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Infantil-->O Pequeno Peregrino E Outros Contos -- 03/10/2001 - 15:27 (João Barcellos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O PEQUENO PEREGRINO
e outros contos









literatura infanto-juvenil

JOÃO BARCELLOS






livro I


Os contos de João Barcellos destinam-se ao
universo infanto-juvenil,
e tratam da integração do Ser Humano
com a Natureza (in O Pequeno Boiadeiro) e
a eterna vigilância sobre quem quer destruir o
paraíso Terra. Da alegria da descoberta
de um talento (in O Poetinha e a Lua) em meio às
raizes populares da poesia e da música; e da solidariedade
(in O Menino e o Espantalho) que aproxima
os jovens e os velhos na mais antiga lição
de amizade que se conhece, à religiosidade
espiritual que nos acompanha
(in O Pequeno Peregrino), eis o Escritor.
São textos breves mas os conteúdos
são fortes aquarelas inspiradas na cotidianidade e
trazem, em cada imagem, o sabor da Vida.
Passar a mensagem da Vida aos jovens sem lhes ditar
caminhos que não os seus, é o que
valoriza estes trabalhos de João Barcellos,
coligidos sob o título O Pequeno Peregrino
e Outros Contos.

Mário Castro, escritor/jornalista
Rio de Janeiro, Brasil


*
Existe nestes contos uma Humanidade
tão verdadeira quanto o Ideal solidário
do ecólogo e escritor português João Barcellos,
um Ser que vive a própria Terra!

Tereza de Oliveira, poeta/artista plástica
Paris, Fr.









O PEQUENO BOIADEIRO




Ela sempre aparece aí pelo meio-dia. E todos os dias, por essa hora, ele deixa o convívio dos bois e das vacas e corre para fora do pasto até o riacho da casa do sítio velho.

Caíu muita chuva durante a madrugada. Agora, o sol aquece o fim da manhã.

O pequeno boiadeiro vê que está tudo em ordem... Corre descalço, como só ele gosta de correr. Nunca os seus pés tiveram outro conforto além do pó da terra. Os seus olhos estão cheios de uma natureza bonita. As calças, com vergonha dos pés, são curtas e estão seguras por uns suspensórios feitos de barbante; não usa camisa, só a boina que um soldado lhe deu há dois anos.

Chegando perto do riacho, ele toma precaução. A margem está escorregadia. Desce. Puxa o bote pela corda que o prende, salta para dentro; balança, e logo senta-se com a alegria de mais uma vitória do seu querer viver.

- Eia! Eia! - gesticula ele, e grita, e agita a boina. É só alegria.

Está empolgado. Mas agora tem de se segurar com energia que o bote está balançando muito. - Eia! Eia! - grita ele, novamente.

Ouve-se um som forte. Um esvoaçar entre as copas das árvores. E logo, os outros sons da natureza a par do murmurar das águas que beijam o casco do bote.

Uma capivara espreita na margem, fugidia.

- Eia! - e ele já não grita. Suspira. Ri de orelha a orelha o pequeno boiadeiro. Uma arara, em adejo lento e seguro, acaba de surgir entre as copas e vem pousar, graciosa, tão cheia de vida quanto o pequeno boiadeiro, na proa do bote.

É ela, a arara amiga.

Que se deixa acariciar. Momentos de muita ternura. De muita alegria. As cores quentes da bela exuberância tropical se deixam seduzir pela alegria da amizade e do amor de um menino do campo.

- Eia!, eu e você somos livres, livres como o gado!

Ela pula para as mãos dele. Com um impulso firme, seguro, ele a faz tomar o rumo do céu num vôo lindo, fabuloso. - Vai, vai Eia! - grita ele, de pé, no meio do bote. Com as mãos desenha no espaço a graça do vôo da amiga arara.

A inocência, a alegria, e a natureza.

O paraíso.

Súbito... Um som diferente assusta a natureza. O menino sente o coração dar um pulo. - Ai, que foi... Ele olha para todos os lados, desconfiado, perplexo. E torna a olhar para a direção que a arara tomou. E nada. Nada.

- Eia! Eia!

Tão subitamente como aquele som medonho, ele vê surgir um homem na margem do riacho. Um homem que ri. Tem uma escopeta nas mãos. O pequeno boiadeiro olha, atento. O homem baixa-se para pegar em algo. E o menino vê que aquele algo é ela, é Eia!, a sua amiga arara. - O homem ri porque matou a minha Eia! - fala ele, baixinho, a medo.

E logo ouve: - Uma boa nota vai dar pra mim este bichinho tão cheio de cores, ó garoto!

Em sua inocência, o pequeno boiadeiro nada pode fazer. As lágrimas jorram dos seus olhos...

- Ah!, solta ela, solta ela. Deixa Eia! viver... - ele notou que a arara estava viva quando o homem, rindo, pegou nela.

- Ah, ah,ah, garoto chorão! - grita o homem sem deixar de rir.

O pequeno boiadeiro dirige o bote para a margem e logo está correndo atrás do homem. - É bandido! É bandido! - grita, pedindo ajuda. Vê que um jeep vem do casarão da fazenda e faz sinais.

- É a mulher do patrão, a patroinha! - diz para si mesmo. Quase ri, também. O aparecimento da mulher é um sinal de ajuda, de esperança para Eia!

Faz sinais, agita a boina. - Aqui, patroinha, aqui! - E quando ela faz parar o jeep, ele informa: - O bandido leva a minha Eia!, patroinha.

Já um pouco distante, o homem continua a sua caminhada com a arara debaixo do braço. A patroinha não entende o que fala o pequeno boiadeiro. - Garoto, quem é Eia? - quer saber.

- A minha arara amiga, patroinha!

- Ah!, entendi. Salta pro jeep, vem!

Em instantes, ela dirige o jeep na direção do homem da escopeta. - É ele, é o bandido, ó patroinha. E ela mexe, ela mexe...tá viva a Eia!

- Como você vem caçar na minha fazenda?! - diz ela, indignada, para o homem que se vê apanhado em flagrante. Ele nem fala. - Entregue a arara pro garoto! - ordena ela, decidida.

O pequeno boiadeiro recebe a ave ferida. O homem não quer conversa e logo corre para a mata com a certeza de que perdeu um bom negócio. - Por que você não vai embalsamar a sua mulher, bandido?! - grita a patroinha de olho no homem que acaba de desaparecer na mata.

Sem prestar atenção em mais nada, o pequeno boiadeiro toma conta de Eia!, a sua amiga.





Um mês depois do incidente com o homem-caçador, o pequeno boiadeiro ganha novas roupas, botas e chapéu.

Agora sim, é um boiadeiro de verdade! - diz a patroinha com um sorriso que encanta o menino, enquanto acaricia Eia!

Momentos depois, os dois soltam Eia! na natureza. Com a ajuda do veterinário da fazenda, conseguiram salvar a arara.

Agora, o pequeno boiadeiro não está mais sózinho. Em algumas manhãs, na beira do riacho, tem a companhia da patroinha que, por causa daquele incidente, redescobríu o paraíso de viver no campo.

- Aquele bandido vai tentar de novo, patroinha?

- Talvez tente - diz ela. - Talvez tente. Este mundo é mau, garoto. Mas é a gente moça como você que vai mudar tudo, que vai salvar os paraísos...

- Eia! Eia!, ó, lá vem Eia! patroinha - anuncia ele.

Voando tranquilamente, a arara faz círculos graciosos saudando os amigos que não se cansam de lhe observar aquele agitar de cores e mais cores.












O POETINHA E A LUA






A noite está calma.

Depois das chuvas, que mais pareciam um mar caindo dos céus e avançando casas dentro, ainda não apareceu um dia de sol. Assim mesmo, um dia de sol como qualquer carioca que se preze gosta de viver...

Os moleques sonham: amanhã vamos soltar pipa.

Todo o morro ficou um caos. Famílias ficaram sem casa e foram alojadas no velho galpão da escola de samba.

Euclides, filho do dono do bar do morro, tem doze anos, e todos o chamam de Cli. É o Cli do morro. Por causa da tragédia, Cli foi com o pai para o galpão.

Ele observa as construções gigantes que irão acompanhar os sambistas no desfile carnavalesco. É um encanto.

Súbito, os relâmpagos e os trovões acontecem novamente. Ele senta-se numa bancada onde há ferramentas de carpinteiro, papéis, um pequeno quadro negro e muito giz. Ao levantar os olhos do chão fica deslumbrado. Puxa o quadro negro e, com um pedaço de giz, tenta fazer uma cópia da lua de papel que o encantou. Ainda não terminou o desenho e já se sente cheio de ternura pela lua do céu que ainda não apareceu entre as nuvens. E escreve ao lado do desenho


Não fiques triste,
ó lua linda,
vê como és linda!

A emoção faz ferver o sangue de Cli. Sente o rosto se avermelhar. Imagina a lua sorrindo entre as nuvens e querendo fugir delas, como aquela lua de papel quer fugir daquele canto do galpão para dançar entre as estrelas do samba.

Vem
cantar comigo,
que o sol vai ficar feliz
dormindo em ti.

Não fiques triste
ó linda lua,
vê como és linda!

Vem
bailar comigo,
que a noite é banda feliz
só pra ti!

Ao lado da lua desenha um boneco que dança com ela no pátio da igrejinha do morro.

Cli já tinha escrito uns poeminhas na escola, mas nunca escreveu um poema para alguém. A turma considera ele um gênio: é o melhor nas palavras cruzadas, e na redação...aí, ninguém bate o Cli. Já venceu até um concurso. - Pai, ganhei um livro de contos e um diploma. Fiquei em primeiro lugar no concurso de redação! - exclamou ele, ao chegar em casa naquele dia. O pai ficou muito orgulhoso pelo sucesso de Cli. E todo o morro ficou sabendo.

Está extasiado. Oi lua!, és a minha primeira namorada..., disse para si mesmo. A alegria de se sentir capaz de escrever um poema assim deixa-o mais vermelho ainda.

Um raio maior faz desligar a energia e tudo fica na escuridão.

Menino do morro, Cli nem quer saber: o seu pensamento é uma usina - e está fabricando poemas para a lua...

Os gritos de outros desalojados tiram Cli do êxtase. Do outro lado, uma parte do galpão desaba. A chuva, que estava miudinha pra espantar tôlos, como sempre dizia a sua avó portuguesa, engrossa e torna a inundar tudo no morro. E o galpão parece uma ilha da fantasia com os bonecos e as grandes esculturas carnavalescas boiando sem direção.

Sem o saber, ele está isolado dentro da oficina do galpão. Na sua frente surge um reflexo de prata, e outro, mais outro.

- Ai não, não! - grita.

Súbito, Cli se vê obrigado a um equilíbrio em cima da bancada. As águas invadem a oficina.

Parece um dilúvio.

A lua de papel, que ao cair e flutuar faz reflexos de prata, parece que vai se desfazer na corrente. De pé, na bancada, Cli pensa em dar uma ajuda e tirar a lua daquela aflição. Mas tem outra idéia quando, de repente, a energia retorna: pega o quadro negro e o giz, e escreve

Vem,
foge comigo,
vamos no traço do giz
por aí...


Com cuidado, pula da bancada e fica com água pela cintura; consegue ainda chegar junto da lua. - Ai, que peso! - exclama ao agarrá-la. É de papel, sim, mas está entre armações de alumínio e madeira. O esforço de Cli é grande mas tem, agora, a sua querida lua nas mãos. Como um náufrago vai se aproximando da bancada salvando a lua de papel.



Com o rosto colado na sua paquera carnavalesca, Cli é só emoção. É pura magia no querer viver a sua emoção. E diz, quase cantando

Somos alguém.
Eh, não sejas por isso,
estamos por um triz
juntos aqui.

Não fiques triste
ó lua linda,
vê como és linda!

rematando, assim, o poema que iniciara. Indiferente à confusão, à gritaria que reina em torno do galpão, ele pega o giz e escreve no pequeno quadro negro aqueles versos.

A chuva parece querer dar uma trégua. Já não cai com aquela pancada doida, e em breve torna a ser aquela chuva miudinha pra espantar tôlos. Não apenas as gentes do galpão, mas todo o morro e o Rio de Janeiro respiram de alívio. Por alguns "radinhos de pilha" ouve-se que Petrópolis foi arrasada pela chuva e os deslizamentos de terra. Que o Rio, a cidade maravilhosa também está sofrendo com os deslizamentos.

Euclides, o Cli, gosta de escutar o mestre pagodeiro criar as canções bonitas que canta lá no bar do morro. - Ai, mas eu também sei! Eu também sei! - diz, olhando para a lua.

A luz do triunfo está no seu olhar. Decide mostrar os versos a seu pai, e depois ao mestre pagodeiro, que ele sabe, já puxou até samba-enredo no Carnaval do Rio... Encontra papel e lápis numa das gavetas da bancada e copia o poema que escreveu no quadro. Dobra o papel e guarda-o no bolso de trás das bermudas. - É ruim, hein! - exclama. Percebe que está com as bermudas encharcadas e leva o papel na mão. Vai por entre os destroços e as poças d água ensaiando uma melodia para o seu poema à lua. - Que vai dizer o mestre pagodeiro? - questiona-se.

Depois de mais um susto, as gentes do morro preparam-se para retomar o já difícil cotidiano da sobrevivência.

A noite está calma, de novo.

Cli busca o pai e fica sabendo que ele, com outros amigos, foi ajudar uma família na outra banda do morro onde mais terras deslizaram. Mas encontra o mestre pagodeiro. Tímido, o rosto afogueado, ele pede: - Mestre, pode dar uma olhada neste poema?

Uns minutos depois, e tendo olhado várias vezes para o jovem amigo, o homem do Pagode exclama: - Ôba, poetinha!

O mestre pagodeiro abraça Cli. Está radiante, surpreendido com os versos: - Cê escreve como gente grande, Cli!

Era tudo o que Cli queria ouvir. Mais nada. Só a palavra de aprovação do mestre das canções do Pagode.

Os olhos dele brilham na noite como viu brilhar a lua de papel, a sua sofrida musa inspiradora.

Não demora muito, a cabeça encostada num bombo e abraçando uma cuíca, Cli adormece entre mil e tantos sonhos de sambista na alegria do carnaval que sempre acontece.


















O Pequeno Peregrino


Iago é um menino que gosta de caminhar. De ir pelas ruas do bairro, atravessar pontes, olhar as águas; de ir ouvir as bandas no coreto da praça onde elas tocam aquelas coisas que lhe dizem de bailaricos, de festas.

É assim o Iago, um menino brasileiro de São Paulo.

Ele vive com a avó Tereza a quem chama carinhosamente de Tê. O avô morreu há muito tempo e os pais desapareceram durante uma guerra, entre bombas e mais bombas, no norte da Espanha.

- Detesto as guerras! - aprendeu ele a dizer após tomar conhecimento daquele bombardeio que vitimou os pais. Duas das bombas cairam sobre o hospital onde prestavam solidariedade às vítimas da Guerra Civil. - Detesto as guerras!, são coisas que destróem a Terra, destróem a Vida... Oh Tê, inda um dia acabam com as plantas, com as frutas, com os animais, com os peixes, oh Tê, inda um dia a Terra e nós seremos uma coisa igual a nada!

- Que nada Iago, você é o meu anjo da guarda - respondia a avó.

- Tê, papai e mamãe foram fazer aquele caminho...

- ...caminho?! - Tereza fica olhando para ele.

Diante da cara de espanto da avó, Iago recorda: - Sim, aquele caminho que a senhora me falou lá em Fátima. Aquele, como é?... ah!, o Caminho do Peregrino. Lembra, Tê?

- Ah, o de Santiago de Compostela... É na Espanha, meu anjo.

Tiago tem doze anos. Quer saber tudo sobre o tal Caminho do Peregrino. Sempre que lê matérias ou vê fotos sobre guerras, em jornais, revistas, noticiário de televisão, o tal Caminho do Peregrino desperta em sua mente: a imagem dos pais, que só conhece pelas fotos preto e branco guardadas pela avó, surgem brincando em vivências carinhosas. - Parecem espíritos vivendo em mim!- explicou um dia para a avó. - Espíritos?! Onde você aprendeu isso, meu anjo? - quis saber ela. - Na escola. Uma menina mais velha disse para mim que existe Vida depois da Morte, que os entes mais ligados a nós sempre estão conosco em Espírito, vó Tê!... - respondeu. Momentos depois ela sorria. - Tá, meu anjo, é assim que papai e mamãe aparecem na sua imaginação. Na verdade, o que é o Ontem?, o que é o Amanhã?, se o que interessa é que sentimos Hoje? Fico muito feliz, Iago, em saber que você sente seus pais...

Avó e neto estão viajando pela Europa. Acabam de visitar a bela Catedral de Notre Dame, em Paris, que ela, como artista e crítica de arte, conhece muito bem pelas temporadas que passou, principalmente, entre os refugiados no Quartier Latin.

Ela lembra, falando com os seus botões, que conversou com Iago sobre Santiago de Compostela depois de terem visitado os santuários de Aparecida e Pirapora, no Brasil; e que no santuário do Bom Jesus de Braga, no norte de Portugal, tornou a falar sobre aquela localidade da galega. Parece-me que o que está interessando mais a meu neto é a descoberta Espiritual e não os caminhos em si. Que bom, diz para ela mesma.

Já a cidade de Paris estava muito longe quando Tereza, em meio a um gole de refrigerante servido por uma bonita rodomoça, decide adiantar algo chamando a atenção do neto: - Mamãe e papai eram seres solidários no meio da triste solidão das vítimas vivas causadas por balas de metralhadoras ou bombas. Gente boa, como já falei para você, meu anjo. E você nasceu em meio a essa Solidariedade humana, essa Espiritualidade que era neles uma força grandiosa. Ainda puderam olhar você, viver a Felicidade com você nos braços, Iago. Um dia, enquanto você estava aos cuidados das enfermeiras e dos médicos em descanso de plantão, mamãe e papai ficaram sob os escombros de uma enfermaria atingida por bombas...

- ... ai, não sabia que eles ainda viveram comigo!

- Sim, meu anjo. Isso o Terror não tirou deles... Tinham uma grande Espiritualidade, tão grande Espiritualidade que viviam o dia a dia na sua plenitude. Decidiram, porque eram médicos, fazer o Caminho do Peregrino e ajudar com muito Amor as vítimas da Guerra Civil.

- Então, vó Tê, é por isso que eu gosto tanto de caminhar. Engraçado... e quando aquela menina, lá na escola, falou para mim dos Espíritos, parecia que ela estava falando de papai e de mamãe.

- Sim, creio que sim.

No céu há nuvens que significam chuva certa, mas o sol está raiando ainda, e a brisa do meio da tarde é pouco fria.

Lá na cidade de São Paulo, a grande metrópole brasileira, o pequeno Iago adora caminhar nos parques públicos, de sentar e ouvir as bandas tocarem aquilo que ele chama de música da alegria. E sempre com a avó por perto. Mas quando corre sozinho nesses parques a imagem de bombas e mais bombas abrindo buracos e matando sobrepõem-se a tudo o resto; aí, logo procura uma banda, ou aproxima-se de um rádio portátil. - Ai, Tê, quanto tem banda não tem bomba nem tem terror! - sempre desafava ao chegar em casa. O discurso habitual. Um dia vou levá-lo a percorrer os mesmos locais que os pais conheceram, até Santiago de Compostela, decidiu. Pensou: vai ser remédio em dose certa!

O ônibus luxuoso atravessa cidades antigas, ruinas, prados, rios, bordeja o mar, planícies e montanhas. É o sul europeu.

- Que bonito, Tê!, olha os campos cheios de trigo. Tanto trigo. Oh, tão de oiro... - Iago está fascinado.

As nuvens parecem quer chorar, também, de tanta alegria, lá entre o Sol e a Terra, Poucos, caem algumas gotas. Quando o ônibus, já na Galiza, chega junto de uma cidade antiga, desembarcam. De braço dado com a bonita avó, ele segue deslumbrado. Sente-se um príncipe encantado passando pelas arcadas de pedra tão antiga quanto o mundo que aprendeu a gostar vendo-o em fotos de revistas e enciclopêdias. - Vê, meu bom Iago. Vê! - exclama Tereza. Aponta para um edifício grande, belo, imponente.

- Que bonito, Tê! - Iago fica olhando. Um olhar grande, brilhante.

Tereza ajoelha junto dele. Beija-lhe as faces rosadas de tanta emoção. - Ali - e ela aponta mais uma vez para o edifício -, meu bom Iago, filho de meu filho, é a Catedral de Santiago, um ponto de passagem do Caminho do Peregrino...

Passam alguns segundos até que ele, olhando para Tereza, diz: - Não, vó! Eu nasci aqui, papai e mamãe deram-me o nome Iago... se eu entendo a Espiritualidade que a menina explicou, isto aqui não é o ponto final... não, é o início de uma Vida!

- Meu anjo, você é como seus pais.

- Sou como eles, agora eu sei: sou O Peregrino.

- Ai, meu pequeno peregrino! - exclama Tereza com um sorriso umedecido com algumas lágrimas que rolam no seu rosto.
























O MENINO E O ESPANTALHO


1

De repente. Assim mesmo, muito de repente, apareceu um velho lá de entre as bananeiras.

Um velho maltrapilho.

O menino, que olhava as aves bicarem os frutos, assustou-se ao ouvir a aproximação de alguém. Seus olhinhos se abriram muito, sentíu o corpo tremer e uma tremenda comichão nos cabelos.

- Oi! - ouviu ele, enquanto o velho lhe surgia na frente como uma coisa do outro mundo.

Não é possível! Não, não é verdade!, que espantalho não fala nem anda!..., pensou o menino com os olhos vidrados no velho.

- Oi! - repetiu o velho. E sentou numa pedra, rindo.

Os olhinhos do menino estavam fixos no maltrapilho sentado na sua frente. Bem na sua frente. E rindo. O susto não o deixava ver nada, quanto mais ouvir...

Com um sorriso de orelha a orelha, grandão mesmo, o velho levou uma mão à cabeça do menino e afagou-lhe os cabelos. - Êta, bichinho bonito. Tu tem nome, tem? - quis saber.

Sentindo a mão do velho em sua cabeça, o menino piscou, ficou mais nervoso, mas não com tanto medo.

- Ah!, ah!, ah!... - ríu o velho, sem deixar de lhe afagar os cabelos.

Engolindo em seco, o menino pareceu ganhar confiança em si mesmo; respirou fundo enquanto piscava os olhos, já com menos intensidade, assim como quem acorda de um longo sono. - Tu não é espantalho, não?!

O velho, não querendo acreditar naquilo que ouvira, soltou uma gargalhada que ecoou entre as bananeiras e silvou mata adentro. Meteu as mãos nos bolsos de um casaco que era um farrapo e tirou duas bananas prata. - Ah, então é isso!... - exclamou ele, aliviado. Era como se estivesse pensando em voz alta. Ao tirar as bananas percebeu que estava cheio de folhagem do campo de trigo, principalmente nos mil buracos do seu chapéu de palha.

Que bom. Não é, mas até que podia ser um espantalho!, pensou o menino. Mirando o sorriso aberto do velho, ainda sentado na sua frente, disse: - Eu sou o Carlos, seu...

- ...seu Bento, viu! - completou o velho, que continuou: - O meu nome, bichinho, é Bento. Olha - ele faz um gesto largo com as mãos, a cabeça levantada em todas as direções -, olha só, bichinho, nós somos os reis deste ar, desta roça que roça a cidade. Ah, olha, lá está o bem-te-vi. Olha, olha como ele saúda a gente...

- Primeiro, pensei que fosses um espantalho que anda e fala, seu Bento.

- Ora. Êta!, bichinho bôbo... d agora em diante te chamo de Carlão, tá. Tive um filhão que eu chamava assim...

O menino, vendo que o sorriso desaparecia do rosto do velho, quis saber: - Que foi, seu Bento?

- Nada não. Nada - disse ele, oferecendo uma das bananas.

- Como nada, seu Bento?! - o menino parecia ter perdido o medo. Já sorria para aquela figura bizarra, esfarrapada e mal cheirosa. - Nada, seu Bento? - repetíu ele.

- Êta, bichinho, tu acordou mesmo! - disse. E continuou: - Sabe, o meu Carlão era assim um neguinho forte com ocê. Bonitinho, até. Mas aí...


- Aí, o quê?

- Aí veio a fome, sabe - dizia ele, gesticulando como que a desenhar no ar as palavras. - O agreste é coisa grande, grande mesmo, de perder de vista. E foram cinco anos sem pingo de chuva. O agreste ficou sem nada pra dar pra sua gente. Teve um escritor que escreveu (eh, me disseram, qu eu mesmo não sei nem ler...) que a gente do agreste é gente forte. Pois é, mas também morre. Tu sabe...e até o gado minguou, que dava dó só d olhar pr aquele pasto queimado de tanto sol. E o meu Carlão se foi tal e qual aquele gado...

Carlos olhou em redor. Ao fundo da roça dava para ver, ainda, parte de alguns arranha-céus da cidade grande lá no vale. - Minha vó Sinhá diz que lá - e apontava para a cidade - ninguém morre de fome!

- Cabeça boa a tua, bichinho. Ouve - o velho puxou o menino para um abraço como se fosse seu filho -, ouve: é que ninguém quer saber das terras que ficam lá longe. Ninguem quer saber do agreste. Só pra fazer filme e novela de televisão, eh!, ou pra político botar discurso. Só pensam na cidade grande, por isso, os meninos e as meninas do agreste morrem de fome, não crescem, e os pais fogem pra favela do Rio e da Sampa...

- Então, seu Bento - o menino parecia falar pensando alto -, o sô veio aqui na roça da vó Sinhá pra roubar banana prata e matar a fome?

Rindo, o velho cruzou as pernas em grande estilo, mostrando um pé enorme e enlameado, e novamente abraçou Carlos: - Olhe aqui, Carlão, eu não roubei, só alimentei o meu corpo pra poder seguir viagem pró agreste!

- Ah...

- ... é isso mesmo, viu. Lá é a minha terra, é lá que está o pó da minha vida.

- O pó?! - o menino não entendeu muito bem.

- Sim - riu o velho. - O pó, a saudade. Tudo aquilo que nós somos tem tudo a ver com a terra onde nascemos.

- Então, se vó Sinhá perguntar quem roubou as bananas eu digo que foi o espantalho dos pássaros...

- ...isso, êta bichinho malandro!

- E quando ocê vai embora?

- Quando o sol nascer, amanhã.





2


Um vento leve levantava o cheiro da terra. Algumas nuvens negras ameaçavam chuva. - Vai chover! - pressentiu o velho. E dito isso desapareceu entre as bananeiras. Assim de repente, tal qual surgira.

Carlos ficou pensando como seria a noite do homem do agreste. Se chover ele vai nas águas de barro e cobra pode picar... Mas ele foi sem dizer nada. Ainda olhou para a pedra onde ele estivera sentado. Tornando para casa, Carlos assoviava uma marchinha que ouvíu a banda militar tocar algumas vezes.

Chegando em casa, viu a vó Sinhá e logo recordou a história de Carlão. Pensou um pouco, e questionou: - Vó Sinhá, por que morrem tantos meninos e meninas no agreste?

A senhora ficou pensativa. Tinha muita idade, uma pele morena e cabelos grisalhos muito encaracolados. Olhou o neto e, instantes depois, respondeu: - Ninguém quer saber do que está pra lá das cidades. Nada, meu neto. Agora, por causa disso, a favela virou o agreste no meio da cidade grande. Eh, lá no agreste morrem de fome, e aqui, na favela, morrem na boca-do-fumo ou no fogo das armas, viu!

- Mas tem quem retorna lá pró agreste, vó Sinhá?

- Sim, os que amam a terra. Mas... - intrigada com as perguntas do neto, ela resolveu encarar uma súbita suspeita: - O que há cm ocê, moleque?!

- É por isso que a gente vira, assim... espantalho!, espantalho da cidade grande. É por isso! - e em automática reação às palavras da avó abriu os braços, qual espantalho, e correu para o seu quarto.

A senhora ficou mais pensativa ainda: - Que será que este moleque andou aprontando?...



3


Passavam poucos minutos das seis horas da manhã. E seu Bento, que entretanto falhara na sua previsão de chuva e dormira com os irrequietos vaga-lumes, apareceu lá entre as bananeiras tomando a vereda que ligava à estrada grande.

- Seu Bento... Ei!, seu Bento...

O velho parou. Abanou a cabeça e olhou para trás: - Oi!, oi bichinho madrugador.

Era o menino que, respirando com dificuldade depois da corrida, estava irradiando alegria por ter conseguido chegar a tempo de encontrar o velho ainda na roça.

- Oi, seu Bento!

- E aí, Carlão...

- Nada não, seu Bento. Vim trazer - e estendeu-lhe uma sacola de plástico - isto pra ocê, viu. Tem bananada da vó, tem pão, tem laranjas, viu. E tem um dinheirinho do meu porquinho de barro...

- ...?! - o velho estava perplexo.

- Já que ocê vai lá pró agreste, eu não quero que o seu Bento fique mais de espantalho por aí, viu! E quando chegar lá dê uma reza por mim ao Carlão. Agora vá, vá...!

- ...?! - o homem do agreste, emocionado, não teve nem forças para chorar ou agradecer ao menino da roça. Tomou de novo o seu rumo. - Adeus, ó pequeno-grande homem - disse ele, murmurando. O que o menino não ouviu.

Carlos, vendo-o já longe, levantou uma mão num adeus prolongado.




































livro II






Nestes contos, do também poeta e pesquisador
João Barcellos
que se iniciou na literatura infanto-juvenil em
Contos Para Todos (SP, 1995, esgotado),
encontramos a emergência ecológica, quer no nível
estritamente humano
quer no desenvolvimento de uma
mentalidade social caracterizada na compreensão dos sistemas
naturais que nos rodeiam (in O Perfume de Lú, As Pintas
da Samambaia e A Horta da Escolinha). E sabendo-se
que a Terra nos dá o que soubermos aproveitar
dando como troca a pura Humanidade,
nestes contos verificamos o encontro cultural
da criança com o seu meio - a Terra, que tanto a faz viver
a Família como a naturalíssima aprendizagem
sobre as coisas desta Terra, de onde sobressai o Amor.
É a palavra Fraternidade vestida de Cultura. É a escrita
da Terra - e, aprende quem quer aprender...

Joane d Almeida y Piñon, física
Buenos Aires, Arg.










AS PINTAS DA SAMAMBAIA




Alice é uma menina muito, mas muito bonita, e sempre sorridente. Mas, também, muito quieta.

Mais parece uma flor. Uma boneca, talvez.

Tem cinco anos e está aprendendo a tocar piano. Todas as tardes de sábado, em sua casa, ela recebe o professor - que, na última aula, anunciara estar a menina indo muito bem, quase uma artista...

Além de músico, ele é um apaixonado pelas coisas da natureza. Sempre que pode fica observando o desenvolvimento das plantas, dos animais, ou dedilhando o violão no pátio de sua pequena chácara.

No meio de uma aula teórica, a tarde estava quente e úmida, ele olha para Alice longamente, e depois para uma planta que viu, além da varanda, agitar-se na brisa.

- Alice - diz ele -, você já viu as pintas de uma samambaia?

Perplexa, a menina não responde. Estamos em aula de música ou de plantas?, perguntou-se quase no mesmo instante. Tímida, olha para o professor e questiona:

- Pintas?, na samambaia?!...

- Pintas, sim! - confirma ele, rindo. - Vem!

E leva Alice pela mão até o outro lado do salão, que na família chamam de salão-do-piano.

- Pintas?!... - torna ela, ainda.

O professor continua rindo. Observa que a novidade despertou algo na menina.

Escolhendo uma posição para a observação adequada, da varanda, o professor de música feito botânico, diz: - Vê ali, Alice.

Ela olha para as folhas. Na quase transparência, e olhando de cima, ela verifica o que o professor havia dito: - Ah, tem pintas!

- Eh!

- Por que tem pintas, professor?

- Essas pintas são os esporos.

- Esporos?!

- Sim - começa ele a explicar. - As células que vão fazer a reprodução, quer dizer, gerar novos organismos... eh, os bebês das samambaias.

- E como? - Alice está encantada. - Como essas pintas vão dar filhotes de samambaia, professor?

No olhar dele há agora uma luz maior, o seu sorriso é mais aberto. - Hum!, vamos fazer uma experiência?

Alice ri.

O professor nunca vira a sua sorridente aluna tão animada, tão fora dos padrões impostos pela família. Ela parece uma boneca e uma flor ao mesmo tempo, pensa ele.

- Eu quero saber como as pintas dão outra samambaia! - aceita ela a proposta.

- Tá.

Os dois apanham várias folhas carregadas de pintas; sacodem as folhas e as pintas mais maduras caem numa turfa que, antes, haviam procurado e colocado sobre um banco. - Esta turfa é resto vegetal, esponja, tá, Alice... - explica o professor. Colocam todo o material num recipiente largo, de vidro, com pouca água, e cobrem-no com uma placa, também de vidro. - E agora? - quer saber Alice. Sorrindo, ele explica que “o nosso pequeno laboratório vai ficar em local úmido de dez a doze dias”. - Tanto?!...

- Eh, e enquanto isso, você vai apresentar para mim aquele concerto de um minuto, que vai estudar nos próximos dias. E só depois do concerto irá verificar o que aconteceu com as pintas. Tá?

- Tá... - concorda ela. - Apesar da chantagem...

O professor é um riso só. Está de bem com a vida porque conseguiu, finalmente, colocar a menina entre as coisas do dia a dia.

Além dos dois sábados seguintes, Alice aplicou-se todos os dias sobre aquele estudo para piano.

Entre os dois desenvolveu-se uma grande afeição. Já pareciam pai e filha. Ele sabe que a menina está longe da sociedade, que só será apresentada como herdeira da família tradicional quando chegar aos vinte e um anos. É coisa que já não condiz com o nosso tempo, mas..., pensava ele. E tudo acontecia, a partir da montagem do laboratório, em absoluta clandestinidade. Alice já sorri, expõe planos, sonhos, quereres, enquanto os seus dedos deslizam cada vez mais macios sobre o teclado do piano.

- Aguardo o concerto, senhorita! - diz o professor, cerimonioso, sentando-se perto do conjunto formado pelo belo piano de cauda e a belíssima menina; e ela, ainda de pé.

Nervosa, como se milhões de células estivessem gerando na sua mente uma floresta de plantinhas, Alice senta-se diante do teclado. Respira fundo, ajeita a pauta. Dá uma espiada para o professor e sorri, mordendo o lábio.

Breve, o som do piano enche o salão.

Não longe dali, debaixo da escadaria de pedra que dá acesso ao jardim, muitas plantinhas redondas, fêmeas e machos, dão vida a algo novo...

Ao pressionar a tecla na última nota com o dedo indicador direito, Alice deixa-se ficar estática, de olhos fechados. Eu sei que fui bem, diz para si mesma.

Há um silêncio bruto de expectativa.

O professor levanta-se, sempre cerimonioso, e diz: - Alice, você merece mais do que palmas. Você merece um beijo e um abraço deste mestre!

E rindo, com lágrimas rebentado subitamente nos olhos, a menina corre para o abraço do mestre e amigo.

- Vamos ver a nossa obra?

- Vamos! - logo diz ela, excitada.

Os olhos de Alice refletem vida, alegria.

- Professor, tanta pinta...!

- E da pinta vai nascer outra samambaia!

- Parece um concerto, professor.

- E é, Alice. É o concerto da Vida!












O PERFUME DE LÚ




Alguém deixou um cesto de cipó cheio de flores na garagem da casa onde mora Luiza. É um arranjo com mistura curiosa de lírios, rosas, orquídeas e hortências.

O quarto de Luiza dá para a garagem através de uma pequena porta só usada nos dias de limpeza geral, e foi por aí que ela sentiu as fragrâncias daquele bonito presente floral.

Olhando o arranjo, Luiza ficou deslumbrada.

Era quase meia-noite. Ninguém mais iria se incomodar com o cipó e as flores, nê. Foi o que pensou ela. E se assim pensou assim agíu: levou o achado para o seu quarto.

Luiza adora duas coisas: borboletas e flores. Borboletas até que encontra com certa facilidade no pequeno gramado entre o pomar e o roseiral da casa, mas raramente tem a chance de olhar e de sentir um arranjo floral tão elegante.

Colocou as flores na mesa de trabalho do seu quarto: a mesa onde faz os seus trabalhos escolares. E ficou um tempão olhando e sentindo, olhando e sentindo...

Tanto perfume!, suspirou.

Buscou o vidro que usa para suporte dos seus decalques criativos e foi para junto das flores; os cotovelos apoiados na mesa. Tirando uma pétala de cada flor, cheirava uma por uma, e ia colocando-as, separadamente, no vidro.

Lú Perfume!, disse baixinho. Eh, um bom nome para uma coisa diferente, coisa cheia de classe.

Misturou rosa com lírio, orquídea com hortência; depois, um pouco de todas as pétalas num único ponto.

Ai...!, que alegria a dela.

Em cada combinado de fragrâncias ela colocou um número: Lú Perfume número um, dois, três...

Nem percebeu o adiantado da hora.

Um carro entrou na garagem. Eram duas horas da madrugada, e pelas vozes percebeu: meu irmão e a namorada... só pode!

Tenho um presente pra ocê, amor!

Ih!, Luiza ficou apavorada ao ouvir seu irmão anunciar um presente para a namorada. Um presente?!... ó meu Deus!

Na garagem, o irmão olhava para todos os cantos, por cima, por baixo. E nada. Nem estava entendendo...

Oi!, ouviram.

Era ela, Luiza.

Pra ocês, com muito amor!..., e entregou as flores. Ah!, e um Lú Perfume como brinde pra cada, tá...

Para cada, entregou um palito de fósforo com o combinado de fragrâncias que conseguira espremendo pedaços de pétalas no vidro.

Diante dos semblantes de espanto do par, Luiza foi - ah, foi... correu! - para o quarto tapando a boca com ambas as mãos, quase rebentando de riso.

Estava eufórica.

Luiza conseguira, em pouco tempo tempo, o que sempre quisera fazer na escolinha da natureza e não soubera. Ai, e foi só colocar um cheirinho de álcool... É isso aí, disse para si mesma, o perfume é como um poema, um instante divino. É isso aí!

E num gesto teatral, colocou-se diante do espelho do armário, abriu os braços se apresentando:

Lú Perfume, a nova onda d amor!



































A HORTA DA ESCOLINHA



Lá no sítio do senhor Pedro, um homem grande e gordo, que vende legumes para a cidade grande, há uma casa pequena. Um ranchinho de dois quartos, com uma janela e uma porta; no alpendre está a cozinha, de um lado, e o chuveiro, do outro (bom, na verdade, não é um chuveiro, é uma lata grande com alguns furos... sim, quase um regador enorme)...

A casa não tem energia elétrica, e o radinho de pilha só é ligado nas horas do futebol - só na hora especial, na hora da seleção brasileira jogar, como diz seu Francisco. E às vezes pra ouvir a missa do domingo... Que as tardes de domingo são para trabalhar, pois o gado e a roça têm de ser cuidados!

É a vida na roça.

Júlio há quatro meses que está indo para a escolinha construída ali perto pela prefeitura. Ele tem cinco anos e é um menino pouco ligado no estudo, mas inteligente. O que interessa mais a Júlio é a vida lá fora da aula: o ar, a chuva, o sol, a lua, as estrelas, tudo, tudo e os animais.

Francisco - o Sô Xico - é o pai, que não faz questão que o menino vá na escola; dona Joana - a mãe -, essa sim!, faz questão e leva-o todas as manhãs. O meu Júlio inda vai ensinar eu a ler e a escrever!, prometeu para si mesma diante da cara fechada, da casmurrice, de Sô Xico. Para ele, desde que a casa tenha pão e cachaça, tá tudo bem e como Deus quer. Bom, intê demais!, como sempre diz. Para dona Joana não é assim: ai, todo o dia que chega é uma benção, porque o meu Júlio tá na escolinha... Ela pensa só no futuro do menino.

Júlio aprendeu com a mãe e o pai muitas coisas da lavoura; com a mãe, as coisas do espírito, a fé na bondade do coração, e a importância do Saber para ser alguém na vida... mesmo trabalhando na roça. E como o patrão, o senhor Pedro, ajuda com o material escolar...

Uma semana antes de ir para a escolinha, Júlio disse para os pais: - Vou fazer a minha horta!

O pai riu, a mãe ficou emocionada. E no entanto, os dois sabiam que Júlio ía fazer a horta. Na raça, só para dizer eu estou aqui, eu sou alguém. Ele escolheu um pedaço de terra junto do poço e preparou-a durante dois dias, como vira o pai fazer tantas vezes.

A mãe olhava-o a todo o instante. Tem coisa ali qu eu não entendo, mas deve ser segredo do meu Júlio!, pensava ela quando olhava para uma parte da terra isolada na divisão que ele fizera.

Júlio dividiu a horta em dois retângulos e, entre eles, no centro de um pequeno corredor, deixou um fio de terra...

- Mãe! - chamou ele, quando preparava as sementes. - Olha, deste lado vai ficar legume, e lá, a hortaliça...

- Tá bonito, filho. E... - ía ela perguntando sobre aquilo lá no meio, mas logo decidiu aguardar que ele mesmo o diga, um dia.

Ao anoitecer, Júlio ficava horas e horas olhando a escuridão do seu quarto sem janela; às vezes, ouvindo os ruidos que lhe chegavam do quarto ao lado - o dos pais, que se amavam entre risos e gemidos; mas, na maioria das vezes, pensando na terra que estava trabalhando e no que iria semear lá bem no meio entre as mudas já colocadas.

- Ocê colocou bem as coisas?

- Que coisas, pai? - quis ele saber quando seu Francisco o questionou enquanto inspecionava a horta nova.

- Tem de saber alimentar os bichinhos, nê!...

- Meu pai, olha! - disse ele, apontando. - Aqui, vai ter pouca folha: é pra aranha e sua teia. E ali, vai ter mais folha: é pra lagarta.

- Tá, tá bom. Vai buscar pra mim o vidro da pinga! - mandou seu Francisco, depois de verificar que o trabalho do menino estava bem.

Júlio foi num pé e retornou no outro. Viu o pai derramar um pouco de cachaça na terra. - É pró santo abençoar a tua horta! - ouviu do pai. E o viu beber um grande gole, partindo em seguida para a chácara do senhor Pedro. Com aquela cara fechada de sempre. Júlio guardou a garrafa e foi tomar o café com leite que mãe acabara de preparar. Eram cinco horas e meia da manhã.

No primeiro domingo depois das aulas, de manhã, após ter ido à missa, Júlio limpou a sua horta. - Venha ver, mãe! - chamou ele.

O sol estava forte. Eram dez horas. No fio de terra que dividia a horta vários girassóis erguiam-se, lindos.

- Ah!...

- São tão d oiro como seus cabelos, maezinha!

Joana apertou os lábios, emocionada. Súbito riu, riu, e apertou o filho num abraço gostoso...

Na escolinha, que fica bem perto, uns vinte minutos de caminhada pelo estradão de terra, Júlio fala todos os dias sobre a minha horta, e todos os dias tem coisa nova na minha horta: tem aranha, tem larva, tem besouro, tem sabiá, tem túnel que a minhoca fez pra ligar a outro túnel...

O professor, vendo o interesse de todos pelo diário oral de Júlio, resolveu inovar na escolinha: - Vamos criar a horta de papel!

- De papel?! - estranhou uma menina.

- Melhor fazer uma horta de verdade, professor! - opinou outra.

O professor riu e disse: - Sim. Primeiro vamos vamos fazer, ou melhor, vamos desenhar a horta do Júlio: um papel para cada planta e cada bichinho. Depois, vamos saber o que é cada planta e o que é cada bichinho. Ora, sabendo isso tudo...

- ... sabendo isso tudo - interrompe Júlio, entusiasmado - , nê, professor!, eu vou dizer pra ocês como escolher a terra, como rasgar a terra...

O professor ri. Deu certo, meu Deus!, deu certo..., disse para si mesmo. O menino vai ficar mais ligado no estudo e vai ligar os outros, e todos irão aprender brincando com a natureza...

Todos os dias, Júlio vivia como aquela minhoca: de dia, alimenta-se no jardim que é a escolinha, e de noite, fica no seu quarto-esconderijo pensando em como ensinar a turma e aprender mais, mais e mais.

E chegou o dia...

A horta de papel não era mais de papel. Depois de terem desenhado no papel a horta, e de como seria a horta da escolinha, as crianças escolheram o local, a terra e as mudas e as sementes. - Agora, é horta mesmo! - exclamava Júlio, eufórico.

Como sempre ajudava na manutenção da escolinha pública, o professor convidou o senhor Pedro para estar junto do prefeito na inauguração d a horta da escolinha.

- Estou gostando de ver, ó professor. Um exemplo para a comunidade que deve ajudar na educação das crianças. Isto agora é uma escola! - disse o senhor Pedro elogiando o trabalho, enquanto distribuia doce e pipoca para as crianças.

Sob o olhar risonho de Sô Xico e dona Joana, e outros casais da região, Júlio foi o orador da turma: - ... E agradecemos a todos por terem dado pra escolinha as mudas e as sementes, e ao senhor prefeito por ter deixado fazer a horta da escolinha!

Com o professor, as crianças entregaram pequenas flores aos convidados. O olhar de admiração de todos fazia crer que a horta da escolinha já era o maior sucesso da região. Até a cara amarrada do Sô Xico estava diferente: - Teu pai parece um menino mostrando a tua obra pra todos! - observava dona Joana junto de Júlio, que era só entusiasmo.





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