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Contos-->É tudo uma questão de tempo -- 15/01/2002 - 11:50 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O pai nunca foi de me ensinar coisas práticas. Essas coisas práticas da infância aprendi por conta própria ou com a ajuda de amigos. Rodar pião, soltar pipa, bater de trivela, bolinha de gude, essas coisas que, quando a gente é guri, dá toda a importância do mundo. O pai, na verdade, nunca se aproximou muito de mim. Existia entre nós uma distância natural. Ao ponto de eu ser criado pela avó. Vó Maria, a quem devo a maternidade dupla. Não lembro de ter abraçado o pai quando era garoto. Tampouco de andar de mãos dadas na areia da praia. Nossas peles, embora da mesma linhagem, pouco se tocaram. Acho que isso explica em parte o porquê de eu ser avesso ao abraço amigo, à carícia despretensiosa, sem malícia, sem interesse. Lembro que, muitas vezes, ao ver o sucesso ou a alegria de um amigo, ter sentido da profundeza de mim uma vontade imensa de expressar, de alguma forma, a minha felicidade. Nada melhor do que um abraço - dizem. Um abraço apertado, forte, convicto, demorado. No final das contas eu apenas estendia a mão e falava uma coisa qualquer, mas não era isso o que eu queria. No dia do meu aniversário faço o possível para fugir, mas nem sempre tem jeito. Vem um, vem outro... Beijos, abraços, desejos de felicidade, de saúde, de sucesso. Sinto meu rosto arder de tão sem jeito que fico. Eu queria passar todos os meus aniversários em Atenas, porque lá ninguém me conhece. De quebra, ainda molharia a bunda no Mar Egeu. Mas parece uma praga: sempre estou rodeado de gente, força da profissão e da maldita cidade onde nasci.

Este ambiente não conheço. É diferente de todos os lugares onde já dormi. Não é a casa do pai, em Itatiba. Nem a minha, porque o teto eu pintei de azul-claro. Para mim todas as coisas deviam ser azuis. Nenhuma outra cor me faz tão bem. Gosto de tudo o que é azul - menos camisa de clube de futebol, porque sou alvi-negro. Pode ser um hotel ou coisa parecida porque, neste momento, a única coisa que lembro é que ontem exagerei no uísque. Fomos comemorar a entrada do meu irmão na faculdade. Eu e Juliana; Ramon e a namoradinha nova - um piteuzinho, o mano tem bom gosto. Meu irmão escolheu o Bogg s - barzinho próximo à USP, no Butantã. Eu detesto aquele lugar, não teria voltado lá não fosse o fato de o Ramon insistir tanto. E merecer, o pobre. Estudou feito louco, noites mal dormidas, noites mal aproveitadas. Nada de festa, nada de baladas, nada de nada. Dezenove anos tem o Ramon. Ainda tem muito o que viver. Acho que valeu o esforço de se enclausurar no quarto todas as noites, abrir livros, apostilas, cadernos. Nunca dei para isso quando tinha a idade dele. Estudei a contragosto, mais por insistência do pai, que embora não me explicasse coisas práticas, divagava acerca de tudo o que era teórico e filosófico. Grande orador, o pai. De todos os seus ensinamentos tenho certeza de que o mais importante foi o de não aceitar nada como verdade absoluta antes de tirar as próprias conclusões. "Ouça! - ele dizia. Não estou falando para você recusar o que as outras pessoas dizem. Não é isso, entendeu? Mas reflita. Nem jornal, nem professor, nem amigo, nem chefe, nem ninguém. Nem mesmo eu e esse meu conselho: não o aceite. Reflita primeiro." O pai tinha dessas coisas. Achava sinceramente que eu, aos sete anos de idade compreenderia aquele seu enigma. Como podia levar a sério um conselho que ele mesmo pedira para não aceitar? E hoje ele está lá, no pequeno sítio, em Itatiba. Detesta São Paulo, e não tem motivo justo para vir até aqui. Sempre foi avesso a esse negócio de ter obrigação de ir visitar filhos e netos. Acredito que o pai nos enxergava como se fôssemos seus irmãos mais jovens, com a diferença de que tinha a obrigação de nos sustentar. Mas não por muito tempo. Mais precisamente até que tivéssemos pêlos no corpo para encarar um trabalho. Só fazia questão que estudássemos. Muito. O suficiente para, pelo menos, não nos tornarmos uns idiotas manipuláveis. Sempre detestou ignorância, afagos e sentimentalismos em geral. Nunca o entendi.

- Quanto tempo mais?

- Uma... talvez duas horas. O pai mora em Itatiba, o irmão está lá fora.

Os dois médicos e sua racionalidade científica supunham que eu não estivesse ouvindo. Afinal, estava em coma. E coma é coma, oras bolas! Como fazer um médico entender que temos espírito? Impossível. Improvável. Era por isso que eu não reconhecia aquele lugar. Nunca deitei numa maca de hospital, sequer fraturei um dedão do pé, e fujo de uma seringa como o diabo da cruz. Eles não foram muito claros, mas nem precisariam. Certamente mandaram chamar o pai porque estou nas últimas. E, se bem o conheço, ele virá despreocupado, achando que o acidente não tivera causado mais do que uns arranhões no filho mais velho. Ele é mesmo assim: acha que as coisas acontecem e pronto. Não têm maiores conseqüências. Agora que estou lembrando, eu e Juliana no meu carro novo, voltando para o nosso apartamento pela Marginal Pinheiros, sei que não corria, porque sou inábil para passar dos 80Km. O que mesmo aconteceu? Ah, sim. Pareceu-me uma emboscada. Primeiro um caminhão de carga com as portas abertas, triângulo de segurança armado a uns trinta metros antes do final da carroceria, o motorista fazendo sinal para eu parar. Diminuí ainda mais a velocidade, não pararia, mas queria evitar de atropelar aquele homem alto. Percebi pelo retrovisor que dois carros se aproximavam das minhas laterais, vinham em alta velocidade, mas também foram diminuindo. Juliana viu um dos homens sacar um revólver preto e, desesperada, gritou. Meti o pé no acelerador sem mesmo trocar a marcha, coisa que fiz depois. Consegui desviar do caminhão mas os carros me perseguiram. Pela primeira vez – acho que foi a primeira vez – passei dos 100Km. Depois dos 120. Juliana gritava, apavorada, pedia-me cuidado, chorava. Ganhei a Marginal Tietê, enfim. Rezei para que aparecesse uma viatura, um guarda de trânsito, alguém que pudesse me ajudar. Nada. Apenas poucos caminhões trafegando vagarosamente pela direita; outros poucos carros de passeio e ônibus de turismo que se assustavam com a velocidade com que eu vinha. O carro derrapou. Não lembro de mais nada.
* * *
Não sinto o relógio no meu pulso esquerdo, e isto é péssimo. Não sei há quanto tempo um dos doutores afirmou que me restavam, no máximo, duas horas de vida. Não sei se é noite, se é dia e se vai dar tempo de o pai chegar de Itatiba – isso se alguém o convencer a vir. Pensando bem, estou sendo injusto com o pai, porque apesar de toda sua displicência em relação à educação dos filhos, nunca nos deixou em apuros. Agora sim lembro de uma vez em que o pai me abraçou. Quer dizer, não foi bem um abraço. Tínhamos uma vizinha, Dona Lurdes, especialista em cortar nossas bolas de borracha quando elas caíam em seu quintal. Numa das nossas peladas – acho que eu devia ter uns nove anos de idade – tomei a iniciativa de pular o muro da Dona Lurdes antes que ela pudesse estragar mais uma de nossas bolas. Cheguei primeiro que a velha - que já vinha armada com sua faca de cortar carne -, resgatei a pelota e saí correndo pelo seu quintal imenso. A poucos metros do muro tropecei. Dei com a testa no caule da goiabeira do quintal. Doía a testa, o orgulho de ser apanhado pela velha de setenta e poucos anos e o sermão da montanha que o pai daria quando chegasse do trabalho. Realmente o sermão veio, mas acompanhado do colo do pai que, com uma faca de mesa, apertava levemente o galo de campina que surgiu na testa. Com a outra mão, envolvia meu corpo franzino e, de vez em quando, fazia carícias no meu ombro. Acho que se lembrava que era durão e parava abruptamente. E agora não só a testa dói, mas o corpo inteiro, e sinto falta da faquinha do pai. O que terá acontecido a Juliana?

Tão logo pensei na minha mulher, ouvi seu choro inconfundível. Um choro soluçante, agudo, ininterrupto. Pelo visto, estava tudo bem com ela. Ouvi também a voz do Irineu, meu amigo de infância, companheiro de baladas e de apuros. Só não ouvi a voz do pai, que era o que mais eu queria. Restava-me tão pouco tempo e ele não chegava. De certo pegou um congestionamento na saída da Anhangüera, era bem possível. Eu precisava ver o pai. Àquela altura eu já sabia que não poderia lhe falar o que eu queria. Tive tanto tempo pra isso, mas fui adiando. Há cerca de um mês, mais precisamente no dia em que ele completou sessenta e oito anos, fui ao sítio sozinho, porque era feriado prolongado e meus irmãos viajaram e Juliana estava cobrindo o plantão no trabalho. Naquele dia estava bem-humorado, nem parecia o pai. Eu desconfiei que ele estava de namorico com a dona Dulce, uma senhora muito simpática que morava numa chácara próxima. O fato é que eu e o pai nos danamos a tomar vinho e, a certa altura, bateu uma vontade de tocar no assunto. Relembrei a mãe, que foi pega de surpresa por um derrame fulminante que tomou-lhe a vida quando eu tinha nove anos. O pai mudou de fisionomia num segundo. Desconversou. Então percebi que ele não queria falar sobre aquilo. Convidou-me para ir à horta. Colhemos alguns pés de alface e uma couve-flor. Na verdade eu queria perguntar o porquê de sua amargura com o mundo. Comigo, com os irmãos, com a família em si. Eu não compreendia. Mas deixei pra lá.

Sentia ao longe a presença do pai. Uma visão – acho que era uma visão – dele sentado no banco carona do carro do Elias. Um semblante apático, as mãos grudadas no acento, o cinto enforcando-lhe o tórax discreto (ele sempre detestou usar cinto de segurança), o olhar perdido. Eu quis invadir sua mente para saber o que estava pensando. “Pode falar, pai. Fala!” O pai adorava falar. A política o fascinava, embora nunca tenha tentado um pleito, mesmo quando morava na pequena cidade de São Joaquim. Convenceu-nos de que uma assinatura de TV a cabo seria uma boa no sítio. Não era por causa do futebol ou dos filmes. Era para ver a TV do Senado. Babava ao ouvir os discursos do ACM – não por admiração ao caráter público do senador baiano – mas pela oratória em si. Quase chegava ao orgasmo quando os embates entre ACM e Jader Barbalho iam ao ar. Depois ia ao bar do Benê fazer seu discurso. O pai só não gostava de falar sobre a mãe e sobre nós. Sobre nosso relacionamento. Ramon e Elias nunca se importaram com isso, mas eu sempre me senti incomodado. Mas teria que ser hoje, mesmo que não pudesse lhe dizer em palavras. Eu queria olhar para o pai para ele sentir que eu sabia de tudo. Eu sabia que a carapuça que vestia era para esconder o medo. O medo de nos perder, como perdera a mãe. Queria lhe dizer com os olhos que toda vez que ele ia nos cobrir nas madrugadas de inverno, e que parava para nos olhar, que suspirava profunda e demoradamente, eu estava acordado. E que ficava torcendo para ele beijar minha cabeça miúda. Eu queria lhe dizer que sabia que ele assistia escondido as peladas no campinho chulé da Avenida Morumgaba. E que vibrava quando eu ou Elias fazíamos um gol. Vibrava para si, como era próprio do seu jeito introspecto. Eu queria dizer muitas coisas, mas a visão do pai chegando está se esvaindo como fumaça de fogo baixo. Acho que não terei tempo. Agora sim tudo está se apagando. Definitivamente, não há mais tempo pra nada.
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