Quando Clinton reuniu Itsak Rabin e Arafat, este caminhou até o colega israelense com o braço estendido, um sorriso no rosto, para o cumprimento diante dos flashes de repórteres de todo o mundo.
Nunca esqueci aquele gesto. Aquilo foi afeto, gratuito, espontâneo. Amigos ou inimigos, rivais ou colegas, naquele instante escapou um segundo de afeto.
Claro, isso é muito diferente dos cumprimentos formais, fingidos, que fazem parte do ritual vigente entre políticos e os mais abastados.
Imagine-se entrando em alguma festa, reunião, ou coisa assim, e alguém se aproxima de você, com os olhos brilhando, e dá aquele abraço sentido. Isso é afeto. Ou quando você vê alguém que não conhece, seja na TV, em qualquer lugar, e de repente você sente um ímpeto de abraçar essa pessoa, pelo que está dizendo, ou exprimindo. Isso é afeto. Ou quando vê um vira-lata lançar aquele olhar irresistível, e você passa a mão na cabeça do bichinho. Isso é afeto. Os animais são especialistas nisso, principalmente os vira-latas.
O afeto existe entre famílias, mas aí vem misturado com amor, carinho, etc. O afeto mais gostoso é aquele dirigido a alguém que não nos seja íntimo, um estranho às vezes.
Pelo menos uma vez na vida você já deve ter-se deparado com um mendigo, adulto ou criança, e sentiu um impulso irresistível de ir até lá e deixar um trocado, ou mesmo um abraço. Isso é afeto.
Alguma coisa em nosso coração, e em nosso cérebro, deve disparar uma reação química, física, ou espiritual, que nos compele a transmitir essa energia a alguém. E isso causa uma sensação de bem-estar à pessoa-alvo. Nós passamos algo que está dentro de nós. E uma entrega gratuita de algo bom, prazeroso. Isso é afeto.
Afeto é uma coisa que não se controla. Ele brota e deve ser dado, senão, como mel, açucara dentro de nós mesmos. E ninguém é imune a esse sentimento, por mais cruel que seja. A diferença é que muitas, muitas pessoas, reprimem esse impulso e não o deixam vazar, como se isso fosse uma fraqueza.
Diga a verdade, você nunca viu alguma coisa que tenha feito com que seus olhos se enchessem de lágrimas? A primeira vez que seu filho disse "papai", ou "mamãe" não vale. Aposto que viu sim, que sentiu uma vontade imensa de abraçar, aconchegar ao peito. Isso é afeto. Há pessoas que sentem essas coisas até vendo comercial de TV. Essas são cheias de afeto. Normalmente são apelidadas de "coração de manteiga". Mentira, são corações que pulsam afeto.
Quando Taiguara gravou seu LP "Canções de amor e liberdade", nos "takes" da música "Estrela Vermelha", que o compositor fez no navio que se afastava da costa do Brasil em seu exílio durante a ditadura, o coral e a orquestra precisaram de muitas tentativas para gravar, pois ao cantarem, a garganta emperrava, os olhos se inundavam. O próprio cantor deixou escapar um nó na garganta na versão final. Isso é afeto. Afeto pelo amor à pátria, pela saudade que ali se iniciava. Se você ouvisse a canção também debulharia umas boas e salgadas lágrimas. Isso é afeto.
Quando você olha nos olhos da pessoa que ama, e seus olhos vão aos poucos formando um brilho molhado, que desce devagar pelo rosto, nesse momento não é o amor, a paixão, que se manifestam. Nesse momento você se deixa regar sem controle, e quer apenas apertar essa pessoa junto ao coração. Não quer beijos, nem sexo, nem palavras. Quer apenas desaguar essa química que, embora nascida em seu peito, pertence àquela pessoa. Isso é afeto, o alimento que faz nascer e crescer o amor.
O afeto é mais versátil que a soja, e que o BomBril. Serve para tudo. E é perfeito na assepsia humana. Pois para libertar esse prisioneiro do nosso peito, é preciso girar as chaves do orgulho, da inveja, da ganância, do egoísmo, do rancor, da covardia, da superficialidade, da aparência que engana. Afeto requer prática e habilidade.
Muito bom é o afeto. Melhor que bolinho de bacalhau e coca-cola.
A quem interessar, algumas das músicas desse LP do Taiguara, que jamais foi tocado aqui no Brasil:
Canções de Amor e Liberdade
1) Estrela Vermelha
Chão do meu lar. Litoral que te vejo azular...
Cruz-de-Luz que te sinto pesar...
Brilho... Queimar que me dóis...
Cor do sangue que nós
Não conseguimos derramar
Praia... montanha por trás
Cai a noite no cais...
Se escurece meu peito... infeliz...
Água que jorra de mim...
E aumenta o mar entre nós:
um homem só e seu País.
Estrela vermelha que brincas no ar...
E em teu fogo me espelhas as veias do olhar...
Vou voltar
pr o azul negro
da noite ante o crespo das águas
pescando as estrelas,
piscando mais que elas...
Vem, meu Brasil,
Meu avô musical...
Tua violência de sal sobre a areia...
Tuas violas sereias
que em meus pés vêm tocar...
Tuas marés p ra me libertar.
2) América del Indio
Libre América Latina
Del Brasil al Ecuador
De México a la Argentina
De Uruguai a El Salvador
Nación de tantas naciones
De Mambos y Chamamés
Autodeterminaciones
Es como las llamaré
De acá mirando el mapa...
Ai... como sugieres... y eres
Mujer...
...llegó a mi casa un turista
buscando um macho tribal
Le dije al débil racista:
- Senhor... no lo tome a mal...
Soy Indio. No soy folklore.
Soy gente y voy a alcanzar
La Ciência que los "senhores"
Corrompem p a dominar.
La Tierra...
La Gente...
...que los senhores
Corrompem p a dominar.
Libre América del Indio
Es como las llamaré
Autodeterminaciones
De Mambos y Chamamés
Libre América del Indio
Peruondurricanidad
Suriparaguatemaica
Puertoricubanamá
Libre América del Indio
Del Brasil al Ecuador
De México a la Malvinas
De Uruguai a El Salvador
3) India
India, bella mescla de diosa y pantera
Doncella desnuda que habita el Guairá
Arisca romanza, curvó sus caderas
Copiando um recodo de azul Paraná
Montaraz india manceba
De la raza virgem
Eva Guayaqui
De su tribu, la flor
Montaraz guayaqui
Eva arisca de amor
Del Eden Guarani
Bravea en las sienes su orgullo de plumas
Su lengua es salvage panal de Eiruzu
Collar de colmillos de tigres y pumas
Enjoya a la musa de Ibitiruzu
Montaraz india manceba de la raza virgem
Eva Guayaqui
La silvestre mujer
Que la selva es su hogar
También sabe querer
También sabe soñar.
4) Voz do Leste
Sou Voz Operária do Tatuapé
Canto enquanto enfrento o batente co a mão
Trabalho no ritmo desse Chamamé
Meu pouco Salário faz minha ilusão
Sou voz operária do Tatuapé
Vivo como posso e me deixa o patrão
E enquanto respira dessa chaminé
Meu povo se vira e não vê solução
No teatro da vergonha
aonde a verdade não se diz
Tem quem representa a massa,
quem ri da desgraça
E quem banca o infeliz
Tem até burguês que sonha
que entra em cena e engana a atriz
Tem quem sustenta a trapaça
e depois que fracassa
amordaça o país
Já meu drama é o da cegonha...
quase morre o meu guri...
Sobra pr o Leste a fumaça
e a peste ameaça
O ar do Piqueri
Pior que a matança medonha
é o desemprego pra engolir...
Seja no peito ou na raça,
esse teatro devasso
Alguém tem que proibir...
Seja no palco ou na praça
Essas peças sem graça
vão ter que sair.
5) Mais-Valias
Mais valia eu ter-te amado
Que ter-te explorado tanto
Mais valia o meu passado ao teu lado
Do que mais luxo e mais encanto
Fiz do meu lar uma empresa
Fiz brilhar meu colarinho
E hoje o que resta é tristeza
E a certeza de que eu não quero
Estar sozinho
E o que foi festa é despesa
Na mesa em que mais valia
O teu carinho
Pr a que é que eu quis mais dinheiro?
Se quanto mais possuía
Mais me via interesseiro
E, no meu cativeiro,
Mais eu te perdia...
Fiz Capital, te explorando
Fiz o mal, nos separando
E hoje aqui estou derrotado,
Um ladrão desalmado
Que acabou chorando
E hoje aqui estou fracassado.
Um patrão desarmado
Que acabou pagando.
