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Contos-->Saudades -- 23/12/2001 - 13:44 (Patricia Rosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando cheguei ainda estava escuro, não passava das três horas da madrugada. O silêncio tomava conta de tudo, como um véu negro encobrindo o que eu via. Mas não sentia medo, a saudade tinha tomado conta de mim completamente, o desejo de vê-la, de senti-la novamente, me dava coragem para enfrentar qualquer coisa, mesmo todo o desconhecido do breu da noite.
Passaram-se apenas oito anos, mas tudo o que eu vivi, desde que fui embora tentando outra vida, me fez muito mais madura, talvez mesmo mais velha. Aos poucos meus olhos foram perdendo o brilho, meus cabelos a cor, minha boca o sorriso, meu espírito as fantasias. A saudade de tudo que havia deixado para trás foi tomando corpo dentro de mim, criei uma outra alma, pesada, triste, desconexa. Não havia como recusar os apelos que eu lançava a cada instante a mim mesma, precisava voltar.
Caminhei pelas ruas, olhava tudo ao meu redor, procurava por mim em cada esquina. A mochila nas costas estava pesando, mas eu não conseguia parar de caminhar, meu coração me levava na direção da praia que me unia a ela de forma inexorável, mesmo que eu tantas vezes a tivesse odiado, a tivesse negado. Sua beleza estava presa a mim do mesmo modo que esse câncer que agora me consome as entranhas, me fazendo voltar para ela, para pedir perdão por ter ido embora sem ao menos ter lhe rendido a homenagem que lhe era devida.
De repente tropecei num corpo, meus olhos estavam voltados para os tantos prédios que eu não conhecia, não vi aquele homem encolhido na calçada. Ele não me olhou, apenas vociferou algumas palavras ininteligíveis por conta de sua embriaguez ainda latente, pedi desculpas, continuei caminhando. Olhava tudo ao redor, perplexa, como esses oito anos nos fez diferentes! Eu e ela já não somos as mesmas, jamais voltaremos a ser. Eu velha e carcomida por um câncer herdado da tristeza, ela cheia de prédios altos, adquirira uma imponência que não lhe era peculiar, faltava a beleza que minha mente havia gravado em brasas em mim.
Cheguei a uma rua iluminada, por toda a parte havia letreiros fazendo propaganda de alguma coisa, meus olhos estavam hipnotizados por tanta luz, por tanta vida artificial que havia substituído as imagens que trazia dentro de mim. Eu soubera que a haviam prostituído, lia nos jornais o galope crescente de seu “desenvolvimento”, mas eu jamais iria imaginar que ela havia se tornando completamente estranha para mim. Não havia nada que lembrasse minha infância, minha adolescência, a parte da minha juventude vivida ali, dentro dela, no seu seio. Procurei a árvore onde, na infância, colhia ameixas amarelas, entre uma e outra brincadeira, mas eu me sentia perdida no meio de tanto concreto, minha bússola interna estava completamente louca, não achava a mim ou a ela em qualquer lugar. Parei por alguns segundos, fechei os olhos e supliquei ao meu coração que me orientasse, um vento suave acariciou meu rosto, girei meu corpo, dei alguns passos, o aroma da infância invadiu meu ser, havia encontrado, abri os olhos e dei com um monumento ao modernismo, um enorme shopping center se apresentava grandioso diante de mim. Senti as lágrimas correrem por meu rosto.
Sai dali com a revolta corroendo meu coração, caminhei toda a madrugada, mas agora me guiava pelas placas feitas para orientar os turistas, já não podia confiar nos caminhos que meu sentimento me indicava. Quando o sol começou a despontar no horizonte, o asfalto sob meus pés estava dando lugar a uma areia fina, meu corpo cansado se entregou ao primeiro sinal de vida verdadeira que eu havia encontrado desde que chegara ao lugar onde nasci e de onde sai para procurar um futuro incerto. Cai de bruços na areia da praia, fiquei imóvel por alguns minutos, degustando o sabor da saudade findada pelo encontro com meu passado.
Ouvi o barulho do mar entrando suavemente pelos meus ouvidos, um sorriso tomou conta da minha cara marcada pelas rugas do esquecimento humano. Levantei-me vagarosamente, deixei a mochila jogada pelo caminho, fui tirando os sapatos, a blusa, a calça jeans suja pela longa empreitada. Joguei-me naquele mar gélido de fim de setembro, senti os pelos do meu corpo se eriçarem, cada poro meu se abrir para receber a bênção daquela água bendita, de que eu sentia tanta falta. Nadei como uma louca, esquecendo o cansaço da viagem, da madrugada insone. Joguei água para o alto, agradecendo a graça de estar de volta, de poder sentir novamente o verde ao meu redor, tão verde quanto só o mar do meu lar poderia ser. Quando meu corpo já não agüentava mais tanta nostalgia, sai da água e me sentei na beira da praia.
Deitei-me de braços abertos, sorriso ainda preso à cara, olhar agora grudado no céu que ainda era tão azul quanto eu lembrava que fosse. Agora me sentia verdadeiramente em casa, naquela praia, naquele lugar onde meu pai extraía o alimento para nossa família, ali era meu lugar, em nenhum outro eu poderia encontrar paz, mesmo que antes tudo me parecesse tão o mesmo, sempre. Agora, era tudo o que eu jamais poderia ter deixado. Agora nós duas estávamos juntas novamente, era ali que o nosso encontro poderia se dar, onde ainda éramos as mesmas.
O sol aos poucos foi me dando alívio com seu calor, passei a língua nos lábios e senti o doce sabor do sal da minha terra. Ainda imóvel, olhos fixos no painel azul acima de mim, vi uma borboleta se aproximando, era como se eu tivesse entrado numa máquina do tempo e voltado ao meu passado, ou, tivesse acordado de um pesadelo e todo aquele concreto que vira na noite anterior não fosse real. O lindo bichinho pousou na ponta do meu nariz, como se integrássemos aquele todo a nossa volta, não movi nenhum músculo, contive a respiração ao mínimo suportável, era como sentir a vida novamente invadir meu corpo, como se tudo que os médicos me disseram não passasse de uma brincadeira de mau gosto. Suas vozes me dizendo: “Infelizmente não podemos lhe assegurar mais de seis meses...”, foram aos poucos se apagando de minha memória, deixando de ter aquele peso insuportável sobre minhas têmporas.
A borboleta se foi, eu levantei preguiçosa, juntei minhas coisas, vesti minha roupa, passei os dedos por entre os cabelos, peguei a mochila do chão. Fui procurar a casa de meus pais, para me sentir plena, novamente na minha cidade, e passar aqui o resto da minha vida.
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