito. E ele estava. Fodido e preocupado. Estava à beira do desespero. Também não conseguia imaginar abismo pior para os resultados de seu desastroso encontro com Pestana na noite anterior. Tudo tinha dado errado. Tudo, menos a extremamente prazerosa experiência que tivera com Ana Flávia. Sorria apenas ao lembrar, mas agora tremia de tanta tensão. E agora, essa.
- Eu preciso falar com você. – respondeu ela, em voz chorosa. Os olhos estavam vermelhos.
- O que foi? – o que seria?
- Eu quero o divórcio. – agora, ele entendera. O celular na mão, as lágrimas, “você tá fodido”. Estava fodido. Ana Flávia tinha contado a verdade.
- ... Ela disse, não foi? – disse Fernando, após um nervoso e conflituoso suspiro. Não podia fazer mais nada. Logo em seguida, Ângela disparou a chorar sem parar. O telefone caiu no chão, ela se sentou também no chão e pôs as mãos sobre o rosto.
- Ângela, eu preciso te explicar. – era ridículo. Explicar o quê? Tinha comido a melhor amiga dela – que era uma puta, que deixassem isso bem claro -, não podia explicar nada. Era adúltero, era um cafajeste, não podia explicar nada. Sentia pena de Ângela, e raiva de Ana Flávia. Mentirosa! Vagabunda, víbora traiçoeira, manipulava as informações para seus próprios interesses. Existia animal mais perverso? Era mulher, solteira, independente. Estava arruinado, agora.
Ângela continuava sem responder.
- Ângela, ela deve ter dito só o lado dela da história. Foi uma coisa muito por acaso. Eu queria... eu queria... ver se... – ela não respondia, ela não parecia querer ouvir. Estava em estado de choque.
- Olha, Ângela, meu amor, olha.... toma um calmante. Vou buscar um calmante pra você. – disse Fernando. Ia buscar um calmante para ela, e um para si mesmo. Estava suando. Foi até a cozinha, encheu um copo d’água e engoliu rapidamente. Queria dormir, acordar e esquecer tudo o que tinha se passado. Queria que tudo não tivesse passado de um sonho. Voltou ao quarto com o copo pela metade.
- Aqui... toma – disse ele, enquanto ela pegava o copo e bebia a água junto com o comprimido, também.
- Ângela. Eu queria resolver o problema, você precisava ouvir o que o cara que eu encontrei no bar me disse...
- Não quero saber! Não quero saber. Não diz nada. Quero divórcio.
- Não é assim, Ângela. Vamos conversar, tá legal?
- Eu também te traí. Não importa o que você vai me dizer. A gente não se gosta, a gente não tem que ficar junto. – Agora, a bomba. Incrivelmente, Fernando não ficou tão nervoso quanto esperava que fosse ficar se soubesse de uma notícia como essa. Não era mais tão criminoso. Até entendia o ponto de Ângela, entendia suas motivações. Não havia ninguém mais fracassado do que ele próprio ali. Já estava abalado. Teria que ser algo pior para piorar sua situação. Mesmo assim, era uma decepção a mais. Se fosse se importar, morreria.
- Você me traiu?
- Traí.
- Com quem?
- Um cara da academia.
- Quando?
- Ontem. Eu não fui pra festa nenhuma da Liana. Fui encontrar esse cara.
- Ontem?
- Ontem.
- Puta merda...ontem ... Então... porque me culpar desse jeito?
- Não tô te culpando. A gente não se gosta. Vou morar na casa da Ana. Vamos nos separar.
- Eu não sei...
- Não. Eu quero! Eu quero isso!
- Foi ela, né? Foi a Ana Flávia, a sua amiguinha puta que botou essa idéia na sua cabeça, né?
- É! Foi ela, sim! E ela tá certa! Você transformou minha vida numa coisa pior do que já era! Ela tá certa! – disse Ângela. Conseguia se recuperar, agora. Talvez fosse o calmante, talvez fosse o rumo da conversa. Odiava a indecisão e o cinismo de Fernando. Não podia continuar com aquele homem, de forma alguma.
- Sabia que tinha sido aquela vaca...
- Não fala isso! Eu sei bem o que eu quero! E você vai pagar o que deve pra ela! Vai
pagar!
- Ah, eu sabia. A vaca quer o dinheiro, né?
- Você tem que pagar! Tem que pagar! Quando tava lá não pensou nisso, né? E aí, funcionou, essa porra aí?
- Funcionou, e bem demais! Talvez o problema fosse você, mesmo! – Fernando se sentia um idiota. Não queria dizer aquelas coisas, elas não eram verdadeiras, mas estava exausto. Estava de saco cheio. Não agüentava mais aquilo.
- Quero o divórcio logo! Não quero mais te ver! Amanhã mesmo vou embora pra casa da Ana. Vou arrumar minhas coisas hoje. – disse ela, se levantando. Pegaria o telefone, desmarcaria as consultas e começaria a arrumar as coisas. Não era muita coisa. Era funcionária pública, não tinha muita coisa.
- E se você não pagar, ela vai te matar! O deputado Pestana vai mandar te matar!
- Olha, eu vou sair, porque tenho que trabalhar. Você, dorme! Toma um desses seus remédios e dorme! Quando eu voltar, a gente conversa, tá bom? – Ângela não respondeu. Discava os números no telefone. Fernando pegou as chaves, a pasta, a carteira, e saiu. Estava atrasado, além de tudo. Tinha que pensar em algo.

Hora do rush em Brasília. Fernando estava parado no trânsito, a W3 estava congestionada. Não era acidente, não era chuva. O céu estava limpo, fazia um calor irritante. Eram milhares de pessoas voltando desesperadamente de seus horários de almoço para seus trabalhos. Os ônibus trafegavam lotados, gente se locomovendo a todo instante. Satélite-plano, plano-satélite. Asa Sul, Asa Norte, setor comercial sul, setor comercial norte, rodoviária, esplanada, eixão, Congresso, Taguá, Cruzeiro, Vila Planalto. Uma bela cidade, cheia de gente neurótica. Fernando era uma delas, e estava com pressa. Não chegaria no horário ao trabalho, sabia disso. Não tinha almoçado. Estava com fome. Esquecera-se do almoço. Como podia? Só os nervos explicavam. Ângela havia perdido a razão. Dera ouvidos à criatura mais venenosa do mundo. Estava encucado, não conseguia entender. Odiava Pestana, odiava Ana Flávia, odiava Cadu, odiava todo mundo. “Você tá fodido”, pensou. Estava mesmo. O que faria? Iria para o trabalho e continuaria tudo como se a vida fosse seguir em frente da mesma forma? Não. Não seguiria. Estava tudo estragado. O trânsito estava parado. Fumaria um cigarro, se tivesse um, mas não tinha. Suas mãos estavam suadas. Ligou o rádio e desligou várias vezes. Não conseguia identificar nada que pudesse agradá-lo. Pagaria os quinhentos? Pagaria? Não sabia. Até poderia descolar o dinheiro, não seria difícil, não era tanto assim, afinal. Mas ele era teimoso. Não queria deixar tudo se perder, desta vez. Não queria ser passado pra trás de novo, ser levado pela conversa dos outros. Precisava conquistar sua independência pessoal, e negar toda a noite passada era um bom começo. Mesmo assim, sentia medo. Poderia pagar, tirar da grana das economias, tirar do banco, pagar de alguma forma. Mas aí estaria derrotado de novo. Seria um derrotado. Seria a confirmação de sua estigma de derrota. Poderia desistir dessa e de qualquer outra vida. Não poderia mais se perdoar, teria certeza de que não servia para nada. Não podia pagar, era uma questão de honra. Honra, uma coisa que ele nunca tivera. Não se renderia, desta vez, de forma alguma. Mas o que faria? O que podia fazer? Estava marcado, eram forças tenebrosas que o perseguiam. Naquele momento, percebeu que sua vida estava por um triz. Lembrou-se das palavras de Ana Flávia: “ele já matou MUITA gente”. Pestana devia matar por muito menos, matar por nada, por uma briga, por uma estupidez, um desentendimento qualquer. Ele mesmo vira o que ele fez com aquele Cadu. Não sabia nem se ele tinha ficado vivo, ou o que havia restado dele. Por nada. Simplesmente por nada. Cadu estava certo, estava apenas cobrando sua parte no negócio, por mais obscuro que fosse. Sua dúvida então se tornou uma certeza: se não pagasse, Pestana o mataria. Pagaria, então?
Não pagaria, foi o que Fernando Henrique resolveu. Não pagaria nem voltaria àquela cidade tão cedo. Fugiria. Fugiria dali para sempre. Se demitiria pelo correio, ou por e-mail, de algum lugar. Estava cansado de Brasília, cansado de Ângela, cansado de sua vida. Fugiria e tentaria algo novo. Ele sorria. Pela primeira vez em sua vida, se libertava de vez. Não dependeria de ninguém a princípio. Voltaria para casa, arrumaria rapidamente uma mala, pegaria parte do dinheiro (já que a outra parte deixaria para Ângela) e iria embora na mesma hora, o mais rápido possível. Iria para Goiânia, tinha uma tia que certamente o acolheria lá. Parecia o mais sensato. Abandonar tudo, começar nova vida, estudar, tentar algum outro concurso, tentar alguma outra profissão. Poderia fotografar, escrever, dirigir. Poderia tentar um estágio, já que tinha o diploma de administração. Não seria difícil começar nova vida em uma cidade nova, e agradável, sem tanta sujeira por baixo dos panos.
Imaginava já suas novas aquisições em Goiânia quando percebeu que Ângela não poderia saber. Ela poderia contar tudo, revelar tudo a Ana Flávia, que revelaria tudo a Pestana, que mandaria gente para matá-lo. Não podia voltar agora. Ângela estava em casa. Teria que esperá-la dormir. E teria que ser rápido. Seria apenas pegar os documentos importantes, o dinheiro e ir embora. Nem um beijo de despedida, nem uma última troca de olhares. Talvez, no futuro, pudesse tentar falar com Ângela novamente, acertar a papelada do divórcio juridicamente, quando tudo já não estivesse tão quente, quando todos tivessem se esquecido dele, inclusive Pestana. Assim, sua vida não correria risco nenhum. Estava exausto. Mal havia dormido, não havia almoçado, sua cabeça latejava de dor. Precisaria também parar e comer, mas isso apenas depois de pegar as coisas em casa.
Desceu rápido, andou devagar dentro do apartamento. Girou a chave lentamente, não poderia acordá-la de forma alguma. Sentia-se enlouquecido, agia de forma impulsiva, sua vida inteira para trás havia ido para o espaço. Entrou na casa nas pontas dos pés, mas Ângela não estava lá. Fernando não se surpreendeu. Devia estar na casa de Ana Flávia, devia estar preparando a mudança, tudo. Talvez aquilo fosse bom para Ângela também. Realmente, eles não se gostavam, então, não tinham que ficar juntos. A cabeça pulsava, a dor era aguda, as olheiras proeminentes. Fernando era um caco. Talvez nunca mais fosse ver Ângela. Era um pensamento pessimista, ele sabia que era idiota, que tudo o que estava fazendo era idiota, mas não conseguia mais aceitar, não conseguia mais ser quem era, quem sempre fora. Só conseguia, agora, agir como um ser brutal e ignorante cheio de ódio por todas as pessoas e todas as coisas. Ele apenas odiava. Procurou os documentos rapidamente, separou algumas fotos suas, de sua família e de Ângela. Não sabia porquê. Não queria aquelas coisas, elas não eram necessárias. Mesmo assim, pegou alguns CDs, alguns livros e muitas roupas. Ângela não estava lá, ele tinha tempo, sabia que ela não voltaria cedo. Talvez tivesse ido encontrar o amante da academia, não sabia direito. Sentiu uma ponta de ciúmes, sentiu-se menor ainda por estar sendo feito de corno, por ter passado o papel de otário mais uma vez. Separou mais uma porção de coisas, mas se desfez da maioria antes de sair. Rasgou as fotos de Ângela, e as cartas, assim como os postais de viagem e outras lembranças. Chorava e odiava. Estava completamente perdido.
Parou no McDonald’s e viajou. Não avisara a tia Fátima, mas sabia que ela o acolheria. Era umas das únicas parentes restantes (por parte de seu pai) que gostavam dele. Viúva nova, trinta e poucos, vivia em uma casa confortável com um cachorro. Porque não o acolheria? Ele escrevia cartas, às vezes, e às vezes ligava. Era muito ligada ao seu pai, e, por extensão, a ele também. Quando era pequeno, sempre recebia presente interessantes das viagens interessantes e livretinhos com mensagens de amor e mensagens bíblicas. Era uma religiosa fervorosa, que gostava de viajar pelo mundo. Pessoa interessante, mas mais sábia do que culta. Pelo que se lembrava, Fernando gostava dela, apesar de fazer mais de um ano que não fazia nenhum contato. Era goiana, uma povo estranho, bastante diferente dos brasilienses. Fernando era de Brasília, talvez por isso odiasse a cidade. Viajou por duas horas. Fez o trajeto rápido. Já estava em Goiânia, atravessando a Avenida Goiás, às cinco da tarde. A casa não era grande, mas bastante espaçosa para duas pessoas. Era velha, e talvez por isso o imóvel fosse barato. Situava-se em Jardim América, um bairro classe média baixa. Tia Fátima trabalhava com teatro, sua vida ia de altos e baixos, desde algum sucesso como diretora até o abismo absoluto sem lucro nenhum. Nunca tinha sido bonita, nem na juventude, e sua carreira como atriz nunca chegou a decolar. Casou-se, por acaso, com um homem bem intencionado e bem de dinheiro, dono de um restaurante de massas. Morreu tragicamente, em um acidente de avião. Desde então, ela vivia do seguro de vida do marido. O restaurante fora vendido, ela teve que voltar a trabalhar. Era um pessoa pacata, já havia sido bem mais animada. Fernando pensou que poderia ser agradável a ela. Era melhor companhia que um cachorro.
- Oi, tia. – disse ele, após Fátima atender a campainha. Ela olhou surpresa, levou alguns segundos para reconhecê-lo. Era mesmo o filho do irmão mais velho Wilson que estava ali. Esboçou um sorriso, e fez cara de desentendida.
- Uai. Você por aqui? Fernandinho? – disse ela. Não havia dúvida. Fernando parecia mal, estava sujo, cansado, não havia tomado banho, suas olheiras denotavam seu estado.
- Oi, tia! Me dá um abraço. – disse ele, sorrindo, também. Tinha que fingir. Gostava de Fátima, mas teria que soltar as coisas aos poucos. As pessoas não reagem bem quando familiares convidam a si mesmos para morarem nas casas delas. Mas sua decisão era irredutível. Ali, ninguém o acharia, ninguém o descobriria, nem mesmo Ângela. Nem mesmo Pestana.
- Entra, Fernando. A casa é sua, cê sabe. – disse ela, fazendo o gesto para que ele passasse pela porta. Logo, ouviu os latidos do cachorro. Sua cabeça ainda doía, e ele detestava cachorros, e o de Tia Fátima era uma peste especial: um vira lata fedorento que estava sempre imundo, latia alto e repetidamente, e não gostava de estranhos.
- Ah, Espâd, tá todo sujo, hein? Preciso lavar. – disse, ela soltando um sorriso sem graça para Fernando. O cachorro não parava de latir e subir em suas pernas. Chamava-se Espâd. Fernando sentou-se no sofá da sala, que era bem arrumada, mas empoeirada. O sofá era de um couro velho, já bastante gasto. Uma TV bem grande estava ligada logo à frente. A sala era simples, mas havia vários pequenos móveis atolados e livros e papéis em cima de todos eles, e muitos vasos de plantas, algumas já bastante velhas e mortas. Na mesma sala, havia a porta para o quintal, que era onde ficava a casinha de Espâd e o jardim mal cuidado. Para Fernando, era perfeito. Não poderia desejar nada mais do que morar ali, com aquela tia que, apesar de estranha, era interessante. Com o cachorro, logo se acostumaria. A tia ofereceu um café, que foi prontamente aceito. Era hora de começar a explicar.
- Aqui está o café, Fernando. E então? O que que tá fazendo em Goiânia?
- Bem... é uma história complicada, tia. Talvez eu tenha que passar alguns dias por aqui, tudo bem? – não, não tinha coragem de contar tudo. Onde estava sua repentina, milagrosa, estimulante e insana coragem? Onde?
- É? Tudo bem, claro, Fernandinho. Claro. O que houve?
- Bem... eu vou me mudar para Goiânia, aliás... já me mudei, as minhas coisas tão aí. Eu preciso de um lugar pra morar até encontrar um apartamento. – apartamento. Isso o lembrou sua situação. Não tinha dinheiro. Seu dinheiro estava investido em seu apartamento em Brasília e em seu carro. Seu apartamento tinha ficado para trás. Feliz era Ângela. Seu carro... não adiantaria de nada. O resto das economias era muito pouco. Não tinha jeito. Teria que morar com a tia bem mais do que alguns dias..
- Mudar pra cá. E a menina, a...
- Ângela.
- É... Ângela... ela tá vindo também? Porque essa mudança?
- A gente se separou, tia. Tá difícil de continuar a vida lá em Brasília, tive que vir pra cá.
- E porque não avisou que vinha?
- Eu não tinha mais o seu telefone, tia. Tava tudo bem planejado, eu tenho pouca coisa. Não vou passar muito tempo aqui. – tudo planejado. Seria um inquilino. Talvez pudesse trabalhar e contribuir bem no sustento da casa. Era um bom argumento. Caso precisasse, usaria esse mesmo. Estava exausto. Precisava dormir para poder pensar. O café tiraria seu sono.
- Fernando! Era só ligar pra Dolores, ou pra Tânia, ou pro Beto. Todo mundo tem meu telefone.
- Tia, eu preciso descansar e dormir. Será que a senhora poderia arrumar um cama pra mim? – perguntou. Agora, era abusado, era infame, era desagradável. Era todas as coisas que ele nunca fora em sua vida. Por dentro, sorriu.
- Vou arrumar, sim, Fernando. Tem dois quartos sobrando. Você parece tão cansado, mesmo. Aconteceu alguma coisa? – ela percebia. Percebia tudo, todas as emoções das pessoas, desde pequena. Tinha facilidade com línguas, tinha facilidade em entender o que as pessoas queriam dizer, mesmo quando se expressavam mal. Não era burra, era esperta. Sabia que não se tratava de algo simples. Gostava do sobrinho. Sempre fora muito gentil e cordial, mas sabia que não daria em nada. Não tinha brilho, não tinha força de vontade. Qual seria o problema? Drogas? Fernando parecia um drogado.
- Foi uma viagem cansativa. Eu vou precisar arrumar um emprego, mas vai ser coisa rápida. A gente vai poder se ver bastante aqui, tia. – Fátima olhou séria para ele. Não sabia como interpretar aquilo. Sua vida era pacata, ela não esperava ter que criar o filho de seu irmão. Não tinha filhos, era estéril. Era viúva. Não se dava conta de por quantos anos infelizes havia passado. Porém, naquele momento, estava bem. Gostava de não fazer nada, gostava do cachorro, gostava do teatro. De que mais precisaria? Lazer? Sexo? Não, não mais. Sexo, talvez, mas como? Estava flácida, enrugada, era uma envelhecida precoce. Sexo? Parecia piada.
- Fernando, eu sabia que você ia acabar desse jeito. – disse ela. Era uma pessoa decidida, e detestava hipocrisias formais. Gostava de ir direto ao ponto.
- Como assim, tia? – respondeu Fernando. Aquilo o pegara de surpresa: a tia percebera que tinha mutreta. Mas não podia falar. Não podia falar. Como iria explicar a puta, o deputado, o traficante? Não podia. Tinha vontade, não agüentava mais nada, a viagem tinha sido extremamente cansativa, mas não podia. Teria que agüentar a angústia por alguns dias até que ela se esquecesse. Evasivas. Sim, deveria usar evasivas.
- Fernando, e o seu emprego, e o seu curso? Abandonou tudo?
- Tia, se eu não puder ficar, eu entendo.
- Não é isso. Seu pai não sabia nada, mesmo. Olha só como é que você tá! Tava bem casado, agora, nem casado mais. Fernando, você tem dinheiro pra pagar o aluguel de um apartamento? – na lata. Não esperava que ela fosse tão esperta, e nem tão rápida, e muito menos tão incisiva. É, os goianos eram espertos, ao contrário do que diziam os brasilienses.
- Hhhmmm... eu vou conseguir em breve, tia. Tenho umas economias, ainda posso vender o carro, e em breve já vou trabalhar... não se preocupa.
- Não se preocupa? É claro que eu vou me preocupar! Fernando, eu não sei se você vai mesmo poder morar aqui! É isso que você quer? – mais incisiva. Goianos liam mentes.
- Tia, só por um tempo. Tia, você tá aqui sozinha! Eu posso te fazer companhia, tia. Eu, sinceramente, acho que isso pode ser bom pra nós dois. E é só por um pouco de tempo...
- Fernando, na vida as coisas não são assim. Seu pai não soube te criar. Seu pai não te deu responsabilidade. Te deu liberdade demais... olha só, Fernandinho, olha só.
- Olha só o que, tia? Tudo bem, eu saio, se não puder ficar nem uns dias...
- Fernando, uns dias tudo bem, mas, Fernando, eu não vou ter como te sustentar. Você ainda é novo na cidade. Vai arrumar emprego de que jeito? Você trabalhava como lá em Brasília? Num banco, né?
- É.
- Fernando, Fernandinho, seu pai não te deu responsabilidade, ele mesmo não sabia discernir as coisas. Não sabia separar o certo do errado, seu pai era uma pessoa muito confusa... – Fernando não entendia a evocação do nome de seu pai tantas vezes. Não era o pai dele que estava ali! Era ele! Que tipo de complexos aquela mulher teria? Seria louca, portanto, por ser mulher?
- Tia, isso não tem nada a ver com meu pai. Quem fodeu a minha vida fui eu. – pronto. “Fodeu a minha vida”. Ele tinha contado. Ele teria que contar. Seria tão mal assim? Talvez não. Fátima tinha coração mole, era tia, era solteira (viúva), era precoce, devia ser emocionalmente muito instável. Vivia de teatro. Devia conviver com pessoas esquisitas. Será que era lésbica? Se fosse, entenderia a situação. De alguma forma, pensava que ela entenderia. Mas teria que soltar aos poucos.
- Por que, Fernando? O que aconteceu?
- Eu... não estava me dando bem com a Ângela, problemas pessoais, não estava bem no trabalho, eu precisava mudar alguma coisa. Resolvi fazer uma mudança radical, tive que vir pra cá. Eu gosto daqui. Pode deixar, vou trabalhar e contribuir com as despesas da casa.. antes de me mudar. – tinha que apelar para o argumento. Não esperava que tivesse que usá-lo tão cedo.
- Tudo bem, Fernando. Depois a gente conversa. Vai tomar um banho, eu vou descarregar as suas coisas da mala. Depois a gente conversa. – disse ela. Pronto. Estava selado. Um pouco de dificuldades a mais, mas sua vida estava direcionada, agora. Trabalharia para onde? Para o teatro, com sua tia, em alguma micro-empresa? Quais seriam os melhores negócios de Goiânia? Foi tomar um bom banho quente. Nem mesmo os latidos do cachorro o incomodavam agora. Estava livre, finalmente.
Durante o banho, o telefone tocou.
- Alô? – atendeu Fátima.
- Alô. Dona Fátima? É a Ângela, mulher do Fernando Henrique, filho do Wilson.
- Ângela? Oi, meu bem. Como é que tá? Quer falar com ele? – do outro lado da linha, Ângela sorriu, e desligou logo em seguida. O sossego de Fernando duraria pouco.
- O quê? Ela ligou? – foi o que ele disse quando recebeu o recado de Fátima.
- Ligou, e desligou antes de terminar a conversa. – por um momento, o sangue parou de circular pelas veias de Fernando. O banho fora bom, mas havia terminado. Mal podia acreditar. Sabiam onde ele estava! Ângela era esperta. Tinha o telefone. Ele deixara a agenda em casa. “Faz parte do passado”, era o que tinha pensado. “Idiota!”, se xingou. Como esconderia isso de Fátima, agora? Não havia como. Teria que contar. Eles sabiam. Provavelmente, todos sabiam. Seu refúgio durara pouco. O que fazer?
- Vocês não tão separados? – perguntou ela.
- Ela quer resolver uns negócios jurídicos do desquite, tia.
- Fernando, o que foi que aconteceu? Fala! Ela sabia que você tava aqui? Ela desligou, Fernando. Você não vai ligar lá?
- Vou, mas depois. Vou dormir, tia. Estou cansado. – não podia dormir! Eles o pegariam. Estava paranóico. Estava louco. O que fazer? Fugir para sempre?
- Fernando, você não parece legal.
- Eu tô legal, tia! – disse ele, energicamente. “Cala a boca e deixa eu pensar!”, era o que gostaria de dizer. Como pensar? Como achar uma saída? Teria que contra-atacar. Como atingir alguém? Se atingisse Ângela, provavelmente morreria, não tinha como atingir Pestana. Uma simples tentativa o levaria à morte certa, também. Então, quem? Ana Flávia? O que poderia fazer? Tentava pensar, andava de um lado para o outro, como um louco. Fátima ficava cada vez mais impaciente. O que haviam feito com aquele menino? No que ele se tornara?
- Vou arrumar sua cama. Você tá muito nervoso... – disse ela. Tinham pouca, mas tinham alguma intimidade, muito mais relacionada à infância dele, quando os dois eram muito mais felizes. A visita inesperada do sobrinho fazia Fátima refletir sobre sua própria vida. Teria que mudar alguma coisa, também. Poderia ajudar Fernando, Fernando poderia ajudá-la. Talvez tivesse sido Deus, talvez fosse Deus mesmo quem fosse salvar o menino, fosse qual fosse o problema.
Se atingisse Ana Flávia, poderia virar a mesa, já que estava sendo perseguido por ela, e não por Pestana propriamente, apesar de saber que Pestana era algum tipo de cafetão dela. Ele tinha informações. “Vão pegar o Pestana”, ela dissera. “O Oscar Carvalho e mais um monte de deputado”. Pronto. Tinha a arma mais forte. Tinha a informação. Poderia tentar alguma chantagem. Era sua última esperança. Ana Flávia sabia de esquemas sujos pra pegar Pestana. Perfeito. Gênio. Ele acreditaria? Teria que acreditar. Teria que falar com Pestana. Era a última esperança. Tinha o número dele anotado em um guardanapo do Beirute. Tinha sorte, estava lá, na carteira. Tinha sorte. Tinha muita sorte. Discou o número apressadamente, a tia não estava mais lá. Saiu para o quintal e esperou alguém atender. Levou alguns segundos, até que pôde reconhecer a voz do deputado:.
- Pestana. – disse ele.
- Pestana! Sou eu, Fernando Henrique.
- Seu merdinha! – disse Pestana, do outro lado da linha. Fernando tinha que ser frio.
- Pestana. Me ouve. A vaca da Ana Flávia tá te enganando.
- Não vem com esse papo, seu bostinha! Você tá me enrolando! Cê tá morto, meu camarada!
- Ela me disse informações confidenciais sobre você. Me disse uma porrada de coisa. E me disse um monte de coisa que te interessa. Me ouve, Pestana. O alvo aqui não tem que ser eu, não. É a Ana. Ela tá misturada com o pessoal do PT.
- Vai se foder!
- Me ouve, porra! É verdade! Ela me disse! Ela me contou do seu esquema com o tráfico de droga e o da prostituição. E ela sabe que tão armando pra te pegar.
- Armando pra me pegar?
- É, Pestana, porra, me ouve e me perdoa senão vão te pegar, e você vai tá fodido.
- Quem?
- O pessoal da esquerda. A Ana Flávia também faz serviço pro Oscar Carvalho, é uma vagabunda. Você não devia confiar nela. Pestana, eu tô dizendo a verdade. O Oscar Carvalho conta tudo pra ela.
- Oscar Car... put... o que eles sabem?
- Eu não sei detalhes, parece que a Ana também não, mas ela sabia. Ela dá pro Oscar Carvalho... – disse Fernando, triunfante. Pestana se calou do outro lado da linha. Era um choque para ele. Estavam querendo pegá-lo. Ana Flávia sabia de tudo, não havia porque duvidar. Ele já desconfiava disso, tinha algumas pistas, mas a desconfiança ainda não era muito concreta. Fernando dizia a verdade, e ele sabia disso. Não sabia como, mas sabia que sabia. Ficou calado por um bom tempo. Fernando sorria. Vencera.
- Onde você tá? – respondeu Pestana, depois de um longo silêncio.
- Escondido, como medida de segurança. Não posso dizer. Isso é tudo o que eu tenho. Esquece essa porra desse pagamento, você sabe que eu sou quebrado, não tenho como pagar. Porra, a gente era amigo no bar ontem! Essa vaca que se foda! É víbora.
- Nunca mais me liga. Nunca mais fala comigo. Nunca mais abre o bico. Se eu ouvir falar no teu nome de novo, mando te matar na hora, tá ouvindo? Tá ouvindo?
- Pode deixar. – respondeu Fernando. Agora, era ele quem ensinava Pestana. A mesa estava virada. Pestana desligou em seguida. Estava salvo, estava calmo. Era a melhor noite em muitos anos. Oito da noite, havia sido um dia cansativo. No dia seguinte, teria que começar tudo de novo. Primeiro, teria que arrumar a demissão de seu próprio emprego. Depois, começaria a procurar um novo. Seria um dia cheio, mas não podia estar mais satisfeito. Poderia ir visitar a escola de teatro, porque não tentar alguma coisa nesse ramo? Sua tia poderia ajudá-lo, poderia fornecer alguma coisa, não seria difícil. Um trabalho cheio de gente interessante, poderia até conhecer uma mulher, quem sabe? Mil planos invadiam a sua mente enquanto tirava a roupa para ir dormir. Mil planos, e um futuro brilhante pela frente. Quem sabe presidente? E porque não? Quem poderia predizer o futuro? Desta vez, sentia que estava livre mesmo. “Nunca mais”, dissera Pestana. Nunca mais. Dormiu contente, como não dormia há anos.

9: Jéfferson

- Ele sumiu! E agora? Ele sumiu! – disse Ângela, revirando todas as coisas da casa, atrás de algum vestígio da presença de Fernando. Em cima da cama, cartas e fotos rasgadas, cartões postais amassados, vasos quebrados, fitas de vídeo destruídas. Fernando partira. Metade das economias, metade das poucas jóias, metade de tudo tinha ido embora. Os documentos importantes, idem. O carro, também. Ele não estava no trabalho, não estava na casa dos amigos, ninguém sabia nada sobre o seu paradeiro. Fernando Henrique partira.
- Não acredito. Pra onde ele foi? – respondeu Ana Flávia. Eram cinco da tarde. Ângela passara a tarde na casa dela. Era um momento feliz. Consultas desmarcadas, projetos de vida nova, namorado novo, tudo bem longe da depressão. Ângela estivera feliz durante esta tarde, mesmo depois da manhã complicada. Mas agora estava apreensiva. Onde diabos Fernando havia se enfiado?
- Não faço a menor idéia. Ana, o que será que ele fez?
- Não sei. Pelo que você me disse, ele não disse nada de mais. Não disse pra você dormir, ou alguma coisa assim? Como será que ele pensou em resolver as coisas?
- Não sei, Ana, mas eu tô preocupada.
- Preocupada com quê? Tá tudo bem claro aí. Ele foi embora. Ele te deixou. Pronto. A gente quer achar ele pra ele pagar minha grana, só isso. Ângela, esquece o passado. Acabou.
- Pra onde ele foi?
- Não sei! Eu quero saber! Vou querer a minha grana! Que merda. Como é que o cara some assim?
- Será que ele fugiu?
- É o que parece.
- E aquele cara lá embaixo?
- Não sei. A gente tem que achar o teu marido.
- Liga pro Pestana!
- Não. Vamos resolver isso nós mesmas. Ele não quer ouvir a minha voz. E nem eu quero ouvir a dele.
- Será que ele fugiu pra não pagar?
- Será? Cês tavam tão mal de dinheiro assim? Quinhentos não é tanta grana. Porra, que louca que deu no Fernando?
- Não sei. Ele sempre foi calmo. Nunca pensei que ele fosse fugir desse jeito.
- A gente não sabe se ele fugiu.
- Ele fugiu! Ele fugiu, foi embora. Levou os documentos, as cartinhas que o pai dele escrevia pra ele, os vasos da mãe dele, a máquina fotográfica. Levou embora tudo que tinha importância pra ele.
- Então, ele foi embora. Mas sem avisar? Que merda! Que cara doido!
- Ana...
- Não, é doido, sim. Puta merda, Ângela, já tava mais que na hora de você largar esse cara. Você precisa arrumar uma vida normal, com um cara normal!
- O que a gente vai fazer?
- Não sei. Já tentamos ligar pra todos os amigos dele. Ex-namoradas, sei lá. Pode ter fugido com uma vadia qualquer.
- Não, não tem, não. Não dá. Isso não ia rolar.
- Tem certeza?
- Tenho.
- E ele não tem família nenhuma mesmo?
- Aqui, não.
- Onde mais?
- Como assim, “onde mais”?
- Onde mais ele tem família?
- Em outros estados, mas ele não ia pra outra cidade. Isso não teria cabimento.
- Onde mais, Ângela?
- Mato Grosso. A mãe dele mora lá.
- Ele pode ter ido pra lá?
- Duvido.
- Liga lá.
Uma ligação depois:
- Não, a mãe dele não sabe onde ele tá.
- Ela pode estar mentindo.
- Não ia dar tempo de ele ir pro Mato Grosso! Olha, Ana, isso não existe, tá? Ele tá escondido em algum lugar aqui!
- Numa cidade satélite, pode ser?
- Ana, vamos esquecer esse dinheiro, esquecer tudo!
- E eu vou dizer o que pro Pestana? E dizer o que praquele cara lá embaixo?
- Ana, vamos esquecer isso!
- Não dá, Ângela. Quinhentos pau vão fazer diferença pra mim. Eu tenho planos, também, sabia?
- A gente não vai achar ele.
- Na satélite?
- Não.
- Onde, então?
- Ele tem uma tia em Goiânia.
- Dá tempo de ir até lá nesse tempo?
- Impossível. Se ele tivesse saído, ele ainda não teria chegado.
- Liga lá pra confirmar.
- Ele não vai tá lá, Ana! Que bobeira! Que ataque de bobeira é essa? – e ela realmente não entendia. Tudo parecia tão perfeito, porque Ana insistia naquilo? Porque queria tanto aquele dinheiro? Será que o dinheiro era de Pestana? Porque as coisas não poderiam ser simplesmente... simples?
- Vou procurar na agenda. Mas é muito pouco provável...
- Última tentativa. Aquele cara lá embaixo tá aí pra fazer um serviço!
- Olha, eu não quero ver o Fernando morto, Ana!
- Ele não vai morrer. Vai só ameaçar, pra ele me pagar.
- Ana, eu não sei. Tô muito nervosa. Não acredito que a gente chegou a isso... a esse ponto...
- Não se preocupa. Depois de hoje, sua vida vai ficar inteiramente no passado.
- Achei. Tia Fátima. Eu conheço essa mulher. É meio doidona, mexe com teatro, e virou religiosa.
- Liga lá.
- Mesmo que ele tivesse ido, ele não ia ter chegado!
- Se ele fosse pra lá, ele ia ter avisado! Pergunta!
- Tá bom. – respondeu Ângela, discando. Estava irritada com aquilo tudo. Porque Fernando tinha que desaparecer? Será que ele não podia resolver as coisas direito, como gente civilizada? Que maluquice teria dado nele? Pensava que esses quinhentos reais não fariam falta, que poderiam ser pagos, que era muita coisa por pouco dinheiro. E era. Mas era dinheiro, e isso movia as pessoas. Discou, e, pouco depois, a voz de Fátima atendeu do outro lado:
- Alô?
- Alô. Dona Fátima? É a Ângela, mulher do Fernando Henrique, filho do Wilson. – disse Ângela. Era uma bom começo.
- Ângela? Oi, meu bem. Como é que tá? Quer falar com ele? – “Quer falar com ele?” Na hora, ela não acreditou. Ficou estupefata, e logo depois riu. Ana Flávia era um gênio. Desligou o telefone. Fernando estava lá. Fernando fugira para a casa da tia goiana. Impensável. Impossível. Totalmente real.
- O que foi? – perguntou Ana Flávia.
- Ele tá lá!
- Viu? Não disse? Hahaha. – gargalhou Ana, eufórica. Também se achava um gênio. Intuição feminina, profundo conhecimento do comportamento dos homens, telepatia, a porra que fosse! Ela era um gênio. Poderia buscar o dinheiro e livrar a cara com Pestana.
- O que a gente vai fazer? Ele tá em Goiânia.
- Vamos lá!
- O quê?
- Vamos lá botar o cano na cara dele!
- Ana! Pára com isso!
- Não, Ângela. Por bem ou por mal, isso acaba hoje! Tô te dizendo! Goiânia é bem pertinho. Aquele cara lá embaixo vai levar a gente. Pronto. A gente chega lá, chama o Fernando pra fora, pode até tomar um café na sua tia, pega o dinheiro, que é nosso, e vai embora. E todos vão viver felizes pra sempre. Tá entendendo?
- Ana, vamos deixar isso pra lá...
- Não. Pega suas coisas e vamos embora. Tá escurecendo, não quero chegar lá tão tarde. A gente até pode dar uma saída. Você gosta da night goiana?
- Ana...!
- Pega suas coisas.

Jéfferson era feliz. Tinha uma esposa, uma amante, quatro filhos: três homens e uma menina. Ganhava dinheiro o suficiente para sustentá-los, com o que fazia. Matava gente, essa era sua profissão. Às vezes, fazia outros tipos de bicos, todos eles eram todos relacionados ao crime. Já roubara bancos, já mexera com o tráfico de drogas, mas nenhum emprego era tão lucrativo e definitivo quanto o dele. Matava, e pronto. Sem compaixão, sem pensar, sem nada. Se pensasse, que porra seria dele? Não pensava. Pensaria pra quê? O que importava, para ele, era a vida dele. A vida dos outros era apenas a vida dos outros, o que importava? Vivos ou mortos, eram apenas os outros, e a sua família. Queria o bem para ele, matar era fácil. Começara cedo, treze ou quatorze anos. No Rio, devia ser mais cedo. Quem crescia na Ceilândia e era preto começava cedo. Mas os servicinhos, as coisas pequenas, já haviam se ido há muito. Hoje, recebia ordens diretas de Pestana, o deputado. Trabalhava pra ele. Havia outros subordinados, é claro. A hierarquia do crime, como todos sabem, é imensa. Jéfferson trabalhava diretamente para Pestana. Era amigo de Pestana, admirava Pestana. Esse sim, filho da puta maior, sabia o que queria, sabia fazer fortuna. Talvez algum dia fosse ser como ele. Uns caem outros, sobem. Ele poderia ser o sortudo, ou o competente, a subir na próxima vez. Mas era preto, e isso o incomodava. A sociedade não gostava de pretos, o que poderia fazer? Seria difícil se eleger deputado, ganhar muito dinheiro, mas poderia crescer no tráfico, poderia seqüestrar alguém, havia infinitas possibilidades. Sua casa no Bandeirante era cada vez mais mobiliada, com televisão, telefone, até celular, um bocado de coisa. Pensava em comprar um computador, ou um vídeo-cassete, mas ainda era cedo pra pensar nessas coisas.
Estava com o 38 no bolso. A arma era sua irmã, bem cuidada, lustrada, as balas eram novinhas, compradas no dia anterior. Pestana abastecia tudo com o dinheiro que mandava, é claro. Balas, pistolas, carro, gasolina, tudo. E as missões eram violentas. Muitas vezes, fazia apenas escolta para gente grande: bicheiros, gângsters de todo tipo, fazia parte do clube dos matadores. Era um gângster, como nos filmes. Protegia gringos, empresários, matava muita gente, a maioria da sua própria laia, a grande maioria envolvida no tráfico de drogas, e no de armas. Faltava vestir terno e gravata, e usar óculos escuros, mas os gângsters dali não eram desse tipo. Eram pretos, e não diziam nada antes de fazer o serviço. Matador não tinha que dizer nada. Tinha que matar. Não tinham outra função. E eram felizes. Muito felizes.
- A gente diz pra ela chamar o Fernando. Olha, Ângela, foda-se essa mulher. Ele enfia o cano na cara do Fernando, ele entrega o dinheiro e a gente vai embora. Pode deixar, ele sabe bem cuidar dessas coisas. – disse Ana Flávia, olhando pelo canto do olho para Jéfferson, que continuava dirigindo o carro sem desviar a atenção. Ouvia tudo cautelosamente, mas não arriscava dizer uma palavra. Não importava o que aquelas putas diziam. Estava lá apenas para fazer um serviço simples: matar um cara, segundo Pestana, e apenas apontar a arma para ele, segundo aquelas duas mulheres. Na hora, sua intuição diria o que fazer. Estava tudo lá, pronto, arranjado pelo deputado: um celular para contato, um Santana velho com muito dinheiro para sustentar a gasolina de missões de muitos meses, tudo havia sido fornecido por Pestana no começo da tarde. Não sabia que teria que viajar, não gostava de dirigir à noite, nem na estrada. A moça do lado, Ana Flávia, estava mais a par da missão do que ele próprio. Fazia o papel de um motorista. Entendia aquilo, entendia perfeitamente.
- Tá bom. O que a gente vai fazer depois? E se o Fernando chamar a polícia? – perguntou Ângela. Estavam na estrada há meia hora, apenas. Eram sete da noite, uma noite sem nuvens, bastante estrelada, ainda não haviam saído do território do Distrito Federal. Viam pequenas casinhas e barracos por todos os lados. Pra trás, ia ficando Brasília, deixando apenas um fundo de terra e luzes acesas aos arredores. Estavam em Samambaia, uma cidade pobre e desgraçada. Mais à frente, veriam o cerrado cada vez mais fechado. Jéfferson apenas ouvia o que elas diziam com calma. Às vezes, sentia impulsos sexuais. Ouvira dizer que a loira era puta, mas não tinha certeza, e, de qualquer forma, não poderia fazer nada. Não poderia desobedecer nem desagradar Pestana. Tinha ordens explícitas: a moça era intocável. Não sabia nada sobre a outra, mas, como era amiga da loira, era intocável também.
- Ele não vai fazer isso, Ângela. Ele vai deixar isso quieto. Ele não é idiota! Sabe que se ele fizer isso o Pestana manda mesmo matarem ele. Ele deve tá com medo, Ângela.
- E se ela tiver avisado pra ele que eu liguei? Ele vai sacar!
- Ele vai ter que ficar lá um tempo, não tem jeito. Acha que ele iria embora? Se ele não estiver lá, foda-se, a gente vai embora. Dá umas voltas pela cidade, vai ser divertido. – Ana Flávia se divertia mesmo. Gostava de ver os homens sofrendo, gostava de ver a felicidade da amiga. Sabia que o momento era difícil, mas, no fim, tudo daria certo. Não tinha como dar errado. Fernando havia perdido essa.
- Tá bom. Amanhã eu vou ter que trabalhar, por isso é melhor a gente já sair cedo, amanhã. E eu não quero ver nada disso, não. Tô assustada, Ana. Não quero olhar o Fernando, não quero ver a cara que ele vai fazer quando olhar pra mim. Vocês vão lá, e vão rápido... – o coração de Ângela batia rapidamente. Jéfferson riu discretamente. Começava a entender, pelo menos por um pouco, a situação. Era uma missão incomum. Depois, contaria à sua mulher, e aos seus filhos. Os homens, é claro. E só os mais velhos. Os outros ainda não estavam prontos para saber o que o pai fazia, mas se orgulhava daquilo tudo. Tinha muitas histórias para contar à família. Gostava de contar histórias.
- Não vai acontecer nada com ele, Ângela. O babaca vai ficar gelado por uns instantes, e só. Depois, a vida dele vai virar uma maravilha também. Tudo vai dar tão certo que... ahh... não dá nem pra esperar. Agora, melhor ainda, que o apartamento ficou pra você. A gente pode vender aquele negócio e equipar o meu. Vai ser legal ter você lá.
- É... deve ser uma boa idéia, mesmo. – concordou Ângela. Ana Flávia tinha razão. Seria simples, seria rápido. Fernando nem a veria, afinal. Acalmava-se, aos poucos. Jéfferson começava a ficar curioso a respeito de Fernando Henrique, quando o celular de Pestana tocou. As duas mulheres se assustaram. Um toque alto, no meio de um silêncio repentino.
- Alô – atendeu Jéfferson. Sua voz era baixa, e um pouco rouca. Eram sete e quinze da noite.
- Alô, Jéfferson. Onde você tá? – era Pestana.
- Indo pra Goiânia, fazer o serviço, com a dona Ana Flávia e a amiga dela.
- Bem, eu vou ser rápido, tá legal? Cê tá na estrada?
- Samambaia.
- Você vai mudar a missão. Entra numa quebrada e apaga a puta. Tem que ser rápido. Joga o corpo em algum lugar por aí que você conheça, ou então entrega pros traficante, se vira aí. Deixa o carro por aí, também.
- E a outra?
- Ela tá com outra puta aí?
- A amiga dela. – Ana Flávia pressentiu o pior. Havia pensado na possibilidade, mas não acreditava, de forma alguma que ela fosse se concretizar. Teria Fernando procurado Pestana? Não, não podia, nem em seu pior pesadelo.
- Apaga, também. Não quero mais ver essas vacas da Ana Flávia. Tá bom? Depois a gente se fala. Faz o serviço e some por uns dias.
- Tá bom. – respondeu Jéfferson, desligando logo em seguida. Lançou um olhar para as duas. Era fácil perceber. Estavam mortas. Tudo tinha dado errado. No mesmo momento, Ana Flávia começou a chorar. Ângela não percebera tão rápido, mas com a reação de Ana Flávia, não havia dúvida. “Porquê?”, pensou. Porque a sorte e as coisas mudam assim, tão repentinamente? Porque, em uma noite, sua vida pacata se torna uma descida sem volta ao inferno? Ana Flávia se xingava. Não podia fazer nada. Havia sido estúpida, inconseqüente, sabia com o quê estava mexendo. Porque tão rápido, e porque tão repentinamente? Jéfferson, se ouvisse, não saberia responder. Tinha as mesmas dúvidas. Por um breve momento, tentou pensar em porque Pestana havia virado o jogo, mas logo desistiu. Não valia a pena pensar. Entrou em uma ruela de barro, já no fim de Samambaia. Ana Flávia tentou reagir, tentando virar o volante, mas ele era mais forte, era treinado naquilo, era impossível vencê-lo. Mundo violento. Parou o carro, sacou a arma debaixo da camisa e deu dois tiros certeiros. O carro ficou sujo, mas depois resolveria isso. Deu a partida e acelerou. Ninguém viu o crime. Teria que providenciar dois enterros ainda na mesma noite. Noite cheia. “Porquê?” Não sabia responder. Era apenas mais uma noite de trabalho. Estava cansado. Queria voltar para casa e dormir.

10: Pestana

Sábado, meio dia, Pedro estava acordando. A noite anterior havia sido quente. Tentara encontrar, de todos os jeitos, aquela mulher esquisita do outro dia, mas não teve jeito. Era maluca, mas era quente, pelo menos. A mulher havia desaparecido! Teve que ficar perambulando pela cidade, atrás de alguma outra qualquer, precisava de uma foda qualquer. Não conseguiu. Nem era tão simples assim. Uma ficada e outra, tal, mas uma foda? Uma foda exigia muita perícia. Tanta perícia quanto fora necessário com Ângela na Quinta-feira. Muito difícil, muito cansativo.
Mesmo assim, encher a cara era necessário, assim como dançar muito, fumar muitos cigarros, e gastar muito dinheiro. Chegara às cinco da manhã. Meio dia era um bom horário para acordar. Era um momento extremamente pacífico para ele: meio dia do Sábado. À noite, provavelmente sairia novamente. Tentaria contatar aquele menininha chorona de novo. Aquela noite havia sido uma delícia. Pedro sabia como tratar as mulheres, sabia como fazer para lhes dar mais prazer, sabia ser um gentleman. Era disso que gostava, era isso que pretendia ser. Um gentleman. Sorria. Gostava de sua vida mais do que tudo. Tinha bastante dinheiro, um apartamento enorme só para ele, um excelente emprego e mulheres. Algumas, pelo menos. Tirou da gaveta do closet, no quarto (um quarto enorme, com uma grande televisão, um grande armário, uma grande quantidade de roupas, uma grande coleção de perfumes, uma grande cama, uma estante grande cheia de livros grandes...) os ingredientes para preparar sua diversão favorita do Sábado à tarde: um grande baseado. Ligou a TV, sem som, e colocou um disco com músicas reggae do Clash para tocar. Adorava o Clash, adorava as tardes de Sábado.
Aos poucos, ia manufaturando seu pequeno cigarro, lambendo o papel de seda com cuidado, e com carinho. Queria aproveitar e relaxar ao máximo no momento. “A vida é boa”, pensou. Pensava também em Ângela. Gostara dela, realmente. Muito neurótica, muito maluca, mas poderia ser consertada. Infeliz que não a tivesse encontrado no dia anterior. You can crush us. You can bruise us, gritava o reggae agressivo do Clash no som. Pedro pensava na quantidade de gente que sofria nesse mundo. Era um privilegiado. Nunca precisaria fazer letras de protesto, nunca precisaria protestar contra nada. Estava satisfeito, estava acomodado. Seu pai morava em São Paulo, junto com sua mãe e sua irmã. Era formado, achava que era bonito, era uma alma de sorte. A TV, os livros e as músicas mostravam sempre coisas tristes e cruéis, o mundo era muito cruel, mas felizmente ele vivia em uma redoma de vidro. Era inquebrável, não era?
As imagens mostravam algum problema envolvendo política, e parecia bem escandaloso. Deputado Claudio Pestana, do PPP, sendo entrevistado por quinhentos mil jornalistas, e polícia, e médicos, e uma reportagem enorme. Isso interessava Pedro. Resolveu baixar o som para ouvir o noticiário. DF TV. You can crush us, you can bruise us... oooh, the guns of Brixton, gritava o Clash. Mundo violento.
“Deputado Pestana, 39 anos de idade, está sendo levado agora para a primeira delegacia de polícia de Brasília. O escândalo de fraude, corrupção, extorsão e assassinato parece não ter mais fim. Após o flagrante, diversas informações que estavam sendo mantidas sob sigilo pela polícia civil começam a ser reveladas. Além do assassinato, suspeita-se que Pestana esteja seriamente envolvido no tráfico de drogas e no suborno de muitos policiais. As denúncias são feitas pela própria polícia, numa investigação que já durava meses, realizada pelo delegado Francisco Silva, da primeira DP. Ele concordou em dar uma entrevista para o DF TV, e é Tânia Lopes quem fala com ele:
- Boa tarde a todos. Estamos aqui com Francisco Silva, o delegado que é o autor das denúncias contra Claudio Pestana de hoje de manhã que têm movimentado a cidade. Boa tarde, Francisco.
- Boa tarde. – responde Francisco. Pedro assistia atento. Parecia algo grande. O que teria acontecido?
- Bem, o senhor poderia explicar essas denúncias?
- Sim. Como já pudemos ver, nós conseguimos finalmente o flagrante que precisávamos para incriminar o deputado, que está envolvido num grande esquema de corrupção, como demonstraremos na justiça, com o resultado de meses de investigação.
- O senhor tem o flagrante: a gravação de uma conversa telefônica na qual ele ordena o assassinato de duas mulheres. Isso constitui mesmo uma prova definitiva? O que o senhor tem a dizer a respeito disso?
- Nós temos diversas conversas sus...suspeitas do deputado arquivadas. Os telefones dele estavam grampeados fazia tempo, já. Estávamos esperando uma ordem direta, algo desse tipo mesmo, pra podermos denunciar com firmeza. Agora, o caso deve ir para a justiça. – Pedro assistia curioso. Enquanto a entrevista passava, um pequeno quadro no canto esquerdo superior da tela mostrava o exato momento em que Pestana estava sendo levado para a delegacia. Pensava que os deputados não podiam ser presos daquele jeito. O que estaria por trás daquilo?
- E quanto ao direito de habeas corpus do deputado? Afinal, o que vai acontecer com ele? Ele será mesmo preso?
- A conversa telefônica, quando for comprovada a autenticidade da fita, constitui prova, constitui flagrante. Não tem como escapar com habeas corpus.
- Mas não tem risco do caso se estender nos tribunais?
- Isso não é comigo. É com a justiça. Vou prestar meu depoimento, fazer cumprir meu papel. A investigação revelou a nós da corpo policial muitas provas.
- E quanto ao assassino das moças, identificado como Jéfferson, e o “serviço” que ele dizia ir cumprir em Goiânia. O que a polícia sabe?
- Ainda não descobrimos o paradeiro, mas estamos à procura. Não deve estar longe
de onde foram encontrados os corpos. Temos pistas a respeito do serviço, mas só poderemos dizer alguma coisa quando já tivermos alguma coisa concreta. – Francisco estava nervoso. Teriam feito tudo certo? Pensava se não haviam se precipitado com aquilo. Oscar dizia que não. Era sorte demais aquilo acontecer naquele mesmo dia, mas acontecera. O contato com a imprensa fora rápido, também. No dia primeiro dia, a TV. No dia seguinte, o jornal. Aos poucos, Pestana seria massacrado com tanta informação suja a seu respeito. Será que Cadu estava gostando daquilo? Certamente. Como não? Tudo estava certo.
- Obrigado pela rápida entrevista, delegado. Agora, prosseguiremos com nossa reportagem. Elisa:
“As famílias das vítimas ainda não foram encontradas. Ângela Fontes Nogueira era casada com Fernando Henrique Nogueira, cujo paradeiro ainda é desconhecido. A polícia desconfia de que ele também possa ter sofrido algum atentado ordenado pelo Deputado, mas as pistas ainda são vagas. A Família materna, que não quis dar entrevista à imprensa, estava muito emocionada. Ninguém absolutamente esperava aquilo, nem imagina o motivo. Existe a possibilidade de Ângela ter sido morta por acidente, pois na conversa entre o deputado e o matador parece haver uma falha de comunicação a respeito da moça. Nenhum parente de Ana Flávia Gunter foi encontrado, também. Ainda não se sabe ao certo, mas desconfia-se que Ana Flávia fosse uma prostituta de luxo. Vamos ouvir mais uma vez o trecho da conversa telefônica apresentado como prova da ordem de assassinato pelo deputado:”
“Alô”
“Alô, Jéfferson. Onde você tá?”
“Indo pra Goiânia, fazer o serviço, com a dona Ana Flávia e a amiga dela.”
“Bem, eu vou ser rápido, tá legal? Cê tá na estrada?”
“Samambaia.”
“Você vai mudar a missão. Entra numa quebrada e apaga a puta. Tem que ser rápido. Joga o corpo em algum lugar por aí que você conheça, ou então entrega pros traficante, se vira aí. Deixa o carro por aí, também.”
“E a outra?”
“Ela tá com outra puta aí?”
“A amiga dela.”
“Apaga, também. Não quero mais ver essas vacas da Ana Flávia. Tá bom? Depois a gente se fala. Faz o serviço e some por uns dias”
“Tá bom”
A reportagem mostrava tudo: legendas com as falas, simulação dos assassinatos, o local exato onde os corpos foram encontrados em Samambaia, um dossiê completo de Jéfferson e um dossiê completo de Pestana. Também exploravam bastante as outras suspeitas contra Pestana levantadas pela polícia, principalmente relacionadas ao tráfico de drogas e corrupção. Pedro observava a reportagem, pasmo. A primeira confirmação era o nome Fernando Henrique, do marido. Jamais esqueceria. Ângela Fontes Nogueira. A companheira era suspeita de ser prostituta. Tudo ia voltando à sua mente. Segredos sujos. Coisas sujas. Estava tudo ali. Pedro mal acreditava. Seria o baseado? Não, não era o baseado. Seu coração se apertou. Por um instante, sentiu uma tristeza profunda. Por alguns momentos, havia realmente se apaixonado por Ângela, mesmo que por um breve e quase imperceptível relance. Por isso, por um também breve e quase imperceptível momento, sentiu vontade de chorar, mas não chorou. Uma aventura, era o que aquilo havia sido. Mundo violento. Ângela estava morta. Era tão triste, que ele não queria nem pensar. Uma moça tão triste, tão desesperada. Nem mesmo encontrá-lo a salvou. Sentiu raiva de Pestana. Nunca ouvira falar dele, pouco se interessava por política, na verdade. Não se lembrava nem do nome nem da cara dele nas eleições para deputado distrital, mas não importava. Odiava-o, e odiava a corrupção naquele país. E quem mais poderia estar por trás de todos esses fatos, todas essas pessoas? Tinha a noção certa, a noção de que aquilo não parava por ali. Pobre Fernando, o bicha-impotente. Será que teria morrido nas mãos do deputado também? Não fazia idéia. Uma breve e quase imperceptível noite com aquela bela mulher. Parecia até ter sido um sonho, para ele. Na verdade, talvez tivesse sido. Se perguntava por quanto tempo aquilo ficaria na sua memória. O encontro mais esquisito de sua vida. Será que, de alguma forma, aquele encontro noturno havia influenciado a morte de Ângela? Possivelmente, não, mas nunca se sabe. Nunca se sabe.

A cabeça de Pestana era apenas fúria e frustração. Não conseguia conceber, não conseguia acreditar em como pudesse ter tanto azar de uma só vez. O que faria? Às vezes, começava a esboçar planos e retóricas para rebater todas a muitas acusações que seriam feitas contra ele (e isso era certamente necessário), às vezes tentava encontrar aonde havia errado, e porque havia errado. Outras vezes, pensava nos culpados de tudo aquilo, nas pessoas que o haviam influenciado a cometer aquelas mancadas. Massacrava-os mentalmente. Seus pensamentos eram apenas ódio. Sentia vontade de chutar e bater em todos. Faria isso, se pudesse, mas desta vez não podia. Estava arruinado. Tinha todos contra ele: a polícia, os traficantes, a imprensa, a opinião pública. A imprensa faria a festa do boi gordo. Era prato cheio para eles. Era o bode espiatório. Jamais pensou que fosse ser isso algum dia. Lembrava-se do começo difícil, das mortes tolas, as atividades nos prostíbulos, no tráfico de armas, no crime organizado. Chegar à câmara fora até fácil. Tanto suor, tantos planos, tantas batalhas. E a vida jogada fora, daquele jeito. Culpa de Ana Flávia, puta desgraçada. Jamais deveria ter confiado nela. Jamais deveria ter confiado em ninguém. Frustração. Era o que sentia. Sentia-se até mesmo culpado de tentar canalizar seu ódio contra aqueles que haviam sido meras ferramentas naquele esquema intricado. O culpado verdadeiro havia sido ele mesmo. Pensava em seus filhos, sua esposa. O que seria deles, agora? Iria para a cadeia? Talvez não, mais sua imagem estava manchada para sempre. Jornal Nacional, Fantástico, apareceria sempre no horário nobre da Rede Globo. Era um sinônimo de depredação moral e corrupção no país. Será que seu nome entraria na história? Será que essa história seria passada para o seus netos, seus bisnetos...? Não sabia. Não gostaria de ser lembrado daquele jeito. Sentia uma ponta de arrependimento por tudo o que havia feito. Frustrado. Era como estava. Era tudo aquilo mesmo: depredação moral e corrupção. Era um verme, sabia disso. Teriam sido as drogas, o álcool, cocaína? Sabia que não, mas tentava jogar a culpa em algum lugar. Precisava canalizar sua auto-penitência. Ana Flávia estava morta, coitada. Trabalhara para ele durante tanto tempo e estava morta. Mas não havia porque sentir pena. Não havia porque sentir pena de ninguém. Não havia porque parar para refletir em um momento como aquele. Precisava agir, precisava desde já contratar o melhor advogado que o dinheiro pudesse pagar, precisava ficar livre, ir embora do país, se livrar daquilo tudo. Ilusão. Tudo pura ilusão. Estava entrando na delegacia. Ele mesmo havia fodido tudo, não tinha outra história. Brigara com tudo mundo. Odiava ser tão temperamental. Havia fodido tudo. Não tinha do que reclamar. Teria que se conformar, mesmo imaginando Oscar Carvalho sentado com um copo de Uísque em frente à televisão rindo do noticiário. Teria que se conformar.
Entrou na sala, as paredes repletas de papéis, a delegacia era barulhenta. Cinco mil fotógrafos tentavam tirar uma lasca dele pelas frestas das portas. Entrou e fechou a porta. Estava lá o delegado Francisco, fumando um cigarro, com uma papelada nas mãos. Ele sorria. Era um dia lindo. Sábado claro, as pessoas alegres. Pestana mantinha-se frio e controlado. Não poderia revelar suas emoções e sua raiva. Tinha que jogar o jogo deles, agora. A casa caíra, precisaria reconstruí-la aos poucos.
- Bem, Pestana. Tem muita sujeira aqui. A gente vai ter muito o que negociar pra saber o que a gente mostra, e o que a gente não mostra. – Francisco sorriu. Era a sua vez. Ninguém tiraria nada dele.

Pedro desligou a televisão. Precisava sair para comer. Comeria em casa. A notícia o abalara. Comeria em casa, mas precisava de ar puro. Abriu as janelas, terminou de fumar seu baseado olhando para as entrequadras. Tirou a camisa, respirou fundo. O que poderia fazer nesse Sábado? Pensou em conectar a Internet, comprar alguns jogos de computador, pensou em comprar uma caixa de chocolates para alguma das atendentes novas da loja. Poderia ir malhar na academia, porque não? Precisava exercitar-se, botar seu corpo funcionando. Poderia ler um livro, sair para tomar um chope. Era um belo dia, poderia fazer todas essas coisas juntas. Precisava esquecer o ocorrido, aventura estranha. Iria para a cozinha esquentar alguns pães de queijo e uma xícara de leite quente. Estava com fome. Pediria comida pelo telefone? Poderia ser uma boa idéia. Melhor que os pães de queijo. Ângela não saía de sua cabeça. Na verdade, gostaria de ir ao enterro, não sabia se já havia ocorrido, procuraria se informar. Precisava comprar algumas flores. Mulheres gostam de flores, mesmo as mortas. Sentiu um calafrio. Mundo louco, esse. (caso vc tenha chegado ao fim, favor teça um comentário. Obrigado)
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