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Infantil-->A baratinha e outros -- 30/08/2006 - 15:17 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A baratinha e outros infantis


Até cinco anos morei na roça, num sítio próximo a Eugenópolis, MG, só depois é que nos mudamos para a Vila de Água Doce —a doce vila das minhas lembranças. Dia desses passei por lá e vi que a velha casa onde nasci não existe mais, não há nem sinal dela. As velhas paredes desapareceram, o telhado negro foi engolido pela engrenagem do tempo. Mas eu me lembro de quase tudo. Havia um grande terreiro que separava as nossas eternas correrias de menino da estrada de terra que passava em frente. Volta e meia uma nuvem de poeira vermelha se erguia na curva do bambual e explodia bem defronte a minha casa, depois desaparecia indo na direção da fazenda do meu avô Sebastião. Cada nuvem que passava levava no colo uma “baratinha” lotada de passageiros. Os carros antigos eram chamados de “baratinha” e nós ficávamos encantados com eles, só interrompíamos as nossas importantes brincadeiras para ver a cena que se movia. Era gente rica passando a caminho de Eugenópolis, indo para o Rio de Janeiro ou chegando para passar o final de semana no campo. Sabíamos que, a qualquer momento, passaria o “seu” Tatão, o nosso maior amigo. O “seu” Tatão era um homem bom, sorridente, de gestos amplos e inconfundíveis. Sempre que passava, diminuía a marcha da baratinha e jogava um punhado de moedas amarelas para nós. Ele gostava de ver a nossa alegria, a correria de meninos magrinhos, aparentemente subnutridos. A nossa algazarra talvez lhe mostrasse uma felicidade que ele gostava de ver.
As moedas vinham do céu, caíam e rolavam para dentro das moitas de erva-cidreira, escondiam-se entre os tufos de capim verde que emolduravam as laterais do terreiro. Eu e os meus cinco irmãos passávamos o resto do dia procurando por elas, garimpando a riqueza que viera do céu. Não fazíamos a menor idéia de quanto valiam, mas a minha mãe sabia muito bem do seu valor. Acho até que ela gostava mais daquelas moedas do que nós.
Como era bom e generoso o “seu” Tatão! Era gostoso esperar por ele nos fins-de-emana. Ansiosos, aguardávamos pela poeira que vinha junto com a sua baratinha, já conhecíamos o ruído do seu motor, o cheiro bom da sua gasolina. O “seu” Tatão era bom, mas acredito que a nossa simpatia por ele era mais por causa das moedas amarelas que ele nos lançava, em mãos cheias e generosas. Os discos dourados brotavam da sua mão, abriam-se em leque, brilhavam e flutuavam no ar. Era uma chuva de ouro caindo no nosso terreiro. Ainda hoje eu me recordo com carinho e saudade daquele homem bom, mas nunca consegui descobrir qual razão de ele nos jogar aquelas moedas. O que será que ele pensava de nós? Nossa casa era feia, erguida em madeira roliça pelo meu próprio pai; o fogão da dona Francisca, minha mãe, era de lenha; tomávamos banho numa bica que vinha da serra, de onde eventualmente rolava um “pitu”, um tipo de camarão marrom de um braço só que apavorava a minha irmã caçula; brincávamos descalços e sem camisa, mas era apenas porque a minha mãe gostava de economizar na roupa. O Juca, meu pai, era um homem rico de verdade —e que ninguém duvidasse! Ele tinha um sítio de “a meia” com o tio Clóvis; tinha a nós, muitos filhos alegres, um carro de bois e duas vacas leiteiras. Eu me lembro de que, quando o Juca ia à cidade vender o leite, levava as moedas caídas do céu e voltava com uma montanha de compras, trazendo bolas de gude, suspiros em forma de vulcão, barras de chocolate e balas-de-goma coloridas para nós. A nossa casa era uma grande festa. Coitado do “seu” Tatão! Acho que ele pensava que nós éramos pobres e vai ver que era porisso que nos lançava aquelas moedas...



A Bruxinha de Natal


Na minha casa de menino pobre nunca teve festa de Natal. Jamais ganhávamos presentes. Mas, ano após ano e cheios de esperança, imitávamos os meninos ricos da Vila e colocávamos nossos sapatos velhos inutilmente na soleira das janelas. Todos amanheciam úmidos pelo sereno da noite e invariavelmente vazios. No dia seguinte, o Juca improvisava carrinhos de madeira toscos e precários e nos dava para brincar. Bem cedo, felizes, saíamos empurrando os ridículos carros caseiros, de rodas quase quadradas, pelas ruas de terra da Vila de Água Doce. O nosso pai tentava dessa forma disfarçar a evidente pobreza e enganar os vizinhos. Muitas vezes nem mesmo os carrinhos caseiros ele podia nos dar e tudo ficava ainda mais triste. Desse tempo ainda me lembro de uma manhã, após a misteriosa passagem do Papai Noel (este velho trapaceiro que não gosta de menino pobre), quando encontrei dentro do meu sapato um sabonete Eucalol —o mesmo sabonete vagabundo que a gente usava nos banhos rotineiros lá de casa.
O presente, por ser um fato novo, deixou-me preocupado. Desconfiei que aquele sabonete fosse uma indireta do meu pai, insinuando que eu não andava tomando banho direito. Mais tarde, todavia, vi que era mesmo um presente de Natal já que os meus outros irmãos também tinham ganhado um sabonete igual. Nesse dia senti muita pena do Juca, meu pai. Do seu jeito ignorante e pobre, ele ao menos tinha se lembrado de nós.
Com a minha irmã caçula, porém, aconteceu diferente. Ela ganhou do Papai Noel (para nossa ciumeira) uma boneca de pano (um tipo de bruxa rudimentar e primária que a minha mãe mesma fizera na véspera). A boneca não passava de um travesseirinho amarrado ao meio, careca, os olhos e o nariz pintados a carvão. A boca era exageradamente vermelha e fora feita com batom barato, possivelmente emprestado da nossa vizinha, a comadre “Tute”.
O que foi pior para nós, meninos machões, é que o presente agradou e a minha irmã, ingênua, que ainda tinha tempo de ser feliz, caiu de amores pela bruxa. Parecia uma provocação, ou melhor, era uma provocação! Aonde quer que fosse, lá estava ela com a boneca feia e infame. Para nós ficou muito difícil suportar a provocação da bruxa e um conflito acabou se tornando inevitável. Eu e os meus irmãos, que tínhamos ganhado apenas um ridículo sabonete "Eucalol", nos sentimos preteridos e armamos um grande tumulto. Unidos pela mesma "justa causa", alcançamos a bruxa e a dilaceramos, acabamos com ela. Eu ainda me lembro das vísceras de algodão amarelo à mostra, das tripas espalhadas pela sala da casa, da pele de pano em frangalhos e da minha irmã, órfã de boneca, chorando em desespero. Mas tinha valido a pena a vingança torpe. Foi uma vitória do sabonete Eucalol, comum e ordinário, sobre a boneca de pano sem nome, a mimada, a preferida, a queridinha do Papai Noel. Onde já se viu? Desculpe minha irmã, mas era uma questão de honra, a casa tinha ficado pequena para tanta gente: era a boneca feia ou nós. A malvada bruxinha precisava morrer...



Anjinhos da roça

Os alunos do grupo escolar da Vila de Água Doce já sabíamos do que se tratava: quando um homem pobre chegava e ficava na porta da escola segurando o chapéu, olhando para dentro com olhos pidões, na certa um filhinho seu —um anjinho recém-nascido—, tinha morrido na roça. A professora também já sabia e nos liberava para buscar o menino que nos esperava calmamente, mortinho da silva, repousando seus pezinhos amarelos sobre cadeiras rústicas nalgum cômodo da casa. Os casebres não tinham luz elétrica, eram sempre muito escuros e o piso era de terra batida. Os pais dos anjinhos não eram exigentes, mas pediam apenas uma coisa e disso faziam questão: os alunos que fossem buscar o seu defuntinho querido deveriam usar o uniforme oficial da escola. Eles achavam que isso era chique, um sinal de respeito.
Os alunos que se julgavam ricos não gostavam de ir buscar anjos na roça, colaborar com os pobres. Havia alguns, mais orgulhosos ainda, cujos pais não permitiam. Nem pensar em coisas bobas como aquelas. Eu, da minha parte, sempre estava disposto a ir —a dona Francisca, minha bondosa mãe, já tinha dado autorização prévia e eu até gostava daqueles “passeios”. Para mim era uma festa carregar anjinhos mortos, eu gostava de caminhar nas trilhas de mato molhado e “matar” a aula ao mesmo tempo. A morte dos anjinhos era uma “boa” para mim. Enquanto eles morriam feito passarinho eu aproveitava para me livrar da escola chata. O pai do anjinho, o pidão, vinha para a cidade arrumar "torcida" para acompanhar o seu filho, com honras de herói, até à sua última morada. Isso era comum na Vila de Água Doce, uma coisa triste mas caridosa de se fazer.
Nessas minhas jornadas de caridade eu ainda me lembro que vi muitos pais chorões ensaiando um leve sorriso na hora decisiva e dolorida da despedida. Quando viam aquele seu filhinho morto indo embora para sempre, para a terra do nunca mais, choravam e sorriam ao mesmo tempo. Acho que eles ficavam até um pouco contentes porque estava sendo levado por meninos alegres, sem preconceito. O seu filhinho dorminhoco, com os pezinhos mais do que amarelos, agora seria um deles, teria por últimos amigos uma turminha legal que viera da escola exclusivamente para buscá-lo. Uma honra, quase uma glória. Acredito que os pais "pidões" ficavam até felizes naquela hora, já que o seu anjinho estava bem acompanhado naquela última viajem.
Os meninos da cidade éramos considerados filhos de gente boa, era uma coisa solene, quase oficial. No caminho de volta para o cemitério da Vila carregando aquele corpo levinho, quase um cisco, eu "transferia" para o anjinho uma tarefa difícil: alguns meninos tinham dito para mim, em confidência, que os “mortinhos” aceitavam levar para o Céu com eles o “medo de defunto” que os meninos bobos como eu tínhamos da morte. Eu tinha muito medo dos mortos, fossem grandes ou pequenos —era um desses medrosos incorrigíveis.
Era por isso, por ser interesseiro, que eu ia buscar os anjinhos na roça. Durante o longo trajeto eu vinha pedindo para que o anjinho do dia levasse o meu medo junto com ele para o Céu. Acho que deu certo e funcionou. Hoje eu não tenho mais nenhum medo dos mortos —o que tenho é uma grande nostalgia daquele tempo e sinto um pouco de remorso.
O meu grande remorso é ter explorado a boa fé dos pobrezinhos ao lhes fazer pedidos indevidos, sobrecarregando a sua já penosa missão de morrer tão jovens e pequeninos. Agora, não sei se lhes peço desculpa ou perdão.



Anjo Gabriel

No começo dos anos 70, fui promovido a supervisor de vendas. Minha vida de longas vagens apenas começava. Por dois longos anos que nunca acabavam fui morar na cidade de Penápolis, SP, na Alta Noroeste. Nos raros finais de semana em que eu voltava para casa, para agüentar as noites superquentes da região, pegava um lençol e me deitava no cimento fresco do quintal. Meu filho Gabriel, que na época tinha três anos, deitava-se ao meu lado e ficava chupando sua chupeta.
Numa dessas noites mornas, longe da minha terra e dos amigos taubateanos, sentindo uma saudade imensa, olhei para o vazio do céu e mostrei para o Gabriel a imensidão da Via Láctea. O “caminho de São Tiago” parecia uma enorme lantejoula enfeitando o céu. A noite estava muito clara, e as estrelas, milhões delas, faiscavam como uma imensa árvore de Natal. Disse para ele que, na realidade, não estávamos olhando para cima, mas para baixo. O que nos prendia na terra era apenas a Lei da Gravidade. Se a lei da gravidade falhasse, por um momento que fosse, sairíamos a flutuar como balões pelo espaço imenso. Para minha surpresa, o menino que era tão pequeno, entendeu as minhas palavras e se assustou. Pegou seu pequeno travesseiro e fugiu rapidamente para dentro de casa, chamando pela sua mamãe.
Anos mais tarde, morando novamente em Taubaté, quando ele já estava com doze anos e recebia uma mesada habitual de quarenta reais, distraiu-se na escola e perdeu o seu novo livro de inglês. O livro custava caro, algo em torno de noventa por cento do que ganhava de mesada. Decidi descontar aquele valor da sua pequena renda mensal. Seria uma lição de vida, ele precisava aprender que um livro, por modesto que seja, custa caro.
Mais uma vez o Gabriel me ensinou uma coisa nova. Naquela noite, e nas noites seguintes, ele perdeu o sono. Agitava-se na cama durante a noite, estava preocupado com o desconto na sua tão “querida” mesada. Então, chamei-o para uma conversa sobre o assunto. Lembrei a ele que, no passado, ele já se preocupara com coisas bem mais importantes e nunca perdera o sono. Citei a antiga história da Via Láctea como exemplo. De novo, para surpresa e emoção minhas, ele argumentou: “É, pai, mas para mim a minha mesada é mais importante do que a Via Láctea!...”



As lágrimas azuis

Uma vez por ano, o Juca desaparecia da Vila de Água Doce. Creio que ele ficava com o saco cheio de nós, os seus oito filhos, e dava-se um sumiço. Aproveitava qualquer briguinha banal com a minha mãe, aborrecia-se de brincadeirinha e sumia de casa por vários dias. Nos períodos em que ele ficava ausente, vagava livre e solto por lugares novos e distantes, era um homem absolutamente livre. Sentia-se livre como um passarinho.
Certo dia, quando retornou de uma destas misteriosas viagens, contou-nos que estivera em Brasília, tinha ido conhecer a nova capital do Brasil, que estava sendo construída por Juscelino. Virou uma espécie de herói na Vila de Água Doce. De outra feita, esteve no Rio de Janeiro e se assustou com a pobreza das favelas. Descobrira que os moradores da Vila de Água Doce eram felizes e não sabiam. Era sempre assim. Todos os anos a história se repetia. Depois de uns quinze dias de ausência, um pouco mais, um pouco menos, o Juca voltava para casa. Ao retornar, não dava satisfação a ninguém, nem dizia o que fizera. Queria apenas demonstrar que era um homem independente. Dona Francisca, minha mãe, já tinha se acostumado com aquelas fugas anuais do Juca. Nós, os filhos, até gostávamos quando ele sumia.
Durante as suas ausências, tocava-se regularmente o bar. A vida corria normal. Ninguém mais se afligia com suas escapadas. Da última vez, quando já se passara uma semana que ele tinha desaparecido, de repente chegou pelo ônibus um envelope pardo. Minha mãe reconheceu a letra do marido fujão e ficou apreensiva. Pegou a carta e foi ler no quarto. Alguns minutos depois, voltou sorrindo e nos mostrou o que lera. Tratava-se de uma mensagem do Juca. A carta viera de São Paulo, que, para nós, era um lugar tão distante e misterioso como a lua. Na folha branca viam-se três grandes bolas azuis, irregulares, feitas com caneta esferográfica e mais embaixo havia uma legenda, feita com a letra espaçosa, super conhecida, do Juca, explicando tudo: "Essas três manchas azuis foram lágrimas de saudade que eu derramei”.
Ninguém acreditou, claro! Eu, porém, que tinha apenas nove anos, fiquei impressionado com aquela imagem poética. Pensei que as lágrimas do Juca, meu pai, ficavam azuis porque ele estava longe de casa, por causa da saudade que sentia de nós. Hoje eu diria: truco!


Lavadeiras de Água Doce

O Ribeirão Bom Jesus era um riacho de águas límpidas que cruzava a Vila de Água Doce e passava bem nos fundos da minha casa. Naquele tempo, as suas águas eram puras, de se poder beber, de ver o fundo pedregoso. A areia branca se movia sobrepondo-se, arrumando-se devagar. Um grão brilhante rolava sobre o outro formando um tapete branco lá no fundo —eram milhões aparentemente parados, mas seguindo o mesmo caminho na direção do mar. Foi naquele rio que eu vi uma camisinha pela primeira vez. Estava inflada e presa num ramo submerso, agitando-se na força da corrente. Pensei que fosse uma bola de bexiga ou uma mini-biruta a sinalizar o pouso de aviões imaginários. Mas isto é uma outra história...
Na direção do nosso quintal, o rio fazia uma curva e formava uma extensa praia de areia. Minha mãe e outras mulheres iam ali para lavar roupas. Elas levavam grandes cestos cheios de lençóis, toalhas de mesa, calças e camisas dos filhos pequenos, enormes e feias cuecas dos maridos mandões. Esses preguiçosos ficavam em casa fumando e conversando abobrinhas, sem coragem para fazer um tiquinho de nada. Ao longo da praia fluvial era possível ver bacias de latão cheias de roupa já lavada e torcida, ladeadas por enormes troncos rachados ao meio que serviam de batedouro para alvejar a roupa. As mulheres pareciam ter sido feitas de mola, pois flexionavam o corpo e erguiam a roupa molhada bem acima da cabeça e depois, com força de gigante, malhavam o “biscoito ensaboado” sobre os troncos de madeira, espirrando espuma e água para todos os lados. De longe era possível ouvir o barulho gostoso —igual ao que produz um lenhador trabalhando no alto da serra. Elas diziam que batiam para alvejar a roupa, para que ficasse bem branquinha. Mas eu achava que tinham mesmo era raiva dos seus maridos, uns folgados, e se vingavam deles ali, batendo forte na roupa deles. Bem feito!
Nós brincávamos despreocupados na água limpa e rasa, não havia possibilidade de um afogamento. A preocupação maior das nossas mães estava voltada para os temidos cabritos, comedores de botões, e para os porcos famintos que freqüentavam o local. Os cabritos passeavam sobre as roupas postas a quarar e deixavam rastros bipartidos, amarelos, sujando as peças recém-lavadas e comiam os botões das camisas. Os porcos, por sua vez, apreciavam comer as aparentemente deliciosas barras de sabão. Não raro, um gordo suíno saía correndo, enxotado pelas valentes mulheres. O delinqüente suíno, sem nenhuma preferência culinária fugia medroso, ostentando no queixo uma enorme barba de espuma, resultante da barra de sabão que comera impropriamente pensando que fosse queijo. O terror maior das lavadeiras, porém, era a mamangaba, ou mangava (um tipo de abelhão peludo de barriga listrada de amarelo e preto, cuja picada é assaz dolorida). A mamangaba sempre gostou de morar nos troncos podres, exatamente naqueles batedouros de roupa, que eram tão necessários à profissão das lavadeiras. As vigorosas pancadas que elas davam na parte externa dos troncos irritavam os insetos lá dentro e eles saíam furiosos para se vingarem. Heróica e úmida comicidade —jamais me esquecerei dessas cenas molhadas e cômicas. As mamangabas, insetos extravagantemente grandes, acrescentaram valentia ao trabalho da minha mãe e aumentaram o meu amor por ela. A dona Francisca lavava roupa e ainda enfrentava cabritos comedores de botões e porcos comedores de sabão. Ela tirava de letra as picadas dos abelhões gigantes, enquanto o Juca, meu pai, ficava em casa fumando, dormindo ou pescando no Rio Preto com algum amigo seu, igualmente preguiçoso e vagabundo. Cada vez que me lembro dessas coisas, gosto um pouquinho mais da minha mãe.



Batatinha

Os mineiros gostamos muito de comer batata doce, que pode ser frita, assada ou cozida e pode ser também preparada em forma de um doce chamado marron-glacê. A batata inglesa não é muito comum de se encontrar no interior de Minas, que é conhecida por lá como sendo “batatinha”. O meu irmão mais velho, o Vavá, sempre foi muito doente e gostava de comer “batatinha”. Batata doce ele não apreciava nem um pouco. Volta e meia, a minha mãe fritava umas “batatinhas” só pra ele, salgadinhas e exclusivas. Nós, os outros sete irmãos, sentíamos o cheiro gostoso da fritura e ficávamos rodeando e salivando perto do fogão. Mas era inútil o nosso apelo: as “batatinhas” eram poucas e todas destinadas ao Vavá. Quando a minha mãe adoeceu para morrer, ainda jovem com apenas 39 anos, foi internada na santa casa de Mantena, uma cidade que ficava distante, a uns quarenta quilômetros da Vila de Água Doce, aconteceu que eu já tinha treze anos e estava de malas prontas para vir embora para Barra do Piraí,RJ, onde o meu outro irmão tinha arrumado um emprego de garçom para mim.
Eu só aguardava carona de algum caminhão para partir. E foi exatamente nesses dias tristes que surgiu uma carga de café para o Euzébio levar ao Rio e eu segui com ele. Antes, passei por Mantena e fui ao hospital despedir-me da minha mãe. Foi tudo muito triste e eu nunca mais me esqueço daquele dia. Ela estava sozinha, branca e magra como sempre, perdida numa enfermaria imensa. Acho que adivinhou que eu estava indo embora e pressentiu que nunca mais me veria. Minha mãe chorou quando me viu —e aquela realmente foi a última vez que nos vimos. Nunca mais vi a dona Francisca com vida.
A visita não podia demorar e fiquei com ela pouquinho tempo, por aproximadamente meia hora. Conversamos coisas bobas, triviais. Falei pra ela que o Juca andava nervoso e não tinha paciência para cuidar de nós, os filhos. Ela já sabia disso, conhecia bem a “peça rara” do marido e esboçou um leve sorriso. Na hora de me despedir dela, minha garganta doeu, tive vontade de chorar. O motorista Euzébio estava esperando impaciente para iniciarmos a longa viagem até o Rio de Janeiro. Apoiei-me na cama macia, dei um abraço bobo nela e fui saindo devagar —como se estivesse amarrado por corda invisível—, e atravessei a longa enfermaria em direção à porta. Embora ela estivesse muito doente, quase morrendo, minha mãe só pensava nos filhos. Na saída ela ainda me disse, talvez para disfarçar a imensa tristeza: “Se você se lembrar, mande um quilo de ”batatinha” para o Vavá... ele gosta muito...”
Não olhei para trás, não tive coragem. Segui ouvindo seus soluços tristes e abafados, contidos por uma educação que só ela sabia ter, ao longo do interminável corredor que me levaria à porta. Peguei a minha mala (uma vergonhosa mala de fibra, com cantoneiras de metal), e parti. Fui embora para encarar a nova e incerta vida. Sei que eu devia ter olhado mais uma vez pra ela, acenado com a mão, dado um beijo nela, mas não olhei nem acenei e até hoje me arrependo disso. A verdade é que nunca mais vi minha mãe com vida. O choro triste e doído da dona Francisca, a “batatinha” do Vavá que nunca lembrei de comprar, jamais me saíram da memória. E, ainda hoje, quando sinto cheiro de batatinha frita, lembro daquele dia triste e choro. Até um dia, mamãe!


Bicho-de-pé


O bicho-de-pé é uma espécie de pulga que penetra sob as unhas dos pés dos meninos. Ao entrar na pele, aloja-se silenciosamente no calcanhar ou nos vãos dos dedos dos meninos que brincam descalços nos quintais ou que vivem fazendo artes ao redor das casas pobres. São muito comuns também nos areais da beirada dos rios. O nome científico do bicho-de-pé é “tunga penetrans”. Muitos “tunga penetrans” entraram no meu pé quando eu era pequeno, isso no tempo distante dos meus oito ou nove anos. Eu não tinha nenhum medo do bicho-de-pé, pelo contrário, até gostava da sua coceira aquecida, da sua atividade febril penetrando em mim. Meu dedo, recém infectado, ficava vermelho e levemente entumecido. Era uma gostosura.
Eu já fazia de propósito. Volta e meia me metia sob a velha casa onde morava, na Vila de Água Doce, apenas para “pegar” um bicho-de-pé. A enorme casa da minha infância pobre era feita de pau-a-pique, uma espécie de palafita mista de madeira e alvenaria. O assoalho e as paredes eram suspensos por enormes baldrames de madeira rústica que se encaixavam em esteios quadrados, que prosseguiam em direção ao céu, para receber num pé direito alto as vigotas que sustentavam a gaiola do telhado. Sob a casa, havia um grande espaço, uma espécie de vão suspenso, coberto por um tapete de areia fina onde eu brincava solitário. Eu me divertia naquela praia exclusiva, às margens de um mar imaginário, somente meu, igual a um outro que diziam existir, mas que eu nunca tinha visto. O porão era um lugar fresco e tranqüilo. Ali era a pátria ideal e sagrada dos porcos domésticos, das galinhas e dos meus bichos-de-pé. Hoje tudo é diferente, tudo mudou. No passado das Minas Gerais, no meu tempo de menino, não havia essa liberdade de pai e mãe beijarem ou abraçarem os filhos. Era tudo muito distante e solene, havia muito respeito. Por isso é que eu digo que não tive infância, apenas fui menino. Nunca beijei minha mãe, nem me lembro de ter recebido dela um beijo, um abraço. Mas eu era esperto e usava o “bicho-de-pé” como desculpa para me aproximar dela e receber seu calor. Quando sentia necessidade de ganhar um carinho dela, de receber um toque da sua mão, eu me metia sob a casa e ficava lá durante horas, até que um ou mais bichos-de-pé grudassem em mim. Depois, era só entrar na cozinha e me queixar pra ela, resmungando que “desconfiava” que tinha um “bicho-de-pé” no meu pé...
Acho que ela já sabia da minha malandragem, mas pedia para ver se era verdade e examinava cada um dos meus dedos, detalhadamente. Não tinha falha: o “bicho” estava lá exercendo a sua função, penetrando bem fundo num dos meus muitos dedos e vãos. Então a dona Francisca me fazia deitar sobre o banco comprido de madeira que havia ao lado do seu velho fogão de lenha e puxava os meus pés para o seu colo. Esses momentos eram de delícia. Eram longas sessões de carinho indireto que eu tanto amava, que eu tanto precisava. Confesso, envergonhado, que minha mãe nunca me beijou, mas foi graças aos “bichos-de-pé” que ela me acariciou muitas vezes. Jamais me esqueço disto, mas só me arrependo de uma coisa: de nunca ter perguntado a ela se também não gostaria que eu lhe “tirasse” alguns bichos do seu pé, branquinho e macio.
Desculpe, mamãe.





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