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Artigos-->Prefácio à obra NO CENTRO DO ARCO -- 02/06/2004 - 07:46 (joão manuel vilela rasteiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Em "A Respiração das Vértebras", primeiro livro do poeta João Rasteiro, finalizava-se com um pequeno passo de um outro texto, publicado na 1º série da revista "Oficina de Poesia", a cujo Conselho de Redação o autor pertence. A "collage" foi identificada apenas por alguns, mas é o espírito que subjaz à utilização dessa técnica, bem como o contexto em que o trabalho se desenhou, que me importa aqui referir. Falo do diálogo que uma pequena comunidade poética vem a desenvolver há já cerca de 10 anos.João Rasteiro

integra essa comunidade, criada no âmbito de um curso livre de Escrita Criativa(Oficina de Poesia)

título que passou à revista,oferecido pela Univer-

sidade de Coimbra e dirigido por mim própria. A

"sagrada" - autor/ia-autor/idade - constitui-se como uma espécie de núcleo temático do debate, num

curso em que o individualismo "inspirado" e "geni-

al" é não só questionável mas, quase sempre,também

dispensável.

A consciência de que usamos como material as palavras da tribo e a certeza de que o nosso tra-balho poético - que entendemos como trabalho de re-invenção - só faz sentido no seio da comunida-

de mais vasta, leva-nos a afirmar, com Robert Dun-

can, entre outros,que todos somos derivativos. O poema surge, assim, "ditado" pelas vozes que en-

chem a nossa experiência pessoal: as vozes da his-

tória e da cultura da tribo em que nos incluímos, as vozes de toda a evoluçao do universo em cujo

movimento participamos, as vozes de toda a tradi-

ção literária de que fazemos parte(mesmo pelas vo-

zes que aí rejeitamos) - mas também pelas vozes que fazem a insignificância(tão significativa) do

nosso quotidiano,em que, para alguns de nós, exis-

tem as vozes de outros poetas com quem nos encon-

tramos, semanalmente, para trabalhar em conjunto(e

isso pode traduzir-se,por exemplo,em poemas escri-

tos a várias mãos,em "collage" em variações sobre-

poemas de outros, etc).

O final de "A Respiração das Vértebras" surge

assim também, de certo modo, no início deste novo

livro de João Rasteiro: "No Centro do Arco" começa

com duas epígrafes e uma delas é de Robert Duncan,

tal como era de Robert Duncan aquele título do

poema final no livro anterior,"A Grande Deusa",por

mim,já antes,apropriado.Digamos que, no nosso diá-

logo semanal,certas obsessões se vão tornando cen-

trais e que vejo, neste trabalho de Rasteiro, uma

espécie de resposta às minhas próprias obsessões,

que partilhei(para o bem e para o ma) ao longo de vários anos de estudo sobre o trabalho de um dos

maiores poetas norte-americanos da segunda metade

do século XX.Numa imagem de círculos concêntricos,

a obra de Duncan é central,decerto inaugurando no-

vos centros de movimento que, de forma complexa,se

alargam, inter-agindo - com o italiano Salvatore Quasimodo, por exemplo, a quem pertence a segunda

epígrafe a este livro.

As duas epígrafes remetem-nos,de imediato, pa-

ra a unicidade entre a vida e a morte. No centro,

entre as extremidades desse arco - e os ecos de

"Bending the Bow" de Robert Duncan surgem bem cla-

ros - se colocará a voz do poeta deste livro, já

duas vezes premiado na Itália de Quasimodo, com os

poemas: "Enquanto o silêncio durar"(31),"Menção

Honrosa", Concurso Internacional "Poesie Sulle Pi-

astrelle",Zacem 2001;"A Dança das Mães"(41),Segna-

lazione di Merito",Concurso Internazionale "Publio

Virgilio Marone", da Accademia Internazionale "Il

Convivio", Castiglione de Sicilia,Itália,2003.

No centro de um arco situado no coração da ter-

ra,o corpo se erguerá em direcção à luz(da vida)e,

nesse acto de encontro criador, amorosamente, irá

criar a sua própria morte - a sua própria e repen-

tina "noite",diz Quasimodo: dois raios de uma mes-

ma luz, numa única promessa que é passado,presente

e futuro.

Também como Duncan -e os românticos, em geral-

João Rasteiro escolhe a metáfora da árvore como corpo representativo, devolvendo-nos, desde logo,

a uma concepção de escrita que se pretende orgâni-

ca e física. A primeira secção do livro,"Tronco",

procura a visível concretude do acto/corpo/poema.

Logo no seu primeiro texto,deparamos com o divino

hálito inspirador feito agora respiração humana,

bafo nos dedos que agem sobre a palavra - acto nas

linhas do arco. A escrita surge como acto de amor e vida, no tempo único entre caos e ordem, entre trevas e luz, trabalho realizado numa espécie de

vigília que passa, do assombro, à "lucidez do cor-

po". Essa é a "nitidez" do processo, uma nitidez -

uma forma/poema/corpo do poeta - "em constante mu-

tação", como os dedos do autor/criador. A presença

do corpo, a presença da pura materialidade que é a

forma, surge como única e total presença do sagra-

do.

De resto,todo o vocabulário escolhido por Ras-

teiro se encontra eivado de uma profunda religio-

sidade,produzindo-se um efeito ritualístico, em que

a voz do poeta nos capta, de forma encantatória,como

uma voz de sacerdote,a voz daquele que encena o ritual.

O tom conclusivo dos textos apresenta-se como uma espé-

cie de catarse: uma espécie de momento de aprendizagem,

de momento de iluminação, que se encena uma e outra vez.

Por outro lado, este carácter repetitivo parece traduzir

também o carácter físico do acto criador, num registo

metafórico que nos traz, além da sensualidade, a própria

sexualidade como princípio sagrado, presente em toda a

natureza: no "sémen dos frutos"(19);no tronco que "avança

decidido para o útero do fogo"(20), mergulhando na terra

que "é fêmea"(21), no "desenho branco no odor da fêmea"(22),

em "lume de cerejas de carícia em carícia"(24). Esta "embri-

aguez do verbo vegetal"(25) lembra-nos rituais dionisíacos e

também o grande poeta do sagrado do amor e da embriaguez,Rumi

(veja-se, poe exemplo, o poema "Horizonte imediato"(22).Con-

tudo, em Rasteiro, mais do que com a celebração deste amor e

desta embriaguez, confrontamo-nos com um processo penoso de

crescimento(que é também o da escrita), em que a perda dos

sonhos e a procura da lucidez possível se vão desenhando em

agonia difícil - por entre a manutenção dos opostos, mais do

que por entre antíteses - e onde o poeta aprende "difícil(...)

a arte do silêncio"(25). Trata-se de uma arte que se faz em

luta - e o carácter agónico presente na metáfora do arco e da

flecha assume aqui a sua verdadeira dimensão.

No poema "Círculo"(23), o poeta fala-nos da imensa crueldade

deste movimento, desta luta, em que a abertura para uma nova ima-

gem parece irromper violentamente dos membros, num espécie de par-

to que, como sabemos, para criar, destrói: "parte" a imagem/corpo

de onde nasce, como se dois arcos(de vida, mas também de morte)se

acoplassem para formar um só círculo.O início das duas primeiras

estrofes faz-se pela negativa, bem marcada pela pausa:"Ninguém";

"Nada".Porém, a terceira estrofe inicia-se na plenitude: "Extensa".

A morte paira e, perante essa sombra, o trabalho alquímico sobre

as palavras manifesta-se no objectivo, sempre inatingível, de di-

zer toda a dimensão do real. A consciência da sombra leva ao dese-

jo, às "palavras em fogo", mas o acto pela vida revela-se como um

"suicídio calculado", no conhecimento de que toda a criação trans-

porta a sua própria destruição. No último poema de "Tronco", "O so-

pro da língua"(28), o poema/corpo/tronco surge-nos como "arco do

sopro/do som" e, nele, todas as forças da natureza - a linguagem

incluída - se encontram, "a pulsação das sílabas sobre os pulsos

abertos", para se reconhecerem como matéria desse mesmo corpo(numa

irmandade que evoca S.Francisco), celebrando-se "num só corpo esten-

dido/para uma silenciosa festa de irmãos".

Este silêncio é identificado como a raíz, sendo "Raízes", preci-

samente, o título da segunda secção da obra.É no silêncio que o poeta

mergulha, como amante, dele extraindo alimento.Em "Círculo Total"(32)

se fala dessa procura de alimento,numa espécie de pré-história do poe-

ma e do humano,em que o poeta se faz caçador,mas também nómada e pere-

grino - seguindo o trilho e o caminho da palavra, como sustento infi-

nito. Este regresso ao arcaico,à raíz da civilização,mantém-se ao lon-

go de toda esta segunda parte da obra. Nela encontramos o percurso hu-

mano:caçador(32),guerreiro(33),ferreiro e alquimista(33-34),trabalhan-

do os metais na demanda da luz."Na lucidez do círculo"(35)parece desco-

brir-se a escrita, "um espaço onde se lêem linhas", que é "um espaço

mutilado", onde encontramos, de novo, "o bafo do animal vacilante",a

respiração humana - do selvagem/poeta que, na palavra, procura o fim do

movimento: um sonho/sopro que termina calcinado pela própria luz/fogo

que tanto deseja como absoluto. Esta parece ser a lucidez do círculo.

A água e a pedra acalmam este fogo, logo no poema que se segue,

assim, de novo, se reconhecendo a unicidade divina e absoluta do tempo,

do corpo e do sonho. Neste "lugar legível"(36),que adiante surgirá como

"transpiração da terra", o poeta se alimenta(37). Quase poderíamos dizer

que esta secção do livro é também sobre o cultivo,a(gri)cultura da pala-

vra, que é também a terra e o corpo da amada. Nesta palavra/terra/amada,

o poeta penetra, fazendo-se raíz, para daí se erguer como árvore. Daí, a

necessidade do sulco do arado:a necessidade das linhas da escrita do poe-

ma.Há que macular o corpo da terra/linguagem/amada para poder sobreviver:

esse é o pecado inevitável e a queda feliz - "e depois sentir-me capaz de

caminhar no incêndio/enfeitado nas tranças da serpente"(40), diz o poeta.

A imagem final desta segunda secção do livro deixa-nos,então,os dedos do

poeta a soltar a flecha, uma flecha feita "borboletas" que, em vez de voa-

rem para o alto, voam em direcção à terra, assim a fecundando.

Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em meta-

morfose.Não se trata de sobreposição de contextos,mas de uma passagem sin-

táctica, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em

metáfora, através de uma multiplicidade de contextos.Lidando com um léxico

de enorme simplicidade, quase sem recurso a abstrações, o poeta consegue,

assim,um trabalho em que a complexidade se traduz num excesso quase barroco,

de onde emergem momentos de iluminação que, circularmente, se repetem.

Em "Folhagem", última secção do livro,as imagens de aves e de voo domi-

nam. Entre as duas extremidades do arco, entre a vida e a morte, só o acto

é libertador. Em última instância, só o movimento das folhas importa, só a

flecha solta para uma qualquer direcção.No desejo, sempre a mesma ilusão - a

ficção credível, que nos sustenta a vida, diria Wallace Stevens: a sua Supre-

ma Ficção sendo a poesia.Rasteiro chama-lhe "a ilusão maior"(45), para onde

há o infinito "retorno"(46).Esse é o "rito inesgotável"(49),em que a redenção

se torna possível.Algo de arcaico, "teia dos velhos deuses", chama-lhe o poe-

ta, para cobrir uma "ignorância originária".Sobre esse rito, sempre a mesma

morte pairará mas, na consciência da lâmina, a vida continua a fazer-se:"as

florestas respiram na planície do corpo".

O voo da árvore/poema/poeta é vertical(53), sempre em direcção à luz e à

terra, sempre no centro do arco; o ciclo sempre a repetir-se na folhagem que

"regressa eternamente/e forma pares imprevisíveis"(53) - e forma novas asso-

ciações, e forma novas metáforas, poderíamos dizer.

O último poema de No Centro do Arco deixa-nos a dificuldade do caminho,

"Sob o azul"(55), e uma árvore alquímica, imperfeitamente criada, na ilusão

da permanência que é a permanência dos metais: em vez de ouro e luz, esta ár-

vore é "bronze aceso como luz" e "ferro" que,porque criação humana, será "ful-

minante" para o seu criador. No entanto, esta árvore revela-se também como o

novo hálito deste criador, "as suas mãos ávidas de boca" - a suprema ilusâo da

criação humana, sob o azul, no centro do arco. Esse é o lugar/tempo único que

o poeta João Rasteiro conhece como seu. Essa a sua reconhecida ilusão, o seu

único absoluto, a sua única promessa.



GRAÇA CAPINHA

(Prof.Dra. na Faculdade de Letras,

da Universidade de Coimbra)







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