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Contos-->Engrenagem -- 01/01/2002 - 18:56 (Fabio Cavalcante de Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Engrenagem


Em reflexo destilado o azul que o chão luzia. O céu inverso de seus anseios. Ali, estampado na poça. Em seus dez anos inconclusos nunca conhecera tamanha prostração. Ao redor um vazio crasso, a família toda absorvida aos cuidados necessários. Aquela era a visão mais nítida que tivera do céu. Um céu que se ia borrando nas nuvens que se insinuavam, brancas, marmóreas. Os olhos secos, pequeninos, negros e flexíveis como um tecido, onde a vida bordava os primeiros pontos, também negros. Mas o dia... o dia era tão claro. Não se escutava nele, apesar do ribombar lá em cima das nuvens, a marcha surda das tragédias. Não. Mesmo vendo, no reflexo, que o azul se recolhia e as nuvens, todas prenhes, abarrotadas, se espremiam abraçando as últimas manchas de céu, ainda havia luz. Esperaria, a chuva. Apertou firme o crucifixo no pescoço. Ouviu ao longe o ruidero da fábrica. Deu-se conta que seu reflexo, também encravado naquela poça d’água, se esfumaçara também. Era ele também um borrão.
O trem, velho velho, passou. Desde quando ia e vinha, possante e cheio de uma graça atemporal, exibindo a negridão de seu corpo maciço? Muito. Dias de não contar. E porque contá-los, perguntou-se. Se são como os homens da fábrica, os olhos vidrados, a força investida num produto alheio às suas vontades. Eram assim os dias, cheios de uma inconsciência amarga. Isto o fez chorar. O azul se fora, o branco tumultuava-se em cinza, a chuva ameaçava precipitação. Era a primeira resolução de vida tão jovem: ficar ali, até o quanto agüentasse. A primeira rebeldia, tão confusa quanto os sentimentos que abrigava. Logo alguns homens viriam para a paga de sua amizade, trazendo as condolências. Pensou que não mais correria, do fundo da casa, ao tilintar do apito da fábrica. Que não mais espreitaria as máquinas, grandes como casas, investirem com poder descomunal contra as placas de aço e alumínio.
Os primeiros espessos pingos precipitaram-se. Pôs-se com mais firmeza, como se a chuva fosse uma inimiga, em postos para demovê-lo de seu intento. Os reflexos – seus, de cinzentos céus – se desfizeram em círculos concêntricos que se atropelavam uns aos outros, a chuva se adensava. O cabelo liso começou a descer-lhe, encharcado, sobre a fronte. As pálpebras se inundavam e ele tentava, com as mãos, impor o rosto, forcejando para o alto. Lembrou-se da mãe, soturna, muda. Os olhos inchados, os lábio constantemente trêmulos. Teve pena. Nunca antes sentira isso, também ela sempre fora força sólida, como as máquinas e suas engrenagens, a certeza de uma prontidão. Ela tudo remediava, com uma idade tão nova, cheia de vidas. Agora não. Muda como o pixe, apegada às paredes, aos cantos da casa. Teve medo e raiva. Ela não podia ficar assim, um vazio crescia dentro dele. Queria correr para ela, senti-la abraçando-o mais uma vez, queria vê-la no azul novamente, cobalto, verde, todos os vestidos sortidos e alegres, todas as altas palavras e amplas exclamações de seu temperamento. Deus? Que palavra estranha era aquela. Deus, até então, tinha significado imutabilidade, segurança. Se aquilo era Deus, todas aquelas mudanças, não o queria. Se pudesse dizer não a ele, fazer com que tudo voltasse, em repetidas alegrias, fabricando-se o mesmo, igual.
A chuva rareava. O apito soou. Ele se desprendeu, o peito parecendo explodir, correu. Os cabelos molhados balançavam finos no vento. Lançava-se na cegueira de um projétil, buscando em violência ligeira atingir um destino qualquer. Pareceu ouvir a mãe. Chegou mesmo a vê-la, pálida, coberta com o longo vestido negro do luto. Parou. Olhou de volta, abrindo os olhos. Não era o pai. Tinha deixado uma sombra para trás, prostrada sobre uma poça de lama. Ele mesmo acenava, de uma idade morta, sob a chuva.
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