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Frases-->R E F R A Ç Õ E S -- 09/09/2005 - 15:12 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
R E F R A Ç Õ E S


Como não posso ver o mundo com os meus próprios olhos, optei por uma lente que não me exponha à realidade nua e crua. Uma lente com a qual possa transacionar amistosamente: “lentes transitions”, marca registrada. Nada que altere a nitidez do que vejo, apenas module a radicalidade de luz das minhas interações visuais. Lentes que me revelem um pouco mais dos dias nublados e dos ambientes escuros; lentes que permitam filtrar a luz excessiva, que me protejam do brilho fugaz ou enganador.


Um dia foi assim. O homem respirava o seu ambiente. Os espaços eram grandes, enormes. Então, começaram a redividi-los com biombos. Assim, criava-se a impressão de que mais gente cabia no mesmo espaço. Nesse compasso, até o cagar tornou-se globalizado, algo como um ritual coletivizado. Nos banheiros públicos, as divisórias ficam na metade do pé direito e não encostam no chão. Os odores de todos os mijos e merdas interagem democraticamente. Do meu cubículo, vejo o sapato, a meia, a perna, as cuecas arriadas de meus vizinhos. Comparto, ainda, de todos os seus ruídos gasosos, de suas agonias musculares que precedem o ato efetivo da cagação. Testemunho até o impacto dos cagalhões sobre a lâmina de água tranqüila.
Lesaram o meu direito sagrado de cagar com privacidade, no sossego e na paz de um momento só meu.


Ao andar pelas calçadas das cidades brasileiras, chego a pensar que elas deviam ser renomeadas: calçadas por cagadas. São tantos os cocôs de cães, gatos, buracos, irregularidades, entulhos de obras ativas ou passadas, que os pedestres mais parecem praticar amarelinha. Metros em linha reta viram quilômetros no ziguezague dos enfrentamentos. Quando chove e a água empoça, fica uma autêntica diarréia.
Clamo pelo direito de ir e vir pelo caminho que conhecia e dominava.


As ruas de asfalto da minha cidade ficam a cada dia mais parecidas às de paralelepípedos. O asfalto racha, quebra, descasca, pequenas crateras chegam a grandes. Passa o tempo, afundam as intempéries, multiplicam-se as trepidações.
As palavras viram pedras que não revelam mais a maciez de suas lapidações.


“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá.” Minha canção de exílio é outra. A minha casa tem vozes, onde canta a torneira do banheiro. Chamei o bombeiro hidráulico – não um, vários –, trocaram o vedante, o reparo (bloco interno) e a solução não apareceu. Às vezes, ela dispara uma tremedeira que sacode as estruturas do prédio. O convívio prolongado com a situação ensinou-me que dando uma mexidinha consigo deter suas convulsões. Mas esse ponto de ajuste fino não é tão previsível e confiável.
Difícil entender por que fabricam artefatos com funções trocadas e estranhas. Prefiro mantê-la calada, fechada, fora de função a arriscar que os vizinhos me expulsem do prédio.


Você conhece as pessoas “nojentas” para comer. À simples menção de um ingrediente que nunca experimentaram, recusam-no in limine. Mas se esse ingrediente for adicionado de forma escamoteada a um prato que apreciam, degustam-no naturalmente com elogios.
Com bebida alcoólica, acontece algo semelhante. Você oferece uma cerveja sem álcool, a pessoa bebe e não acusa nada diferente. No entanto, se você anunciar que vai servir uma cerveja 0,0% de álcool, ouvirá o comentário de que não presta, não tem sabor nem graça.
Alguns – ou muitos –, bebem para produzir os efeitos colaterais assegurados pelo álcool, o que também não parece ter nenhuma graça. Desgraça! Falta-lhes o repertório alfabético do S de sabor, do B de buquê e do R de ritual.


Tenho um secador de cabelos comprado há mais de 40 anos, o qual funciona normalmente. Nunca foi a conserto. Nunca me deixou na mão. Um aliado que é amigo do peito e da cabeça. Os objetos duravam, cruzavam gerações. Não se falava em tecnologia, muito menos de sua ponta. Não se era compelido a interagir com as rupturas diárias de paradigmas frágeis para pertencer à pós-modernidade.


Adoro frutas, mas desisti de comprar e provar melão. Um ou dois me enfeitiçaram; os demais me trapacearam. Tudo parece perfeito ao crivo de um exame minudente, toque, palpação, cor, perfume. Aberto e limpo, você continua achando que tudo se encaminha para o ápice de uma celebração gustativa proporcionada pelo último de 3 anos atrás.
Desisto, não dá para enxergar os humores de açúcar do impostor, ou neles apostar. Mico certo!


Se tivesse o poder de legislar, proibiria, peremptoriamente, três práticas inadmissíveis:

1-Vender em mercados ou apresentar em restaurantes carne de frango com pele. Sob todos os olhares e expectativas de receptividade oral, essa presença é rançosa, repugnante. Francamente, não precisamos de toda essa graxama aviária para nos constituirmos ou nos lubrificarmos como sujeitos;
2-Vender roupa não previamente encolhida. Não merecemos comprar número maior para aguardar que a água adivinhe o nosso tamanho. Não merecemos ser impedidos de entrar nas roupas após a passagem da água. Roupa encolhida não cede. Deveríamos banir agentes aleatórios na construção de nossa dimensão;
3-Vender lençol de baixo com elástico. Que falta me fazem os sem elástico! Adaptavam-se a qualquer colchão em largura, comprimento e espessura. Com elástico, é mais ou menos assim: ou a peça fica pequena e, ao tentar esticá-la, escutamos os estalidos do tecido rompendo; ou ela fica grande, e, neste caso, o que era para ficar justo, alisadinho, sobra. Sobrelevo os queixumes da pobre passadeira. Exasperante! Discuta, xingue, reivindique. De pouco valerá. A indústria, agora, produz somente desse jeito, ou melhor, as indústrias, todas. Você perdeu o direito de escolher. Você ganhou o dever de se adaptar. É possível sair da ordem-unida? Sim, mas reserve tempo e paciência para uma peregrinação. Encontre o tecido com o número de fios desejados, a estampa ou o pano liso, faça orçamentos e descubra uma costureira de lençóis para, enfim, livrar-se dos malditos elásticos. Ufa!


Nada é mais parecido a um hipermercado ou a um shopping center do que o hotel tipo RESORT. O microcosmo está ali representado. A multiplicidade de atrações, encantos e garantias contra o mal tempo converte o turista em prisioneiro de um protagonismo capaz de representar as dobras dos imaginário. Sair de tal cenário para conhecer os arredores é, quase sempre, perder tempo, dinheiro, trocar o certo pelo duvidoso. Aleluia! Inventaram a versão do paraíso na terra.


Filas em aterrissagens de aviões. Você deve estar suspeitando do que vou falar. A rotina de sempre. As comissárias se esganiçam advertindo os passageiros para que se mantenham sentados, com cintos afivelados até o completo estacionamento da aeronave. Adianta? Nem um pouco. Com a aeronave taxiando, combinam-se todos de levantarem-se ao mesmo tempo para amontoarem seus corpos no corredor, ou vergarem-nos abaixo dos bagageiros. Imóveis, embolados, lutam por centímetros de chão que encurtem a distância da porta de saída hermeticamente fechada. Aos mais sóbrios, resta uma visão torva.

Ah, os cânones não resistem. “Pau que nasce torto morre torto.” Isso foi assim. Desentortam-se orelhas, narizes, pênis e tudo mais que não seguir o modelo da retidão. Dentes, também. Uma luta férrea, contra o que parecia definitivamente ósseo. Xô, tortuosidades!


A fala não encontra ouvintes. Solidariedade, quê solidariedade? Indulgência, o que é isso? A ordem é neutralizar, abafar, anular. Frear o relato.
- Arrombaram meu carro, assaltaram meu filho, mataram minha mulher.
- O quê? Como? Isso não é nada. Comigo foi pior.



Espaço reservado para as inflexões dos fatos e para as refrações do tempo.


Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli
Setembro/2005

2006, janeiro, dia de apagar luzes e desmontar adereços do ano velho.

Telefones convencionais, celulares, internet, todas os artefatos eletrônicos que nos teletransportam podem ser ótimos, jamais produtivos e operacionais. Se você tiver algo sério e perturbador para resolver, continue a confiar e apostar no velho e bom encontro pessoal intransferível. O mundo on-line ampliou não só o tempo das pessoas, como também a sua indisponibilidade em ouvir os apelos mais pungentes da natureza humana. As máquinas de comunicação oferecem esconderijo perfeito para escape de compromissos e responsabilidades. Naturalmente, célere e despicientemente.

Centro da cidade, minha atenção é pinçada para homem que anuncia “escrever até quatro nomes em um grão de arroz”. Proeza e tanto. Seu trabalho é tão pouco visível, que, para ser decodificado, necessita ser disposto num tubo de vidro com solução oleosa de aumento. Procedimento que desfaz o trabalho no ato. Muitos curiosos, escassos compradores. Esse homem ganha a vida com paciência de Jó, socando palavras em espaços que não se oferecem, vendendo páginas em grãos, grão a grão.

Propaganda enganosa. Blefe. Não do Governo. Não de empresário. Dela, da natureza.
Passei pela feira e fui atraído por uma vagem inteiramente roxa. Colocada na panela, mudou de cor rapidamente, passando para o verde, como a mais verde das vagens conhecidas. Eu, que anunciara a novidade para o meu comensal, resvalei para o limbo do descrédito. Falei a verdade e menti.

Elogio da cegueira. Não questionem. Não estranhem. Entendam o mundo como ele lhes chega. Nada de pesar ou sopesar.
Há um restaurante em Berlim no qual nenhum tipo de luz é permitida. Isso mesmo, refeições em ambiente de escuridão total. Para que não pairem dúvidas, proibidos isqueiros, celulares ou relógios com mostradores luminosos.
A julgar pela proposta, os clientes sentem-se atraídos pela experiência e/ou prazer da cegueira. Como seria de supor, preços exorbitantes. Sem reserva, impossível gozar do privilégio da excentricidade. Site da casa: www.unsicht-bar-berlin.de

Como são estranhos alguns adquirentes de apartamentos! No meu edifício, por exemplo, perderam um tempaço procurando o melhor conjunto de atributos para escolher o imóvel de suas vidas. Esmeraram-se, estressaram-se com a maratona das centenas de comparações realizadas e, finalmente, fizeram a opção pelos que apresentavam a vista mais soberba. Declaram a sua paixão por des-cortinar o mais amplo horizonte. Compram o sonho da altura privilegiada e, então, cortinam todas as aberturas 24 h. Contentam-se em toldar a visão com cataratas auto-impostas, não operáveis.

Descubro facetas inusitadas das pilhas, propriedades quase mágicas. Que tal viajar por 15 dias, trancar o apartamento e esquecer o despertador com o pino levantado, por despertar antes da hora programada? É bem provável que os vizinhos, em bloco, nos surrassem ao regresso. Mas isso não acontece. As pilhas se gastam. Reclamamos que são caras e duram pouco. Pois é, mal que vem para bem. Nada como a certeza de que o escândalo se resolve sem a nossa presença e intervenção. E ainda sobra um bom tempo para abrandar a memória do estorvo.
Da próxima vez que for acertar a hora daquele reloginho de acrílico blindado, não se desespere. É impossível encontrar os botões de acerto. Poupe a ida ao relojoeiro. Retire as pilhas para paralisar os ponteiros, e aguarde para recolocá-las no instante em que a hora dele coincidir com a real. Com pilhas, move-se o mundo, o mundo que não quer parar, e até o mundo que anda fora do ritmo.

O Brasil é mesmo a expressão mais legítima da cultura da fraude. A cada momento, nas mais diversas situações, é patente a intenção do logro, se não presencial, o com data futura. Está no DNA da formação histórica, vai para o sangue e não é eliminado pelas fezes.
Ao final da corrida de táxi, o taxímetro marca R$ 16,50. Ofereço uma nota de R$ 20,00. O taxista não titubeia:
– Fica por R$ 20,00, ‘tá bom assim? E encerra o papo.
O marceneiro vem à minha residência montar um armário. Fixa dois perfis de madeira nas laterais – 3 Kg cada um – com fita adesiva dupla face.Um mês depois, tombam os dois perfis. Examino as peças e faço o diagnósico prontamente. Os perfis foram colados com três fragmentos de 1 cm da dita fita, e tinham quase dois metros de comprimento.

Feliz ano-novo, porque o velho trouxe a sensação de mais um ou, talvez, de mais outro.



Sábado de 25 h, fim do horário de verão.
Vou escrever o que escapa a um dia de 24 h, e não vai parar no seguinte. Estou recuando os ponteiros. Tenho uma hora. Acho que é suficiente.

ÁGUA PURA SÓ COM ASSINATURA!

Você assina jornais, revistas, TV a cabo e não sei mais quê. Suas despesas estão no gargalo, mas restam ainda gotinhas passíveis de serem sorvidas para algum fim inusitado.

Agora, é a vez de assinar á-g-u-a. Isso existe, está a venda: assinatura de água. Continue a pagar conta de água normal e comece a pagar pela de beber. Para mitigar a resistência à incorporação de mais esse hábito de consumo, surge uma empresa que apresenta as vantagens da adesão:
– “Você conhece a água que bebe?"

Alguém responderia convictamente de modo afirmativo? Eu, não. Fora de casa, recuso terminantemente água sem certificação ISO 100.000, venha em bandeja de prata ou em copos de cristal. Como seria indelicado e ofensivo indagar a procedência, resigno-me à desidratação. Imaginem o percurso que esse líquido realiza até ser bebido: mananciais, reservatórios, quilômetros de tubulações, obras, rompimentos de canos e reencaixes, caixas d água, torneiras - não é para apavorar?

– “Livre-se dos galões e filtros. Só servem para atazanar a sua vida. É o desconforto de encomendar, manusear, fazer plantão ou incomodar o vizinho, transportar, guardar...ufa!"

E, por fim, se você está duro na queda, os vendedores aplicam o golpe fatal:
– “ Qual foi a última vez que limpou as velas do seu filtro?" Essa é para sucumbir. Sua memória pode estar preservada, mas de que vale memória preservada se não há registro?

Muito em breve, uma nova assinatura entrará em sua casa. Suspeito que vão assegurar o direito a um pouco de ar puro, aquele de que dispúnhamos sem ônus antes de construir a civilização. Assinatura de ar puro. A propósito, você conhece o ar que respira?

Garanta-se! Assine! É sua sina.



HOMEM-ESTÁTUA

Toda vez que vou ao centro da cidade, encontro aquele homem que vende a sua imobilidade. Atividade excessiva não goza do mesmo prestígio. Pode até ser catalogada como distúrbio mental, a chamada TDAH, “transtorno de déficit de atenção/hiperatividade”.

Exposto aos rigores do clima, esse artista popular se tinge de cor única para acentuar o espetáculo da inatividade. Todos os que vi apareciam branquicentos ou prateados, o que deve esconder alguma intenção estratégica.

Sobe a um pedestal e ganha o palco das ruas. Para ele, não há risco de casa vazia. A platéia de transeuntes se renova a cada minuto. As sessões são curtas: todos estão com pressa, passando com outros roteiros. Uma paradinha, se tanto, e a retomada do rumo. A exibição é captada no instante. Não adianta ficar ali contemplando. Não vai acontecer mais nada. Aliás, se acontecesse, o trabalho seria desfeito. Claro, alguns até poderiam torcer para que o personagem fosse vitimado por um prurido incontrolável, que desaguasse num acesso de riso dos espectadores.. Desejo negado! Esse homem treina movimentos e recursos que nós não percebemos. Para habitar o reino inanimado, utiliza passagem secreta. Única apreensão: em caso de parada cardíaca, saberemos se ainda está vivendo para se beneficiar de reanimação?

Vida dura, difícil, monotonia de funâmbulo sobre as horas. Enquanto os demais se movem em altas velocidades para ganhar a vida, ele, ali, esforça-se para comover o público de seu talento para abolir os movimentos. Concorrendo com toda a legião de pedintes de rua, disputa acirradamente a generosidade do caminhante que depositou moedinhas na esquina anterior, e que agora se mostra indiferente à expressão muda do bulício das ruas, não tão pungente. Lá, a cena conduzia o olhar para baixo, e o mantinha pesado, pesaroso por algum tempo; aqui, o olhar é para cima, de reparação do trauma. O passante nem nota a caixa de arrecadar no chão da rua; é observador de um quadro que restaura a normalidade e pacifica a injustiça. Passa e não se detém, ou se detém e ao ato não passa.







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