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Artigos-->Não há Verdade na Realidade -- 13/09/2004 - 18:14 (Luiz Carlos Assis Iasbeck) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não há verdade na realidade



Luiz Carlos Iasbeck





Quem quer que possua um mínimo de consciência semiótica – mesmo que não saiba e não queira saber o que é semiótica – se irrita quando ouve ou lê em algum lugar as seguintes nefastas expressões: “... na verdade” e “... na realidade”.



A semiótica é uma ciência que estuda os mecanismos de produção de sentido (significados) presentes naquilo que percebemos, pensamos, falamos, fazemos, insinuamos, despistamos, expressamos sem querer ou com o propósito de agradar/desagradar alguém.



O “signo”, unidade básica da semiótica, corresponde a tudo aquilo que produz sentido. Não é por outro motivo que a palavra significado possui em si mesma o radical signo. O que é um signo? Um signo é tudo o que pode estar sendo utilizado para que surja um sentido.



Assim, uma palavra, qualquer que ela seja, é um signo e não a coisa ela mesma. Como diz Décio Pignatari, a palavra cachorro não morde e, acrescentemos, atualizando o exemplo do professor, a palavra político não rouba nem se corrompe para obter vantagens pessoais.



Não só as palavras são signos. São signos todos os sinais que percebemos no mundo. Uma imagem que sensibiliza nossa visão pela luz que emite (refrata) é um sinal e não a coisa emissora (ou refletora) da luz ela mesma. Uma pessoa que vemos passar na rua é, evidentemente, uma pessoa humana, mas quem é essa pessoa ela mesma? Não temos dela mais que um espectro de luz em movimento. Entretanto, ela pode significar muito, pouco ou quase nada para nós que a vemos. O que temos dela, não é ela... são apenas sinais que interpretamos e lemos de acordo com as informações de que dispomos.



Assim também acontece com os sons, os odores, os paladares, a audição e o tato. Enfim, tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos, lambemos e tocamos, tudo o que nos chega pelos cinco sentidos são... apenas ... sinais. E o sinal não é a coisa, assim como as palavras não são o que significam.



Dessa forma, o que temos como informação do mundo não é o mundo... é informação! A notícia das coisas não nos leva a deter as coisas. Não temos os fatos, mas as notícias deles. E mesmo quando os presenciamos, não temos senão uma visão precária, mosaicada e bastante subjetiva deles.



A consciência do signo nos leva ao reconhecimento humilde - e até mesmo humilhante - de que a realidade é, e sempre foi, inapreensível. Por mais que tentemos segurá-la, ela nos escapa; por mais que tentemos detê-la, ela nos foge; por mais que tentemos vencê-la, ela sempre nos ultrapassa.



Porém, é muito comum ouvirmos por aí alguém dizer que “na realidade as coisas não são bem assim”, ou então que “na verdade, o que acontece é o seguinte...”



Tá certo que essas expressões são vazias de sentido literal, têm apenas o caráter fático (o que não seria pouco, em termos semióticos), uma vez que são utilizadas para criar ou provocar ênfase. Mas nos perguntamos que tipo de ênfase pode proporcionar expressões tão ingênuas e autoritárias, capazes de chamarem para seu enunciador a atenção e a tensão do interlocutor, de forma tão arrogante e agressiva.



Não precisaríamos citar Jacques Lacan para lembrar que as palavras não são inocentes, não saem por acaso de nossas bocas, não escoam em vão pelos nossos dedos. Mas é imprescindível lembrar que tudo aquilo que expressamos, (ainda que para despistar, enganar ou falar mal de terceiros) nos revela. O inconsciente nos trai pela metáfora, pelas nossas escolhas, pelas nossas seleções. Antes de Lacan, o lingüista Roman Jakobson já tinha descoberto que no eixo das linguagens estava o segredo da subjetividade e a impossibilidade da objetividade. Lacan só fez mesmo associar metonimicamente Jakobson a Freud (ato falho) para concluir o que até então estava apenas insinuado.



Voltemos então à realidade... e não encontraremos senão signos, sinais, incertezas, dúvidas e possibilidades. A sensação de alguém que se dá conta da inexistência da realidade só pode ser, para ser sincera, de uma grande e paradoxalmente feliz frustração. Assim como acordar de um pesadelo ou permitir-se sonhar de novo um sonho bom.



Então, não temos a realidade. Mentem todos - o administrador, o economista, o engenheiro, o professor ou o palestrante de marketing - quando dizem que “eu me refiro aos fatos” ou “tenho fatos e dados”. O que temos dos fatos não é senão nossa precária e limitada visão deles, nossa débil leitura do mundo, nossa ridícula e indisfarçável impotência para fazê-los servir aos nossos propósitos argumentais. E, nesse triste panorama, buscar a verdade é a única saída para uma morte honrosa.



E aí nos deparamos com outra artimanha ainda mais séria, porque mais sacana e covarde. Onde está a verdade? Na verdade, arrogar-se a ser o detentor da verdade em qualquer assunto é reconhecer a própria fragilidade diante de um universo de possibilidades.



Quem detém a verdade? Onde está a verdade? Essa é a pergunta que se fazem e se fizeram milhares de pensadores sérios e outros milhões de irresponsáveis oportunistas. Não conheço melhor resposta que a formulada pelo norte-americano Charles Peirce. Para ele, a verdade não está com ninguém nem em lugar algum, mas se insistirmos em saber quem está mais perto dela, uma boa resposta seria: “detém a verdade, e sempre provisoriamente (até que outro o ultrapasse), aquele que foi mais longe na investigação dela”.



Se a verdade é inapreensível e inapropriável, ela só pode existir metaforicamente como sinal de poder e autoridade. E é assim que nós a entendemos e – pior – a aceitamos. Toda verdade só é possível num ambiente ideologizado.



Toda verdade é ideológica (afirmam os pré, pós, anti, neomarxistas) e por isso relativa, frágil, medrosa e covarde. Nenhuma verdade resiste à outra verdade. Eis aí o motivo pelo qual toda verdade é uma mentira para si mesma. É isso que confirmam os economistas neoliberais terceiro-mundista quando interferem no “mercado” para baixar índices que trazem prejuízos aos aristocratas que os patrocinam. É isso que reconhecemos, na privada, quando colocamos para fora aquilo que nosso corpo não pode mais suportar dentro.



Na verdade, toda verdade é uma versão autorizada e interessada da realidade. Portanto, na realidade, não há realidade fora do signo e não há verdade fora da leitura intencionada, interessada e direcionada dos sinais.



É justamente por termos um conhecimento tácito de todas essas precariedades que necessitamos urgentemente nos apegar aos pequenos e restritos formatos que tais vícios de linguagem nos proporcionam. É por esse motivo que eles nos caem tão bem e nos ajudam tanto, assim como muletas para um manco. No fundo mesmo, todos sabemos que não há verdade que se sustente, nem realidade que nos pertença.



Somos, provisória e precariamente, protagonistas de utopias, atores de uma peça impossível que precisa chegar ao seu final para produzir sentido e proporcionar narrativas inequívocas.

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