Usina de Letras
Usina de Letras
155 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62210 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140797)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->O PERIGO DE EVITAR -- 25/03/2000 - 22:47 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O PERIGO DE EVITAR

Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli*


Passava dos 40. Queria aplainar o percurso até os 50. Se desse, procuraria chegar aos 60 com fisionomia e disposição de 30. Com esse desiderato de manejo do tempo, tratei logo de ingressar numa academia de ginástica.

De leituras e congressos extraíra que depois da fatídica quarta década, começavam a ocorrer perdas: massa muscular, tecido ósseo, capacidade aeróbica e tudo mais que uma vida herdava de graça, por sorte, ou acumulava por esforço pessoal. Não só perdas, mas elevações nocivas: o mau colesterol, os radicais livres, etc. Folgava em saber que não tinha de atravessar nenhum climatério ou menopausa ex-officio. Andropausa, minha outra apreensão, era algo vago e ainda muito especulado. Celulite pertencia ao campo de aflição feminino. Alívio saber também que a idade cronológica livremente arbitrada situava-se sempre vários desvios padrão abaixo da média de palpites. A toda hora, obrigavam-me a meter a mão no bolso para exibir a verdade em documentos.

As pesquisas que empreendi convenceram-me de que uma boa estratégia para enfrentar o ataque do tempo consistia em combinar prática de musculação com caminhadas cronometradas.

Para compensar a estiagem de movimentação decretada pelos finais de semana, percorria os parques com regularidade.

Ao entardecer de sábado, depois de uma longa caminhada e de um meticuloso alongamento, decidi autoministrar-me uma sessão de levantamento de pesos. Disposição para inventar não faltava. O espaço público com aparelhos estava repleto de atletas informais das mais diferentes linhagens. Um circo aberto. Eles faziam exercícios nunca vistos nos livros e nas academias. Vontade de sair copiando logo as acrobacias, sem maiores avaliações de riscos e capacidade de execução. Deitei numa tábua de madeira e suspendi para cima e para trás da cabeça uma haste de ferro com duas latas recheadas de cimento improvisadas de peso. Aparentemente, nada de extraordinário. O início do giro foi tranquilo. O retorno do movimento é que fez o braço travar no ar e o peso estrebuchar no chão. Foi possível escutar um som bem parecido com o do tecido rasgado pelo vendedor de loja no gesto enérgico de separar o pedaço de pano. Nessa fração infinitesimal de tempo, nascia uma luxação do ombro que mudava o rumo e o ritmo da vida. Pronto socorro, inaptidão para os atos mais triviais, lentidão para tudo. Operando com um braço-mão, não conseguiria atar os cordões do tênis, cortar a carne, abotoar a camisa, utililizar o fio dental e assumir as funções nas quais o outro se especializara ou realizava com exclusividade. Algo tão singelo foi repercutir até no sono. Mesmo com a ameaça de insónia e pesadelo, a posição de bruços cultivada desde a infància cederia lugar ao escancarado decúbito dorsal para forçar uma visão de mundo mais vígil. Imobilização, atrofia muscular e fisioterapia a perder de vista num prognóstico bem favorável. Isso é como turbulência de avião; a gente não esquece jamais. Deixo de flutuar no improviso e na imprevisibilidade dos momentos para entrar na ordem médica monitorada. Destronado do pódio da vida, sou catapultado para o exílio de um sedentarismo abissal, impedido de bater palmas na platéia. Que dúvida! O fato se encaixava no script da vida ou era brincadeira de gosto mau que provei na hora da distração?

O ato médico é algo bem tópico, não dá idéia do grau de afetamento das demais instàncias do viver. O confinamento doméstico impunha-se como prudente e recomendável. Desse modo, evitaria esbarrões, quedas e solicitações do membro que acabara de perder competitividade. Daí que seria conveniente transformar a casa num balcão de auto-atendimento. Impossível contar com os outros. Da família sobravam os retratos dos falecidos e os contatos telefónicos esporádicos dos sobreviventes. Amigos, colegas, conhecidos, todos parecem distantes nessas horas, entretidos em agendas de prioridades inadiáveis. O que fazer numa situação dessas? Contratar alguém para dar conta de tudo aquilo que um segmento do corpo submetido à prisão do esquecimento súbito deixava acumular. Até o banho seria terceirizado, com intimidade devassada e custos onerados. O engraçado é que todos perguntavam se precisava de alguma coisa. No oferecimento espontàneo e fraternal vinha embutida a descarada recusa da ajuda. Ora, na verdade, precisava de todas as coisas, ou de muitas. O telefone e o dinheiro foram logo eleitos substitutos do braço ausente. Com eles comandaria o mundo. Tudo que quisesse chegaria ao 10º andar de meu apartamento. Se fosse grande demais, subiria as escadas ou seria alçado pela grua na janela.

As hostilidades do neoliberalismo e da globalização têm lá as suas benevolências. A falta de tempo de todo mundo acaba no momento em que recorremos ao nicho do mercado. Aí encontramos as pessoas inteiramente desocupadas, disponíveis e solidárias. Com um bom saldo bancário, todas as agendas tem a alvura do melhor sabão em pó e a instantaneidade do puro café solúvel.

Dias aziagos todos temos. São normais como uma azia que passa logo. Esse, contudo, foi um dia diferente de tudo já vivido. O tempo parou, a noite não trouxe o sono da gestação do amanhecer seguinte.

Não pensem que a enxurrada de descobertas científicas e avanços técnicos na medicina resolvem as questões mais banais. Entre o anúncio e a disponibilidade de aplicação decorre toda uma latência de titubeios e discussões entre autoridades que mais excitam o público do que habilitam o médico. É difícil influir nos processos longínquos de concepção da vida. A maneira de tratar um membro luxado ou fraturado é a mesma da era de Adão e Eva, porque, apesar de tantas evoluções, a biologia do homem é a mesma. O que depende de cicatrização necessita cicatrizar. Cicatrizar demora, deixa marcas, dói, não restitui o estado original.

O tempo, ah! o tempo, como se brinca com ele, como se ludibria quem precisa atravessá-lo! Demora a aparecer a face verdadeira das coisas, essa que mostra o que de fato aconteceu. No começo, a estimativa para recuperação era de três semanas, findas as quais foi recomendada mais uma de reforço. Quando me livro da aflição? Aqui só se fala em unidades grandes que derrapam para cima, tais como "em torno de tantas ou tantas mais semanas, meses". Depende da resposta, que eu não sei qual vou dar, nem eles a que será obtida. Depende da utilização almejada para o braço também. Se for para a prática de exercícios, mais tempo ainda. Sem contar o tempo de fisioterapia, que monta a pelo menos duas vezes o tempo de imobilização. Depende, dependo de todas as variáveis e de nenhuma constante. Nessas incertezas das circunstàncias, encontramo-nos todos randomizados dentro de amostras aleatórias. Depois da alta, o braço ainda me pertencerá? Vou reconhecê-lo como meu? Obedecerá aos meus comandos? Será que fará a falta que hoje faz? Da aflição do período de imobilização a gente se livra para ingressar na rotina compulsória de fisioterapia, suposto caminho de cura. Um legítimo expediente não remunerado, não filantrópico e não dedicado ao lazer. Uma saga de heroísmo épico! Somos licenciados do trabalho para continuar a trabalhar nesse outro trabalho que tem chefia e horário rígido. E avaliações, cobranças, proibições de tudo que se julgava liberado.

Demora daqui, explicações dali, a complicação vai assumindo feições de expressão frusta. O inconsciente refuta o que fustiga, trata de providenciar um fim prematuro. O paciente cala seu sofrimento; o observador vai desconstruindo o seu alerta de impacto original. Ninguém é mais capaz de pontuar a doença na sua intensidade atual. O foco do mal passa a atuar no silêncio da profundidade íntima. Lá, nesse lugar mal definido, sem que se deseje, amontoam-se as conjeturas de uma antevisão do que teria sido pior, como se a gente exacerbasse o trauma atual com a graduação maior. A doença é um cordão de isolamento, um encontro não marcado com a solidão da impotência.

Quando tiver alta de meus ex-votos imobilizadores, quero levá-los a um local de emanações milagrosas, não para agradecer uma graça alcançada, e sim para alcançar a graça de abandoná-los pelo todo sempre. Revogarei o refrão do "mexa-se" para decretar o dogma da imobilidade absoluta. Vive-se de prevenir isso e aquilo. O perigo de evitar as mazelas do adoecer e do envelhecer é que ele, o perigo de evitar, nem sempre é inocente. Nossa onipotência turva o entendimento de que a morte brinca de viver.

Ao realizar os exercícios pensei que tomava uma decisão. Em vez de voltar para casa com as minhas pernas, fui levado de ambulància para um pronto socorro. O nobel 1998 de literatura, Saramago, ter-se-ia refestelado se soubesse. "Em rigor, não tomamos as decisões, são as decisões que nos tomam a nós."

Nessa viagem ao Inferno de Dante, só mesmo ouvindo com devoção o desafio do tempo enunciado por alguém: "A tragédia de hoje é o riso de amanhã". Mas hoje ainda é ontem. Falta decantar o que está em suspensão.

*Médico psiquiatra da UFRGS.

Um ano após o traumatismo

Quando me perguntam como ficou o braço, respondo, bem. E não minto. Executo todos os movimentos. Porém, vez por outra, se brusco irrompe o gesto, a articulação se retrai, recusa-se a atuar com desenvoltura. Se a realidade solicita uma posição mais exótica, aquele movimento que o tempo decorrido não tenha reinventado, sinto algo estranho. A memória de que ali aconteceu algo. E falo a verdade. Uma memória diferente da cabeça, que esquece. Não sei quando - há tempo? - o repertório acumulado desse braço ombreia com o esquecimento de origem do outro.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui