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Contos-->O ATAQUE DA ONÇA -- 05/01/2002 - 17:32 (Euripedes SIlva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O ATAQUE DA ONÇA
(premiado no 11º con. SESI-Goiania - 2.001)


Os trabalhos com a organização do local para moer a cana estavam ultimados. Havia decorrido quatro anos desde quando JOSÉ AMADO tinha se mudado para o local. Já tinha ido na vila de FORMOSA na província de Goiás, um povoado distante mais ou menos sessenta léguas. Agora precisava novamente voltar lá para realizar alguns negócios, comprar sal, querosene e outras coisinhas. Nesta viagem custosa, passando por estradas boiadeiras e em muitos rios da região, onde tinha de atravessar de vau gastaria seis dias. O percurso seria feito a cavalo, sendo acompanhado pelo seu capataz JULIANO PEREIRA, um homem entrando nos cinqüenta anos, vigoroso e bom cozinheiro. Era filho de um escravo fugido com uma índia aculturada. A pequena comitiva era formada por dois cavalos, FERRINHO e XIBUNGO, montados por eles e mais a mula TROVOADA que conduzia a tralha de cozinha em suas bruacas. Acompanhava ainda o cachorro VAPOR um vira latas da fazenda.
Quando findava o dia, eles acampavam em um local bom para estabelecer o pouso. JULIANO escolhia alguns pedaços de lenha e após acender o fogo, armava a mariquinha em cima, pendurando o caldeirão onde era feito o cardápio de sempre: feijão tropeiro com arroz. Durante toda a noite, esta fogueira era mantida, sendo para tanto usada madeira de cernes pois estas resistem muito mais tempo no fogo. Pela manhã, madrugada de galos índios cantadores, eles já estavam de pé e o fogo novamente atiçado e revivido para fazer um café forte.
O fogo que ficava aceso a noite toda, tinha a dupla função de manter aquecido o acampamento e espantar as onças canguçus e às vezes até pintadas que viviam na região, caçando sempre durante a noite, à procura d uma refeição "incauta". Às vezes em altas horas, os cavalos ficavam inquietos, e o cachorro VAPOR latia com insistência sendo necessário algum deles levantar-se e atiçar o fogo, dar alguns gritos. Nestes momentos a carabina papo amarelo, de doze tiros, da qual AMADO não se apartava, estava pronta para cuspir fogo. Nestas viagens, quando começava a preparar a traia era a primeira coisa a ser separada, conferida se estava com a "barriga" cheia e normalmente ainda colocava outras trinta/quarenta balas na capanga de objetos pessoais. Para qualquer lugar que quisesse sair de onde tinha fincado sua morada naquelas matas brutas, havia perigos a todo instante.
Estas terras eram virgens das botas do homem, mas habitadas por feras como lobos, onças, cobras e até mesmo vez por outra ocorria ataques de índios hostis ou de algum grupo de assaltantes. Estes grupos, muitas das vezes, eram de ex-escravos que haviam fugido de alguma senzala. O movimento político dos abolicionista era intenso. Os ecos da diplomacia externa do reino Unido fazia se ouvir no mundo inteiro. A Inglaterra mantinha acesa a chama da campanha anti-escravagista, principalmente para defender seus mercados econômicos daquela mão de obra barata, do que por finalidades humanitárias. Porém a notícia dos atos da Corte do Império do Brasil andavam devagar naqueles sertões. Qualquer homem branco, visto naqueles ermos era tido como "capitão do mato" e devia ser combatido.
Naquela viagem para FORMOSA, tinham tomado todos os cuidados com a segurança. Durante as duas noites dormidas uma delas foi á beira do rio Bonito. A noite era fechada, sem luar. Após desarrear as montarias, montar a barraca, com duas estacas e armar a mariquinha, foi feito o café e apreciado por eles. Combinaram, patrão e empregado como seria a guarda da noite. Amado dormiria até meia noite, mais ou menos e JULIANO dormiria até a madrugada seguinte. O jantar foi feito com o esforço de ambos, e logo depois Amado se recolheu para um sono reparador daquele dia cansativo. A papo amarelo foi entregue para o sentinela da hora, que permanecia de atalaia ao pé da fogueira.
Na tarde daquele dia da viagem passaram por uma picada aberta a mais ou menos um ano, nos domínios da família do coronel Antônio Calvado. Naquela oportunidade, levara consigo uma comitiva de mais de doze homens, bem armados, mateiros experientes, abrindo o novo caminho a machado, facão e foice. Era uma mata virgem, onde encontraram muitas onças e outros animais perigosos. Todos os dias, alguém da comitiva abatia alguma fera. A carne era sempre aproveitada, até mesmo das onças.
Nesta Segunda viagem, os dois comentavam sobre os perigos do ano anterior. Quando ingressaram na parte mais fechada da mata, os dois cavalos e a mula ficavam cismados, e andando bem mais juntos do que anteriormente. O vira-latas VAPOR andava grudado na mula TROVOADA, sempre a sua frente e parecia assustado. As orelhas do muar, mudavam de direção a todo instante. Às vezes uma estava para um lado em sentido contrário da outra. Provavelmente estava captando dois ruídos diferentes vindos do interior da mata. Os homens estavam calados e alertas . O cheiro vindo do mato era como se um imenso cupinzeiro tivesse sido aberto, e exalava o seu odor varias braças em volta. O cheiro era inconfundível e se o vivente tivesse pressentido este algum dia, jamais esqueceria o "perfume" da pintada. Até mesmo os homens, que não tinham um faro tão apurado como os animais da comitiva percebiam o perigo iminente. A adrenalina deles estava solta no corpo inteiro. Amado sentindo a situação, tinha passado o revolver Smith Wessom com seis balas no tambor, para o seu escudeiro JULIANO. Findava o dia quando eles conseguiram sair das fraldas daquela parte mais fechada da mata, descendo para o vale do Rio Bonito margearam um charco "embrejado", que era inundado durante as águas. O som gostoso das águas do rio correndo nas cachoeiras daquele espraiado, era como se fosse música para eles, atravessava a mata ciliar, acariciando seus ouvidos. Vez por outra se ouvia do rio o barulho dos Dourados atacando os cardumes de papa-terras. Sentindo o aroma e o frescor da água, a tropa apertou o passo, querendo chegar mais cedo no pouso. A jornada daquele dia estava concluída.
No acampamento improvisado em uma praia do rio Bonito o Cachorro Vapor deitou-se entre a barraca e a fogueira com a cabeça colocada sobre as patas dianteiras, mas a todo momento levantava o pescoço e assuntava o ambiente. Era um cachorro nascido e criado no sertão acostumado com os movimentos do mato, não dando alarme por qualquer coisinha que movimentasse para aqueles lados. Era o reforço eficiente da guarda. A montagem do acampamento na praia tinha o objetivo estratégico de evitar ataques das onças, pois este felino não gosta de água, evitando o quanto pode entrar no rio. As pacas e capivaras quando percebem a presença deste inimigo, se jogam no rio, e ali estão a salvo. Os perigo vindos do meio aquático eram menores, representados principalmente por sucuris e jacarés. Mas estes não tinha o hábito de atacar com facilidade, pois estavam quase sempre com a barriga cheia, a variedade de peixes fazia cardumes abundantes. A atenção tinha de ser redobrada para o lado da mata.
No tempo das cheias, a força das águas do rio havia arrastado para aquela praia um imenso tronco de Figueira. Este estava corroído pelo tempo, cheios de brocas e com partes apodrecendo. JULIANO pensou de montar seu posto de guarda por trás daquele tronco. A posição da altura dele em relação ao solo era tal, que podia escorar nele em uma eventual posição para fazer um tiro com segurança absoluta na pontaria. Pegou a carabina e a descansou encostada no tronco da figueira com o pé da coronha na areia e o cano voltado para cima. Ela tinha uma bala na agulha, sendo necessário apenas armar o cão e acionar o gatilho.
Os animais de montaria foram amarrados nas proximidades com apenas cabrestos. Antes de findar o dia, e ainda com o lusco-fusco, Amado e JULIANO, haviam cortado algumas braçadas de capim para que os animais pudessem comer durante a noite. Poderia ter amarrado os cavalos e a mula, diretamente no capim-gordura da margem, mas não podia faze-lo sob pena de expo-los à sanha das onças. A corda fina trançada em couro cruz, que os prendia permitia que eles pudessem ir até no rio para beber. Pouco depois de terminar o jantar, o patrão que havia se recolhido na barraca estava roncando. Esta era feita com um pano mais fino tecido no tear de sua avó, com duas braças de largura por três de comprimento. Na praia ele tinha fincado duas forquilhas com mais ou menos uma braça de altura, passado nelas uma trave, e estendido o pano por cima, prendendo as quatro pontas, na areia com estacas pequenas. De repente VAPOR começou a latir com insistência e a grunhir, JULIANO apurou o seu ouvido e sentidos para a direção da mata. A frouxa luz da fogueira não ia além dos limites da margem. Uma distância curta de pouco mais de dez braças. Os animais amarrados nos galhos secos daquele tronco estavam no limite das cordas que os prendia, quase entravam na água rasa. Todos estavam inquietos. A mula bufava como se ensaiasse um relincho de guerra.
VAPOR insistia em ir na direção da picada por onde tinham entrado na praia. Ele corria até onde a luz alcançava com mais força e voltava na mesma batida. O pêlo no veio de suas costas estava arrepiado da cabeça até a ponta do rabo. JULIANO sentia o sangue correr em suas veias, como um furacão. Aquele cheiro temido da pintada, invadia o ambiente. O silêncio entre o latido do cachorro era intercalado pelo estalido da orelha da fera em movimentos compassados. O peão e seus animais estavam acuados e sem ver nada naquele escuridão da noite de onde vinha os esturrados da fera. Não era um homem medroso, mas o momento era de muita tensão provocada pelo perigo. Tinha boa pontaria, mas precisava divisar alguma coisa, para não desperdiçar bala. Resolveu por um expediente que poderia dar certo. Havia levado para o seu posto improvisado de vigia uma rede de dormir, para cobrir e abrigar-se do frio. Juntou esta rede e nela embrulhou sua camisa suada daquele dia. Ficou um volume relativamente pesado, mas que estava com proporção suficiente para arremessar. Jogou o pacote com força na direção da entrada da praia. Este fez uma parabólica no ar, passando por cima da fogueira e da barraca onde estava dormindo o seu patrão indo cair nas ramagens da entrada da praia.
No momento em que arremessou aquela "projétil de catapulta" preparou a "papo amarelo" para eventual disparo. Quando o embrulho caiu nas ramagens, ele viu o vulto imenso da "gata" pulando em cima em um bote certeiro. Vapor que assistia ligado naquela armação de seu companheiro de infortúnio, permanecia atento e pronto para atacar o inimigo comum. Com o barulho da pintada caindo nas ramagens das margens JULIANO disparou o seu "trabuco" uma vez, e com a agilidade de um raio, manobrou o guarda mato da arma, ejetando o cartucho vazio e remuniciando a culatra... outro tiro foi dado ainda no vulto que caia na areia. Vapor a esta altura estava em cima da caça. O animal temido rugiu de dor e decepção pelo engano de seu pulo. Na refrega entre o cão e a fera, este foi mandado longe na direção da fogueira. A onça acertou-lhe uma certeira patada. Ele foi cair em cima da barraca de Amado que acordava acelerado.
Este despertou e num salto estava do lado de fora, com o "paralelo" na mão pronto para atirar na direção de onde vinha o barulho da batalha. Ouviu apenas a quebradeira que a onça fazia rugindo e embrenhando na vegetação miúda na direção da mata virgem. VAPOR grunhia de dor estirado na areia entre a barraca e a fogueira. O seu dorso estava cheio de sangue. Amado se aproximou para examinar o ferimento do cão de guarda, abaixando-se e fazendo um carinho na cabeça do fiel escudeiro deles. Tocou a mão na parte ferida, percebendo que a fera havia rasgado com as garras de sua pata dianteira o couro do animal em uma extensão de mais de palmo. Não tinha perfurado além das costelas. O cão a esta altura com a atenção de seu dono, virou a cabeça lentamente e lambeu a sua mão em sinal de agradecimento pelo carinho recebido.
JULIANO se achegou do animal e também o afagou em sinal de reconhecimento de sua bravura. Vapor bateu o rabo na areia como se sorrisse reconfortado. Era como se os três fossem a frente de batalha de uma guerra diária naquele sertão distante. Amado era o general em comando, o cachorro e JULIANO seus soldados no fronte. Confabulou com o seu patrão sobre qual a melhor maneira de tratar o animal. Amado pegou um pequeno embornal, onde trazia algum material de primeiros socorros, para humanos. Ali tinha uma agulha de lasca de aroeira, usada para costurar sacos de aninhagem, linha fiada em roda de tear, com algodão e untada com sebo de carneiro, tiras de panos limpo para bandagem além de muitas balas calibre .44 para a carabina. Os dois homens, ajoelharam em volta de VAPOR, examinando o ferimento com mais vagar e como se este entendesse o momento de tensão permanecia quieto, apenas abanando o rabo em sinal de conformação.
JULIANO segurou o cão firmemente mas com cuidado. Amado juntou o couro na região do ferimento e deu o primeiro ponto para segurar as partes soltas. O animal contraiu de dor mas apenas gemeu, não reagiu como o faria quando agredido. O trabalho terminou uma hora depois. Para firmar as bordas da ferida, não deixando exposta sua carne, foram necessários 14 pontos. Sobre o ferimento foi passada uma faixa usando aquelas tiras de pano que o patrão trazia. Esta faixa tomava todo o seu dorso passando pela parte posterior,
Antes porém examinaram com mais cuidado todo o corpo de Vapor, e viram que não havia fraturado nenhum osso. Ele devia estar com alguma luxação, quando muito. JULIANO trouxe um dos bacheiros que usava em sua montaria, e forrou na areia. Os dois pegaram o "soldado" ferido e o alojaram dentro da barraca. Aproximava meia noite AMADO, tomou o posto de vigia e mandou que JULIANO se recolhesse. Este pegou a rede que havia jogado na pintada e a forrou na areia perto da fogueira. Minutos depois estava dormindo. O restante da noite correu sem incidentes.
Pela madrugada com o dia ainda claro AMADO começou a fazer movimentos nas coisas da cozinha separando a "rabinha" de fazer café e os condimentos necessários, quando o seu empregado se levantou e fez o desjejum. Era café preto e forte, dois ovos cozidos para cada um e sal a gosto. No horizonte distante, surgia o clarão do amanhecer. Uma aragem fria soprava do rio para a mata. A praia ficava mais fria ainda. Uma algazarra frenética se ouvia vindo das árvores das margens, feita por pássaros pretos, anus, sabiás, guachos, canarinhos da terra, juritis, galos do brejo, socós e muitas outras aves. A orquestra da natureza sertaneja era harmônica e gostosa de se ouvir.
A tropa estava calma e comia os últimos restos do capim colocado junto dos animais no inicio daquela noite. A visita da onça e todo o reboliço que ela causou já era coisa passada. Apenas VAPOR, tinha ficado com as marcas da luta. Este permanecia deitado e quieto. JULIANO, se aproximou dele e fez-lhe um carinho. O animal respondeu balançando a cabeça e abanando a cauda. Havia dois problemas a serem resolvidos naquela manhã: primeiro tinham de arrumar meios para levar VAPOR que não conseguia andar com desenvoltura e precisam arrumar uma caça qualquer a fim de atirar às piranhas a montante de onde estavam, enquanto eles passariam com segurança a jusante delas.
Naqueles ermos não era preciso muito esforço para matar um bicho qualquer, como capivaras, jacarés, sucuris, pacas, veados, antas etc. Durante a noite, tanto Amado como JULIANO tinham escutado o movimento de muitas capivaras em uma várzea ali pertinho. Os bichos eram mansos e podiam chegar relativamente perto deles e escolher algum para abater. Este trabalho seria feito depois, antes precisam ver como fariam para levar VAPOR, ele não podia ser abandonado ali, por que certamente seria comido por jacarés, horas depois. Era um companheiro valioso e devia merecer justos cuidados.
Enquanto tomavam o café da manhã começaram a conversar sobre o problema com VAPOR. Finalmente JOSÉ AMADO resolveu que seriam cortadas diversas varas e uma folha jovem de bacuri, para dela tirar as embiras, fazendo assim uma esteira mais ou menos do tamanho do cão com largura de mais ou menos dois palmos. Seria este estrado côncavo o bastante para não permitir que o cachorro rolasse e caísse dele. Por cima iria colocar o bacheiro, para evitar o sol e proteger contra moscas e de uma possível queda.
O sol ainda preguiçava para surgir no horizonte, quando JULIANO saiu para o lado da mata, na mesma direção de onde tinha fugido a onça no inicio da noite. O orvalho intenso da madrugada estava em abundância no capinzal das margens e as suas gotas nas pontas das folhas, pareciam pequenos brilhantes refletindo a bruxuleante luz do inicio daquela manhã. Ele estava vestido com uma calça de couro, e esta impedia que o orvalho molhasse suas pernas. Andou apenas alguns metros, e viu algumas marcas do sangue da pintada nos ramos do lugar. Pensou consigo mesmo, esta "bicha" foi ferida com gravidade e deve estar estirada por aí. Seguiu a trilha de sangue para dentro da mata.
Naquela baixada por onde tinham entrado na direção da praia havia muitas árvores, porém com pouca vegetação rasteira, pois nos períodos regulares de cheias ali era tudo inundado por alguns dias, mantendo limpo por baixo das árvores. JULIANO andou por mais ou menos cinqüenta braças e viu a onça deitada. Chegou mais perto umas dez braças. Da posição de onde estava, via apenas as partes traseiras dela não tendo visão de sua cara. Assuntou por alguns instantes e não viu nenhum movimento suspeito da fera. Ela parecia morta. Mortinha da silva. Ele estava desprevenido para encontros com onça naquela empreitada perigosa, não tinha levado consigo nem a papo amarelo e nem o parabelo. Tinha apenas aquele facão de três palmos de lamina, que aparava cabelos no ar, de tão afiado que estava. Sentiu o sangue correr mais forte em suas veias. Se aquele bicho temido não estivesse totalmente morto, poderia movimentar-se e ataca-lo. Uma única patada tinha botado VAPOR a nocaute. Não poderia correr o risco de ser ferido também, bastava uma baixa por dia. Entretanto, se voltasse e falasse para o patrão que tinha corrido de uma onça morta seria motivo de chacota por muito tempo.
O peão tinha de ir mais além daquela baixada, sair fora dela e ganhar a capoeira, onde encontraria uma vegetação baixa cheias de marmelada de galhos finos próprios para tirar as varas e os pés de buritis para cortar as embiras que precisava. Caso optasse em dar a volta de onde a fera estava, teria de passar pelo mesmo caminho de onde veio e seria visto pelo patrão, certamente teria de dar alguma explicação por ter recuado. A reputação de um caboclo era coisa muito séria, quando se tratava de sua coragem. Estas noticias se alastram como fogo de morro acima e estragam a vida do sujeito para sempre. Se fosse sem ter certeza da morte da fera, esta poderia estar apenas meio tonta e ainda querer atacá-lo. Resolveu fazer o teste de São Tomé . Pegou um pedaço de pau meio podre e pequeno e o atirou no bicho. Na outra mão segurava firme o facão Colins pronto para qualquer emergência. O pedaço de madeira, bateu na barriga da onça e pulou para o lado, como se tivesse saltado de medo. Ela nem abanou as orelhas, parecia morta mesmo.
JULIANO era um caboclo curtido pelos anos e já tinha ouvido muitas historias de seus ancestrais, contando a saga de matutos que tiveram embates com onças. Este era o bicho mais traiçoeiro que habitava nossas matas e todo cuidado com este felino era pouco. Chamar alguém de amigo da onça era motivo de malquerença grossa. Tinha ouvido verdadeiras "batalhas" de caboclos encontrando com estas feras e quase sempre no final levavam a pior. O bicho era um perigo mesmo depois de morto podia aprontar alguma para cima do vivente que se atrevesse a cantar de galo perto dela, pensando que estivesse morta.
Aproximou-se devagar, chegando a menos de três braças de onde estava o bicho. Antes se preparou, cortando um galho, todo torto de figueira, comprido com mais ou menos uma braça de tamanho. Esticou o seu corpo todo tentando alcançar a fera com a ponta da vara. A distância era muito grande ainda, teve de dar mais um passo. Quando baixou o pé com o maior cuidado, não olhou para o chão, pois sua atenção estava toda voltada para a onça, e pisou em cima do rabo de um teiú que dormia no meio das folhas. Era um réptil "erado" pesando quase uma arrouba, mas ágil feito uma lagartixa, seu parente distante. Este arrancou na toda, suas patas dianteiras fincaram no chão mole patinando no meio da folhagem, jogando restos do húmus com terra longe. Quando o pé de JULIANO pressionou o rabo daquele infeliz, este ainda soltou um grunhido gutural, JULIANO então, levou um choque tão grande, que não teve outra ação senão "virar nos cascos", correr na direção contrária do réptil. Havia logo atrás dele uma figueira de porte médio em cujos galhos tinha tirado a vara, subiu nela muito mais rápido que um macaco acuado pela turma adversária.
Das grimpas da árvore, ele olhou para o chão, pensando que a pintada estivesse ali tentando subir para devorá-lo. Seu pensamento o ajudava, pelo menos neste particular, pois lhe avisava que a onça estava ferida, e portando sem muito jeito para subir naquela Figueira. Na subida frenética tinha até sentido a unha da fera rasgando suas costas. Seu coração estava a mil, quase saindo pela boca, sentia calores e calafrios que o faziam suar, de umedecer até as mãos. Em baixo da arvore não havia nenhum bicho, na direção de onde tinha corrido o teiú viu um punhado de folhas bamboleando no ar, fazendo um "canudo" que apontava na direção de um charravascal de unha-de-gato. Cessado aquele movimento, olhou para onde estava a onça. O bicho continuava do mesmo jeito. Voltou a sua atenção rápido para o lado de onde tinha ficado o seu patrão, caso ele tivesse vindo atrás dele e visto a cena estaria perdido em um mundo de gozação para o resto de sua vida. Talvez tivesse até que mudar da região, tentando correr mais do que sua fama de moleirão. Não viu ninguém. Suspirou de felicidade, e começou a rir de sua própria sorte, um caboclo corajoso tido como homem valente e da confiança de seu patrão, correndo de uma onça morta. A mulher do patrão, dona Cati e a mulata Jovelina não podiam nem sonhar com aquela situação hilariante.
Teve uma dificuldade danada para descer da arvore e quando já estava no chão ficou cismando como tinha conseguido subir lá em cima, com tanta agilidade. Na ponta de um galho seco, viu um pedaço de sua camisa e só aí percebeu o porque daquela impressão de que a pintada tinha lhe passado uma garra nas costas. O "vergão" deixando no fio do seu lombo, agora estava ardendo com o suor escorrendo por ele. Tomou uma dose extra de "machismo", foi em passo decidido para o lado da fera, e pegou o seu rabo, puxando-o com toda força. Seu esforço foi suficiente apenas para alui-la do repouso de morte.. Olhou onde tinha pisado naquele teiú e viu o facão fincado no chão perto do local, onde deve ter sido jogado na hora de sua corrida "estratégica". Pegou a ferramenta, cortou uma orelha da "gatona" colocando-a no embornal, precisava levar a prova de sua façanha e foi tirar as varas e embiras de seu propósito.
DIOR D ÁVILLA E SILVA
(Fragmentos do ensaio literário "O PAPAGAIO E O DELEGADO"


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