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Contos-->Papel, papelão -- 20/01/2002 - 10:32 (Paulo K) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A noite avançava e ele ainda tinha muito por fazer. Deixou o trabalho de lado por uns instantes a fim de acender o fogo. O fogão era a lenha. Quando se referia ao fogão não podia deixar de sorrir, poderia chamar de fogão os quatro tijolos dispostos dois a dois lado a lado e uma chapa de ferro por cima? Resignava-se, “ainda terei um de verdade, a gás quem sabe e também uma geladeira e uma cama de verdade”.
Assim sonhava. Pôs pra cozinhar uns talos de couve e um pedaço de carne seca. Um pouco de sal, sem óleo. Assoprou o fogo a ver se pegava.
Colocou mais uns gravetos em volta da madeira grossa e assoprou mais umas vezes, a fumaça a lhe arder os olhos. Agora estava bom, era só ajeitar o toco conforme fosse queimando. Era assim que fazia todas as noites. Depois de comer deitava-se e pensava na vida. Não se recolhia cedo, deixava pra quando o barulho dos carros diminuísse. Era quando repassava sua vida, de como fora até chegar ali. Doía-lhe repassar a vida, desde a infância. Em vão tentava dormir sem que aquela cobrança diária lhe invadisse a mente. Era como um ritual, às vezes longo, à vezes beneficiado pelo sono bem vindo. Se demorasse o sono, uns goles de cachaça ajudavam a buscá-lo. Ao cair da tarde o barulho dos carros passando por cima no viaduto era terrível. À noite nem tanto, apenas uns mais apressadinhos de vez em quando. Mais de uma vez acordara assustado motivo das derrapagens provocadas pelas bruscas freadas.
Voltou ao trabalho. Separar o papel. Em cima de sua cabeça a barulheira incessante dos carros passando. Só de domingo não trabalhava.
Aproveitava os domingos pra visitar a favela. Os papelão eram poucos, o mais era papel. Tinha que por para secar, espalhar no cimento. A chuvarada da tarde o surpreendera em plena volta para casa.
– Até que a chuva a foi boa – sorriu de si para si – hoje não vou ter que pedir pro homem do posto de gasolina me emprestar a mangueira pra me lavar.
Nesse dia não tivera muito sucesso. Outros tinham chegado à sua frente e catado os papelão. A vida dura fazia com que a concorrência aumentasse. Percebia maior dificuldade com o passar do tempo para conseguir seus "papelão".
Queria ter trazido o estrado de cama que a madame tinha-lhe dado. Fora impedido de fazê-lo pela dificuldade de transporte. Era ele mesmo que puxava sua carrocinha. Ah! se tivesse uma carroça maior e um cavalo! Pensava que um dia ainda teria tudo isso, era seu sonho. E também mudar para a favela.
Por enquanto limitava-se a fazer ele mesmo o papel de cavalo, a puxar vagarosamente sua pequena carroça pelas ladeiras da cidade.
Acostumara-se aos xingamentos dos homens de carro que o acusavam de atrapalhar o trânsito. Nem ligava mais pra isso. Todos com pressa, sempre. Só ele não tinha pressa, até sorria, não tinha como ter pressa. Com ele as coisas eram lentas. Devagar sempre. Em parte devido aos cabelos brancos que apareciam depressa minguando a força que tivera na juventude.
– Hoje consegui pouco – dizia consigo mesmo e em voz alta pra enganar a solidão – também, com a chuva que caiu de tarde, até que tá bom. Que sorte ter encontrado este lugar embaixo do viaduto, aqui tem mais espaço pra guardar minhas coisas. Que bom que a chuva passou logo, foi um pé d’água forte, molhou a cama e as cobertas, mas se Deus quiser até a hora de dormir terá secado.
Torcia pra que isso acontecesse.
– Se não vou ter que dormir no cimento duro.
Enquanto falava olhava para o cachorro, que parecia compreendê-lo.
– Ocê gostou de mim, né, Duque – dizia ao cachorro magro – o que ocê viu ne mim, num te dou nada pra comer e ocê num sái de perto. Ainda bem que ocê num reclama, e ainda tenho com quem conversar.
Voltou a separar o que tinha conseguido naquele dia. Papel pra cá, papelão pra lá, vidro tudo junto aqui, madeira ali. Não devia ter catado vidro. Só o homem do depósito lá longe é que comprava vidro. Resolveu que seria o último dia que ia atrás de vidro. Ia ajuntar todas as garrafas que tinha, amontoadas no pilar do viaduto. Ia levar todas pro homem do depósito pela última vez.
Papel dá mais dinheiro, pensava, e papelão é melhor ainda, o duro é a concorrência. Tinha uns que não respeitavam seu território. Lá vinham eles com suas carroças e cavalos a invadir sua área. Levantava-se cada dia mais cedo, no escuro ainda. Lá-se ia com sua carrocinha a percorrer as ladeiras à cata de papel. Tinha umas lojas onde era certeza achar papel. Com o tempo foi fixando um itinerário. Mesmo assim seu sucesso era relativo. Quase sempre tinha que contentar-se com as sobras. Os que tinham carroça grande e cavalo e alguns trabalhavam em dois passavam-lhe à frente. E ele era só. Só com seu cachorro magricela, o Duque.
De uns anos para cá fora obrigado a acostumar-se àquela vida. Difícil isso. Ficar só até que dava, ruim era sentir-se só. Conversar com quem? Quem o ouviria? Ninguém, a não ser o cachorro. Sempre que se dirigia a alguém tinha que aturar a indiferença, todos estavam sempre com pressa. Jamais atendiam ao seu chamado.
Somente era procurado às vezes pelos guardas. Expulsavam-no do seu cantinho. Não queriam ninguém morando embaixo do viaduto. Faziam isso por fazer, sabiam que ele sairia do lugar por algumas horas e retornaria. Ambos sabiam disso, os guardas e ele.
– Quem sabe querem mostrar serviço, dar uma satisfação a alguém, às custas de amolarem quem está quieto – assim pensava.
Na época do frio vinham aquelas mulheres com a sopa. Gostava delas, até torcia pro frio chegar. Assim podia comer alguma coisa diferente. Diferente dos talos de couve e repolho velho recolhidos das lixeiras das casas.
– Ainda vou comprar um cavalo, um cavalo e uma carroça grande. Aí eles vão ver – sorria meio que satisfeito – será minha forra. Irei até o outro lado da cidade. Sáio bem cedo, no escuro ainda e levo tudo. Quando eles chegarem vão ver que um mais esperto já passou por lá. Viu, Duque? tá escutando?
Sorriu quando o cachorro abanou o rabo.
Seus olhos brilhavam de satisfação quando sonhava assim.
– Eles vão ver. Chegarei antes, sim senhor. Poderei até transportar um estrado de cama igual ao que fui obrigado a deixar hoje – concluiu satisfeito.
Lentamente separou os papéis dos papelão. Jogou na sarjeta as sobras e cuidou de comer. Hum! essa sopa tá boa hoje. Carne seca dá um gosto especial. Não é sempre que tinha carne seca. Que sorte que a mulher tinha colocado o lixo na hora em que eu estava revirando a lixeira do prédio. Ela mesma disse que a carne estava boa, que dava pra aproveitar mais um pouco. A carne estava ainda gelada quando ele pegou. Como era sua última lixeira naquele dia, também por causa da chuva que estava próxima, pode se recolher mais cedo e assim aproveitar a carne.
– Não que eu pegue comida no lixo. Isso não. Mas aquela carne estava boa. A mulher mesmo tinha falado. Misturada com talo de couve, ajuda a ficar boa a sopa.
O cachorro também aprovou.
– Safado! comeu a carne e deixou o repolho – sorriu ao fiel companheiro.
– Melhor dormir. Amanhã cedo vou resolver o problemas dos vidros. Recebo os trocados e não falo nada pra ele. Também, pelo que o homem do depósito me paga, nem sou obrigado a lhe dizer que não trarei mais vidros.
Tomou um gole de cachaça.
Arrumou o colchão ainda com uma parte úmida, forrou com o lençol sujo, cobriu-se e esperou pelo sono. Acontecia naquela noite como em todas as noites. Mais uma vez o inevitável, as lembranças de como tinha sido sua vida até ali. Recordações de tempos idos, da família que tivera um dia. Como se afastava mais no tempo a vida tão diferente daquela de agora. De quando morava naquela cidadezinha longe dali e trabalhava no corte da cana. Eram ele, a mulher e o filho. O ordenado era pouco, mas moravam de graça na colônia da usina. Compensava. Pensou em como sua vida mudara desde aquela época. A morte do filho na lagoa, a volta da mulher para a casa dos pais no Norte, desiludida e inconformada com a perda do filho.
Ele cortava cana e estava quase na hora de parar, terminado que estava o dia, quando chegou o menino filho do vizinho de cavalo a galope, gritando:
– Seu Florindo! Seu Florindo! O Nezinho! O Nezinho afundou na lagoa! Tão procurando ele!
Largou a foice e saiu em desabalada carreira em direção à lagoa.
– Espere! – alguém disse – entre aqui. Te levo lá.
Subiu esbaforido na cabine do caminhão dos boia-frias e rumaram direto pra lagoa. Alguns homens já tinham entrado na água, enquanto outros alvoroçados, aguardavam na margem. Demorou um tanto pra entender o que estava acontecendo. Falavam todos ao mesmo tempo e ficou confuso, sem saber o que fazer.
Mais tarde é que se deu conta de que seu único filho tinha-se afogado na lagoa.
Fora pescar com um amigo e escorregara, é o que contavam. Reuniu forças que nunca imaginava possuí-las e levou-o nos braços para casa, a dar a notícia à mãe.
A partir desse dia, sua mulher mudara. Mudara completamente. Recusava-se a comer, só o fazendo a muito custo. Passou a se deixar ficar sentada à janela da casa com o olhar fixo pro lado da lagoa, dia após dia. Não mais falava, não mais ouvia. Meses depois foi para a casa dos pais no Norte e nunca mais deu notícia.
Ele tentou retomar a vida simples de sempre, mas foi muito difícil. Mesmo assim, com a família desfeita, retomou seu trabalho embora com pouco ânimo.
O corte de empregados na usina, desde a chegada das novas máquinas fizera com que fosse mandado embora junto com mais um monte de gente. Desde então nunca mais encontrara um emprego fixo, sentia-se definhar a cada dia que passava. Lugar pequeno não dá certo, pensava, vou tentar na cidade grande. Com tanta gente na cidade grande e ninguém morrendo de fome acho que terei mais chance, era o que pensava.
Na cidade grande só piorou de situação. Sem dinheiro, sem família, passara a mendigar. Como isso também não desse certo, passara a catar coisas nas lixeiras das casas e prédios. Ajeitou-se como pode embaixo do viaduto. Com o tempo, ficou com a carrocinha do companheiro que morrera. Comia o que conseguia encontrar e não era todos os dias que podia se dar a esse luxo. Mas, que fazer? Tinha que levar a vida assim, na esperança de que algum dia as coisas melhorassem.
Ainda haveria de ter um cavalo. Um dos bons e uma carroça nova. Maior. Ia progredir, melhorar de vida. Construir um barraco na favela. Quem sabe plantar uma horta com alface e couve. E cebolinha e pimentão. Voltar a ser gente. Ter vizinhos, gente com quem conversar. Iria comprar um radinho de pilha. Terá que ser de pilha, lá não tem luz, dizia consigo. Uma vida de gente. Sorria ao pensar que até o Duque poderia ter a sua casinha.
Longe do viaduto. Lá os guardas não iriam mais fazer ele andar. Não iriam mais confiscar suas coisas. Seus papelão. Um barraco de tábua quentinho à noite. Voltaria a ter uma morada decente. Bem diferente do viaduto. Por enquanto não dava pra sair dali, tinha que aguentar mais um pouco. O homem da favela queria mais dinheiro para deixar ele mudar para lá. E ele ainda não tinha o suficiente. Mas faltava pouco. Quem sabe no ano que vem não estaria morando lá, num barraco sem goteira. Longe do viaduto. Longe da barulheira dos carros. Longe dos guardas.
Dando tudo certo, quem sabe a mulher não voltava pra ele. Poderia escrever pra ela. Mas para qual endereço? Sabia apenas o nome da cidade onde ela estava. Como a acharia? Não sabia ainda. Mas também por que preocupar-se com isto agora? Ia demorar até conseguir aprontar tudo, para baixo do viaduto é que ela não ia querer. Nem ele ia querer que ela o visse naquela situação. Ficaria aterrorizada de vê-lo ali, morando num lugar com uma parede só e o teto. Sem cama, sem armário, sem mesa, sem nada. E recebendo as visitas dos guardas de vez em quando.
Mas isso ia mudar. Ia sim, tinha fé em que tudo ia dar certo.
O sono chegou devagar, o barulho dos carros passando lá em cima já não o incomodava tanto. Um ano ali embaixo do viaduto. Seu lar... seu colchão... sua carroça... seu cachorro... mas haveria de mudar de vida... sim... logo... logo... Suas pálpebras foram se fechando...
– Ah! como estava boa a carne seca!
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