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Contos-->Olhos Vermelhos -- 18/12/2001 - 00:36 (Júlio César Bianchi Furtado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Padre Elijah

Recebo muitas cartas todos os dias. A maioria possui a mesma pergunta: “De onde você tira as idéias para seus contos?”. Eu sempre dou a mesma resposta a todas: “Caro leitor, meu pai me contava muitas estórias. Muitos dos meus contos são baseados em personagens destas estórias. Um grande abraço”. Peço perdão a todos os meus fãs por ter sido tão sucinto na resposta. Hoje explicarei o motivo. Tal resposta implicaria numa volta ao meu passado. Uma volta á minha infância. Sendo mais preciso, uma volta ao dia 26 de Fevereiro de 1930, que tento apagar da minha memória desde então. Este maldito dia ainda me assombra terrivelmente.
Hoje, com meus 80 anos, 2 meses e 13 dias de vida, não tenho mais nada a fazer senão esperar a chegada da Sra. Morte. Ou seria Sr. Morte? Mas seria um enorme desperdício eu partir sem contar aos meus leitores o que me aconteceu.
Não será fácil colocar os fatos no papel. Estou velho e cansado, minhas mãos não têm a mesma coordenação motora d’antes. O fator psicológico também irá me atrapalhar, pois terei de recordar cenas desagradáveis. Imagens perturbadoras.
Bom, peço a Ele que me dê forças para esta árdua tarefa.

Era primavera em Los Angeles. Eu tinha 9 anos. Minha irmã Flavia era a caçula, acabara de completar 7 anos. Meus pais, Edward e Lizzy, formavam o mais belo casal que já conheci. Os dois realmente davam um significado especial para a expressão “Foram feitos um para o outro”. Ainda hoje eu lamento por não ter vivido uma paixão como a que tiveram. Mais isso não vem ao caso.

Meu pai possuía uma pequena fábrica de calçados no centro de Los Angeles. Chegava em casa todos os dias pontualmente ás 21:35hs. Mas naquele dia ele se atrasara quase 2 horas. Chegou em casa com um sorriso quase infantil nos lábios.
— O que houve? — perguntou-lhe minha mãe.
— Nada de mais. — colocou o paletó sobre a cadeira da cozinha. — Eu estava dando algumas instruções para o Call. Ele irá ficar no meu lugar durante alguns dias.
Eu e minha mãe ficamos espantados. Deixar alguém em seu lugar? Meu pai nunca ficara um dia longe da fábrica. Aquilo era a segunda paixão da vida dele.
— Você está doente? — perguntou minha mãe.
— Não. Sabe, Liz, hoje eu me dei conta de um fato. Nunca tirei férias.
— Só hoje você percebeu?
Foi possível notar um ar de alívio na voz de minha mãe. Ela se assustava muito facilmente.
— Eu estava observando os filhos do Call hoje na hora do almoço. Aquilo me trouxe muitas lembranças. Zach e eu.
— Zach? Seu primo Zach?
— Sim.
— O que houve com ele? Por quê eu nunca o conheci? Ele não mo...
— Não. Quero dizer, espero que não.
— Ah, agora eu me lembrei. Vocês brigaram na adolescência. Estou certa?
— Sim.
— Os dois gostavam da mesma garota. História clássica.
— Ele se casou com Elizabeth. Desde então nunca mais nos falamos.
Fez-se silêncio.
— Tomei uma decisão esta tarde. — disse meu pai. — Eu vou lhe fazer uma visita. Ou melhor, nós iremos visitá-lo.

Minha mãe ficara muito entusiasmada com a idéia da viagem. Como eu já dissera antes, meu pai nunca se separava da fábrica. Só deixávamos Los Angeles para fazer compras em alguma cidade vizinha. Aquela seria nossa primeira saída de casa.
Meu pai descobrira que o primo Zach ainda morava na pequenina Mason Creek, e foi com este destino que deixamos Los Angeles na manhã fria de 23 de Fevereiro.

Faríamos o trajeto num Buick modelo 129. Apesar dos tempos não estarem tão bons, meu pai fazia questão de algumas regalias. Naquela época os carros não possuíam tamanha velocidade como os de hoje, por isso nossa viagem precisou de um intervalo. Após um dia inteiro de estrada nós paramos num hotel em Castlebury, onde passamos a noite. No dia seguinte outra manhã fria, mesmo assim partimos. A viagem fora super tranqüila, a não ser pelas brigas que eu tinha com minha irmã. Minha mãe ficava uma fera conosco. Meu pai não dava a mínima.
Como já disse antes, eu tinha 9 anos. Neste período da vida tudo é festa. Tudo tem o cheirinho de coisa nova. Bons tempos.

Chegamos em Mason Creek no começo da noite. Lembro-me de ter ficado impressionado com a beleza do lugar. Árvores. Muitas árvores. Eu não estava acostumado a ver muitas em Los Angeles. Chamar Mason Creek de cidade era um elogio. Vilarejo seria a palavra mais correta.
Foi muito fácil achar a casa do primo Zach. Papai conhecia aquele lugar muito bem. Afinal ele crescera ali. Sinto tanto orgulho de saber que meu pai saíra de um lugar como aqueles para se transformar num homem de negócios na cidade grande.
Dava para sentir que cada vez mais próximo do encontro com Zach meu pai ficava mais nervoso. A viagem seria em vão?
Papai parou o carro em frente a um casebre todo pintado de azul claro. Apesar de modesta, era a mais conservada do bairro.
— É aqui, Liz.
— É difícil acreditar que você tenha crescido aqui.
— Pode acreditar. É espantoso como não mudou quase nada. Até vejo minha tia Anny nos perseguindo pelo corredor. Ah, meus tempos de moleque!
Um homem alto aparece na janela da casa. Papai buzina duas vezes rápidas e deixa o carro.
— Zach?
O homem ficou um pouco surpreso. Fez-se silêncio.
— Eddy?
Apesar da minha pouca idade eu fiquei emocionado com aquele momento. Papai e o primo Zach se abraçaram por um longo tempo. Olhavam-se com espanto e felicidade ao mesmo tempo.

Elizabeth Dublyn, a moça responsável pela separação dos dois, falecera cinco anos após o casamento com o primo Zach. Os dois tiveram um filho, Andrew. O garoto era 3 anos mais velho do que eu e tínhamos quase a mesma altura. Eu estava adorando mesmo aquela viagem.

25 de Fevereiro.
O frio passara e o dia ficara agradável. Saímos todos para passear por Mason Creek. Lugar pequeno tem suas vantagens. Poucas horas foram suficientes para um tour completo.
O primo Zach estava maravilhado com o Buick de papai. Apesar de tantas notícias para colocarem em dia, o Buick era sempre mencionado. Onde você o comprou? Deve ter custado o olho da cara! Você deve estar muito rico, primo!
Na época eu ouvia tudo e resumia a uma palavra: inveja. Os anos se passam e você adquire experiência. Hoje eu chamaria de chantagem psicológica.
Para mim a viagem já começara a se entediar. Meu primo Andrew e eu não nos demos bem. Não havia brinquedos como os meus. A casa era pequena e apertada para 6 pessoas. Eu já começava a sentir saudade de casa e dos meus amigos. Mas no final do dia eu ouvi uma conversa entre meu pai e o primo Zach. Falavam a respeito de um tio que morava pelas redondezas. Um tio contador de estórias. Mathias era seu nome. Ouvi papai dizer que adoraria revê-lo, e que talvez o fizesse no dia seguinte. Lembro-me de ter gostado muito da idéia, pois minha paixão por ouvir estórias já era muito forte. Talvez minha verdadeira paixão.

26 de Fevereiro.
Papai decidiu visitar o velho tio Mathias. Saímos logo após o almoço. O primo Zach e Andrew não quiseram ir, apesar da insistência de meu pai.
O velho Mathias morava num vilarejo próximo, apelidado de Rio das Pratas.
Durante a viagem acabei me lembrando que meu pai já citara o nome do tio Mathias antes. Disse-me que aprendera a contar estórias com ele. Ninguém o superava.
Fiquei com pena do Buick, a estrada de terra e esburacada foi um verdadeiro castigo. Em certos momentos eu pensei que papai acabaria desistindo da visita. Mas não desistiu. Encontramos a casa do velho Mathias após 1 hora e 40 minutos de tortura.
O cenário era ainda mais bucólico que Mason Creek. Dava para ouvir o barulho dos pássaros e o vento batendo contra as folhas das árvores.
Mason Creek e Rio das Pratas exerceram uma certa magia sobre mim, pois meu costumava contar estórias sobre lugares como aqueles. Estórias não muito agradáveis.
O velho Mathias morava com sua esposa Henrieta, o filho Terrence, a cunhada Denise e seus três netos. A casa parecia ser modesta por fora, mas ao entrarmos vimos o contrário. Havia muito espaço. Os móveis eram modestos, quase todos feitos de madeira. Senti-me bem ali, a casa possuía um clima diferente da do primo Zach. Minha irmã finalmente encontrara companheiros para aprontar sua bagunça. Os três filhos do primo Terrence tinham 6, 7 e 8 anos.
— Sabia que podemos construir uma escadinha com vocês? — brincou o tio Mathias, fazendo referência ás nossas idades. Falamos cada coisa idiota na presença de crianças. Por quê será?

As horas foram se passando e nada do velho Mathias contar suas famosas estórias. Para piorar as coisas, minha irmã e os garotos não me davam sossego. Concordo que eu era só um pouquinho mais velho do que eles, mas eu era diferente. Sempre fui.
Após o café aconteceu o que eu mais aguardara o tia todo.
— Tio, não vou embora sem ouvir uma de suas estórias. — disse meu pai lavando sua xícara.
O velho Mathias lhe sorriu.
— Estou enferrujado, meu sobrinho.
— Duvido. — respondeu papai, e olhou para minha mãe. — Liz, você precisava ouvi-lo contar suas estórias. Eu, meus primos, meus outros tios, tias, todos sentavam ao seu redor para ouvi-lo. Suas estórias de fantasma não me deixavam dormir por semanas.
Abri um largo sorriso neste momento.
— Eram tão assustadoras assim? — perguntou minha mãe.
— Ele está exagerando um pouco. — disse tio Mathias.
— Zach e eu aproveitávamos a época para assustar nossas tias. — disse meu pai. — Você nem imagina o que aprontávamos.
— Coitadas.
— Não importa o que diga, meu tio. Não saio daqui sem ouvir uma de suas estórias.
— Os anos se passaram e você continua o mesmo.
— Espero que eu possa dizer o mesmo do senhor.
— Agora eu fiquei curiosa. — disse minha mãe. — Gostaria muito de ouvir uma destas estórias.
O velho Mathias se aproximou dela.
— Tudo bem, minha querida. Se é você que pede contarei.
Mamãe abriu-lhe um sorriso. O velho Mathias sentou-se ao seu lado e jogou seu cigarro de palha para longe.
— Irei lhe contar a estória do Padre Elijah. Ou será que já conhece? — e olhou rapidamente para meu pai.
— Nunca ouvi falar. — respondeu minha mãe.
— Antes de começar a estória eu já lhe adianto uma coisa. Há um fato verídico e outro falso.
— Não vai me contar agora, vai?
— Claro que não! Faz parte do suspense.
— Tenho a impressão de que vou acabar me arrependendo. — disse meu pai. — Lizzy se assusta muito fácil, tio. Conte uma mais fraquinha.
— Não lhe dê atenção. — disse minha mãe. — Não sei se é fraca ou não, mas estou curiosa para ouvir esta do Padre.
— Você é que sabe, Liz. — disse meu pai.
O velho Mathias olhou pra mim. Pensei que seria o fim. Será que me expulsariam dali? Papai me salvou:
— O garoto não se impressiona tão fácil, tio. — e olhou pra mim. — Já está acostumado com as estórias do seu pai. Não é, filho?
Apenas balancei a cabeça em sinal de positivo.
O velho Mathias ficou pensativo por alguns instantes, voltou o olhar para minha mãe e começou a estória. Eu nunca ficara tão atento antes.

Nossa estória começa no ano de 1840 na pequena cidade de Sparrilla, no México. Ali a paz era absoluta. Dia atrás outro e a rotina era a mesma. De manhã os homens deixavam suas casas rumo ao campo para trabalhar na colheita. As esposas cuidavam dos serviços de casa. As crianças que não acompanhavam seus pais no campo iam para a escolinha, uma sala de aula improvisada pelos moradores. Nada de diferente acontecia por ali. Mas tudo começaria a mudar naquela fria manhã de inverno.
Thimoti, o leiteiro, fazia sua entrega rotineira. Faltavam apenas oito casas para terminar o serviço. Entre elas estava a casa do Padre Jonas. Thimoti desceu da carroça, encheu a garrafa com 1 litro de leite e bateu três vezes na porta. Thimoti fazia questão de receber a benção do Padre Jonas todos os dias. Era algo sagrado para ele. Dava má sorte não faze-lo, dizia.
Alguns minutos se passaram e nada do Padre Jonas. Thimoti estranhou a demora, pois ele nunca o deixara esperando. Bateu novamente na porta. Mas nada adiantou, nem sinal do Padre. Thimoti resolveu entrar. A porta estava aberta, como era de costume entre os moradores. O silêncio era absoluto. Thimoti não sabia se era certo o que estava fazendo. Talvez o Padre perdera a hora, nada de mais. Acontece com todo mundo. Mesmo assim, Thimoti continuou. No final da sala havia duas entradas, á esquerda fica a cozinha e á direita o corredor. O quarto do Padre ficava no final do corredor. Thimoti já passara por ali várias vezes quando o Padre adoecera. Visitava-o todas as manhãs, e recebia sua benção, é claro.
Ao entrar no corredor algo pulou sobre ele, derrubando-o. Era Dodo, o cão vira-latas do Padre Jonas. Forte, patas grandes e muito carinhoso. Thimoti se esquecera de que nas noites frias o Padre o deixava dormir dentro de casa.
— Quase me mata de susto.
Dodo lambe seu rosto.
— Você só tem tamanho, não é? Bom garoto.
Thimoti se levanta. O cão olha fixamente para a cozinha e começa a choramingar.
— O que foi, Dodo? Está com fome?
Thimoti olha para trás e vê o Padre Jonas debruçado sobre a mesa, sentado numa cadeira e com o rosto dentro de um prato de sopa.
— Oh, meu Deus! Padre?
Thimoti se aproximou do Padre e tocou-lhe no ombro esquerdo, seu corpo gelado e enrijecido foi ao chão. O Padre estava morto.
A morte do Padre Jonas chocou a cidade. Todos o consideravam parte da família. Sparrilla estava de luto.
Os dias foram se passando e a paróquia permanecia desocupada. Era difícil acreditar que o velho Padre Jonas não estava mais ali. Doía o coração imaginar um substituto. Depois de tantos anos.

Era de madrugada, o céu escuro da noite prometia uma tempestade como nunca se vira antes. Os cães de caça do velho Amadeu não paravam de latir. Um vento fortíssimo zunia entre as árvores e as janelas da sala batiam ao mesmo ritmo.
— Levanta, Amadeu, — disse a velha Glenda, sua esposa. — dê um jeito naquelas janelas antes que eu fique louca!
— Trate de dormir, mulher.
— Como posso dormir com uma barulheira destas?
— Que culpa tenho eu? Não posso parar uma tempestade por você, querida!
— Ah, mas pelo menos a janela você pode. Vamos, levante-se!
O velho Amadeu voltou a dormir.
— Quando mais precisamos de um homem ele não comparece. Raios!
Glenda levantou-se, ascendeu uma vela e foi até a sala. Agora as janelas estava batendo alternadamente, o que irritava ainda mais.
— Velho imprestável de uma figa. Deixa ele, amanhã......... Oh, meu Deus!
Glenda enxerga um vulto atrás da janela. O vento apaga a vela. A escuridão fica total.
— Jesus Cristo! — Glenda fica apavorada. — Amadeu! Amadeu! Levanta já daí!
Raios cortavam o céu enxergava-se um vulto diante da janela, fora da casa. Aquela imagem deixara Glenda congelada de pavor. De repente uma mão fria toca seu rosto. Glenda solta um grito como nunca fizera antes.
— Calma, sou eu. — diz Amadeu.
Glenda lhe dá um tremendo empurrão.
— Desgraçado, por que me fez vir até aqui sozinha?
— Você veio porque quis, mulher.
Glenda olha novamente para a janela. Não havia nada do lado de fora.
— Tinha alguém me olhando pela janela!
— Não tem ninguém te olhando, mulher. Volta pra cama. Vamos.
— Eu juro! Tinha alguém ali fora me olhando. Não volto pra cama sem que você vá lá fora dar uma olhada.
Neste momento a tempestade começa a cair.
— Você enlouqueceu? Olha a chuva que está lá fora!
Algo cruza a janela. Desta vez Amadeu também vê.
— Mas o que foi aquilo? — diz ele.
Glenda repete 3 vezes o sinal da cruz.
— Eu disse que tem alguém lá fora, não disse?
— Mas quem seria numa hora destas?
— Ladrão, ora essas.
— Desde quando Sparrilla tem ladrões?
— Sei lá, você é o homem da casa, vá lá conferir.
Amadeu segurou firme o lampião e dirigiu-se até a porta. Glenda estava apavorada.
— Cuidado, meu velho.
Amadeu abriu a porta e deu de cara com o vulto misterioso. Seu espanto foi tão grande que o fez pular para trás. O vulto se aproximou da porta.
— Oh, meu Deus! Glenda, é o Padre Jonas!
— Jesus Cristo!
O vulto adentra a casa. Usava uma batina.
— Peço-lhes perdão pelo susto.
— Quem é você? — grita Glenda.
Homem alto, pele muito branca e algo que chamava a atenção, sua cabeça. Era totalmente desproporcional ao corpo grande e comprido. Não havia um só fio de cabelo, nem mesmo sobrancelha.
— Meu nome é Elijah. Padre Elijah.
— Padre? Mas que diabos você veio fazer aqui a esta hora?
— Peço-lhes desculpas novamente. Eu fui enviado para cuidar da paróquia do Padre Jonas. Que Deus o tenha.
— Substituir o Jonas? Não estou sabendo de nada.
— Fui enviado pela Congregação, meu senhor. O único jeito de chegar aqui foi pegando algumas caronas pelo caminho. Só consegui chegar agora.
— Deixe o Padre entrar e feche esta porta, Amadeu. — disse Glenda. — Mas que falta de educação!
Amadeu a obedeceu, mas não desviou o olhar do Padre Elijah.
— Eu não devia ter aparecido deste jeito, mas a casa de vocês foi a primeira que encontrei. Estou exausto.
— Sente-se, Padre. Trarei uma xícara de café bem quente.
— Não quero amolar, minha senhora.
— Meu nome é Glenda.
— A senhora é muito gentil.
— Ah, que nada. — olhou para Amadeu. — Anda, homem, precisamos arrumar alguns cobertores para o Padre. — e voltou o olhar para o Padre. — Não temos uma cama sobrando. Não se importa em dormir no sofá?
— Exausto como estou eu dormiria até no chão.

No dia seguinte o Padre Elijah se apresentou à cidade. Sua aparição fora uma surpresa para todos, ninguém sabia da sua vinda. “Fui enviado pela Congregação”, foi o que respondia a todos. Sua aparência esquisita também chocara alguns moradores. Padre Elijah teria um grande desafio pela frente.
Os dias foram se passando e o Padre foi ganhando a simpatia de alguns e a indiferença de muitos. Suas missas ficavam constantemente vazias, era raro ver a capela lotada. Ao longo dos meses foram surgindo muitas estórias esquisitas sobre o Padre Elijah, muitas delas inventadas pelos próprios moradores que não aprovavam sua presença, mas algumas eram verídicas. O Padre possuía algumas manias estranhas, uma delas era andar pela estrada de madrugada tocando uma gaita velha, dizem que ele sempre tocava a mesma música. Há outras estórias sem importância, mas a que mais chama a atenção é a que ele nunca deixava o sino tocar 12 vezes. Não importa se era meio-dia ou meia-noite, o sino nunca chegava ás 12 badaladas, parava sempre na 11ª. Dizem que certa noite alguns garotos tentaram invadir a capela para dar a última badalada, mas viram uma figura estranha tomando conta do sino e saíram correndo como nunca fizeram antes. Tal estória se espalhou e ninguém teve a coragem de tentar novamente.
O motivo pelo qual o povo não tentou expulsa-lo eram as aulas de catecismo. As crianças o adoravam. Apesar da sua estranha figura, a qual assustava até alguns adultos, os meninos e meninas da cidade não perdiam suas aulas de sábado á tarde.

Era início da tarde. Antonio, o marceneiro, avista sua sobrinha Stella caminhando sozinha pela estrada.
— Faltou ao catecismo hoje? — gritou ele.
— Hoje saímos mais cedo.
— Que merda! Justo hoje?
Antonio largou o que estava fazendo, subiu em sua carroça e partiu rumo á capela. A esposa de Antonio viajara e este ficara de tomar conta das filhas, as trigêmeas Marcely, Angelina e Julie, de 8 anos.
Não havia mais ninguém próximo á capela. Todas as crianças já haviam partido. Antonio havia dito para as 3 meninas não saírem dali até ele chegar, mas ele não pensara na hipótese de saírem mais cedo. Antes de sair de porta em porta procurando pelas filhas, Antonio resolveu dar uma olhada dentro da capela.
Antonio entrou sorrateiramente. A capela estava vazia. Mas Antonio ouve alguns ruídos vindo detrás do altar e resolve averiguar. Ele foi se aproximando e os sons ficavam mais intensos. Os sons estavam mesmo partindo de trás do altar. Antonio se aproximou lentamente da porta. A cena encontrada por Antonio o atormentaria pelo resto de suas vidas. O Padre Elijah estava mantendo relações sexuais com uma das meninas e as outras duas estavam caídas ao chão, mortas. Havia manchas de sangue pelo chão e pelas paredes. Aquilo foi um choque tão grande que Antonio sentiu-se zonzo por alguns minutos. Padre Elijah não notara sua presença. Ao recobrar os sentidos Antonio pegou a cruz de madeira que enfeitava o altar e partiu pra cima do Padre, furiosamente. Entrou rapidamente e o golpeou violentamente na nunca, Padre Elijah foi ao chão imediatamente. A menina ainda estava viva, era Angelina. Esta tinha cabelos curtos, o que lhe diferenciava das outras. Sua genitália sangrava.
— Jesus Cristo! Mas o que foi que ele fez a você, meu amor?
A menina ficou calada, apenas piscou os olhinhos vagarosamente. Antonio pulou sobre o Padre e o desferiu-lhe golpes e mais golpes sobre sua cabeça. Exausto, Antonio parou e correu até as duas meninas caídas ao chão. Não havia sinal de vida. Antonio começou a chorar e gritar de desespero. Padre Elijah ergueu a cabeça lentamente. Antonio o olhava com desprezo, seus dentes serravam de tanto ódio.
— Seu filho da puta desgraçado! Assassino! Assassino!
O Padre ergueu a cabeça e olhou em sua direção. Havia um sorriso mordaz em seus lábios cheios de sangue. O ódio de Antonio aumentou ainda mais, e partiu novamente para cima do Padre ferozmente. Antonio estava prestes a matar o Padre, quando alguém entra. Era Thimoti, o leiteiro.
— Oh, meu Deus do céu! O que está havendo aqui?
Antonio não lhe dá atenção e continua o ataque ao Padre. Thimoti não suporta aquela tórrida cena e vomita.
— Você vai para o inferno, seu desgraçado! — repetia Antonio.
Thimoti puxa a cruz das mãos de Antonio.
— O que você está fazendo, Antonio?
— Justiça. Apenas Justiça.

Padre Elijah morrera ali, mas o sorriso dos seus lábios ninguém conseguira tirar. Thimoti e Antonio jogaram seu corpo na mata, a uns 4 kms da capela. Angelina sobrevivera.
Os fatos ali ocorridos rodaram a cidade toda em questão de horas, chocando e horrorizando por onde passava. O enterro das duas meninas aconteceu 2 dias depois, reunindo toda a população. Muitos queriam queimar a capela onde tudo aconteceu, afinal aquele lugar ainda continuava a ser uma casa de Deus? Para a maioria, não. Mas ninguém tinha coragem de fazer o serviço.
Algumas semanas depois Angelina desaparecera, bem como o corpo do Padre. Antonio enlouquecera, vindo a falecer 5 meses depois. Sparrilla nunca mais seria a mesma. Os anos se passavam e o desaparecimento de crianças ficava cada vez mais comum. Ninguém tinha dúvida de quem as levava. O fantasma do Padre fora visto várias vezes perambulando pela estrada tocando sua gaita e de mãos dadas com Angelina. Uma vez ou outra o sino tocava as 11 badaladas sozinho. Diziam que se você encontrasse 3 cruzes pelo caminho era sinal de que o fantasma do Padre Elijah iria aparecer. Nunca falhava.

— Bom, é isso. — disse o velho Mathias.
Eu ficara bastante impressionado. Minha mãe mais ainda.
— Cruzes. — disse ela. — Que coisa horrível.
— Se quiser eu paro por aqui.
— O quê? Mas ainda não acabou?
— Não se lembra do que eu lhe disse antes de começar a estória?
— Ah, está certo. Lembrei. O senhor disse que havia um fato verídico e outro falso nesta estória.
— Gostaria de saber qual é qual?
— Depois de tudo que ouvi acho que nada mais me assustaria. Pode dizer.
— Bom, a verdade é que ela realmente aconteceu.
— Ah, acha que vou acreditar?
— Não espero que acredite. É fato.
— Falta dizer o que é falso.
— Claro, agora vem a parte mais importante. — eu nunca me esquecerei do olhar do velho ao dizer esta frase. Senti meus ossos gelarem. — Eu só menti uma coisa. A cidade onde tudo aconteceu não se chama Sparrilla, mas Rio das Pratas.
Senti que mamãe também ficara assustada
— Aqui?
— Sim. Aqui.
— Lembra da capela abandonada que você comentou? — disse meu pai.
— Ah, não pode ser...
— Pode sim, é a velha capela do Padre Elijah. — disse o velho.
— Você já sabia desta estória? — gritou minha mãe para meu pai.
— Claro, desde minha infância. Perdi a conta de quantos pesadelos eu tive com o tal do Padre.
Mamãe olhara para fora da cozinha, a noite já se fazia presente.
— Agora fala sério. A parte do fantasma do Padre perambulando pela estrada é estória de pescador, certo?
— Eu não diria isso para o meu amigo Frank.
— O que tem ele?
— Frank já esteve frente a frente com o Padre. Pobre Frank, perdera seu filho de 7 anos.
— Tudo isso é estória, Edward. Se tudo isso fosse verdade você acha que seu primo Terrence e a Denise viveriam aqui com seus filhos?
— Meu pai já dizia, — disse o velho Mathias. — ás vezes tudo é mais fácil nesta vida quando a gente acredita.
— Espere um momento, — disse minha mãe. — o senhor está dizendo que seus netos estão seguros porque vocês acreditam no tal fantasma?
O velho não lhe respondeu, virou-se para a janela e olhou para a escuridão lá fora.

A lua e as estrelas já se faziam presentes. Papai queria voltar para Mason Creek de qualquer jeito. Mamãe, apesar de tudo que dissera ao velho Mathias, ficara assustada com a estória. Minha irmã abriu o maior berreiro ao saber que iríamos embora, já que se entrosara muito bem com meus primos. Eu sentia calafrios só de pensar que passaríamos tão perto da famosa capela.
O relógio de papai marcava 20 horas e 37 minutos quando deixamos a casa do velho Mathias. Minha irmã dormira com a cabeça no meu colo. Coitadinha, estava exausta.
— Seu tio é uma tremenda figura. — disse mamãe.
— Sempre foi.
— Você não acredita nesta estória, acredita?
— Eu Sabia. Você ficou impressionada.
— Eu? Claro que não.
— O velho Mathias continua o mesmo. Maldito velho, — papai sorriu. — sempre foi um mestre.
— Não fiquei impressionada. Apenas curiosa.
— Tudo bem, você me perguntou se eu acredito. Bom, na minha infância eu tive um amigo que desapareceu misteriosamente. Na época disseram que fora o tal fantasma do Padre que o levara.
— Mas você acredita?
— Você me conhece muito bem. A resposta é óbvia. Eu não vi o fantasma, portanto não acredito.
Mamãe permaneceu calada por alguns minutos. Enquanto isso minha irmã acordou. Flavia adorava ficar de pé sobre o banco de trás, olhando pela janela. Num certo trecho da estrada eu percebi que ela estava abanando a mão, sorrindo e olhando fixamente para escuridão lá fora.
— O que está fazendo? — perguntei.
Flavia ainda não falava perfeitamente, mas deu pra entender que ela dissera algo como:
— Dando tchau para a menininha.
Olhei imediatamente para a estrada e não vi absolutamente nada, a escuridão era quase total.
— O que foi, meu anjo? — perguntou minha mãe a Flavia.
Flavia lhe deu a mesma resposta. Mamãe olhou para trás e pediu para ela se sentar. Ao voltar o olhar para a frente ela enxergou uma cruz na beira da estrada.
— Você viu aquilo?
— O quê, Liz?
— Uma cruz!
— E daí?
— Eu não me lembro de ter visto cruz alguma hoje de manhã.
— Porque você não ouvira a estória hoje de manhã. Liz, controle-se, você vai acabar assustando as crianças.
De repente mamãe grita. Acabávamos de passar por outra cruz. Passara bem do meu lado. Naquele momento eu comecei a travar uma luta com minha memória. Aquelas cruzes já estavam ali de manhã. O pior era que eu não me lembrava. Mamãe começara a ficar histérica.
— Já foram duas!
— Liz, pelo amor de Deus, acalme-se!
— Não tinha cruz nenhuma hoje de manhã. Admita. Está acontecendo alguma coisa muito estranha aqui.
— Estas cruzes já estavam aí, sim.
— Edward, pare este carro, olhe nos meus olhos e diga isso novamente. Você sabe muito bem que estas malditas cruzes não estavam aqui!
Papai começou a rir. Mamãe ficou furiosa.
— Edward, ou isso aqui é uma brincadeira de muito mau gosto ou....
Uma terceira cruz surge no meio da estrada. Papai passa o Buick por cima, e pára.
— Não fizemos brincadeira nenhuma, Liz.
Mamãe começou a chorar.
— Então só pode ser uma coisa.
— Calma. Você vai acabar assustando as crianças.
Eu já estava assustado há muito tempo.
— Você está chorando, mamãe? — perguntou Flavia.
— Não, meu anjinho. Não estou.
Meu pai descera do carro.
— Aonde você vai? — perguntou minha mãe.
— Ver que brincadeira é esta.
Mamãe vira para trás e chama minha irmã.
— Vem aqui com a mamãe. — e olhou para mim. — Papai já volta, meu bem.
Mas não voltou. Sumira na escuridão. Mamãe entrara em pânico. A cada 20 segundos ela esticava a cabeça para fora do carro e gritava o nome do meu pai. Eu queria tanto ter ido atrás dele, mas o pavor me congelara até os ossos.
De repente um vulto aparece ao lado do carro, bem ao lado de minha mãe e minha irmã. Naquele momento eu já sabia que não era meu pai. Eu só torci para estar errado quanto ao visitante misterioso. Mas eu não estava. O corpo grande, a cabeça pequena e o sorriso sádico no rosto. Era o fantasma do Padre Elijah, que agora olhava para nós do lado de fora do carro. Mamãe começou a gritar como eu nunca a vira antes. Lembro-me de sentir meu coração quase pular para fora de meu corpo. Minha irmã era a única que não dera a mínima.
Mamãe, num ato de desespero, sentou-se de frente para o volante e tentou dar a partida no carro. Mas havia um problema, ela não sabia dirigir. Foram várias tentativas, até que na sétima o carro pegou e batemos violentamente numa árvore na beira da estrada.
Quando recobrei meus sentidos vi mamãe deitada sobre o volante, desacordada. Flavia não estava mais conosco. De repente o sino da capela começou a tocar. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze badaladas.

Meu pai e minha irmã nunca foram encontrados. Minha mãe se suicidou 3 meses depois. Eu me tornei um escritor de sucesso, apesar de que trocaria tudo que tenho para encontra-los novamente.

--- FIM ---

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