Usina de Letras
Usina de Letras
108 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62145 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13566)

Frases (50551)

Humor (20021)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140784)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6175)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Humor da Vazante -- 07/04/2000 - 08:46 (Alberto Nunes Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
(trecho)
- Antes desse tempo, muito antes, já se ouvia falar do rato de beiradão. Se porventura esquecida a sua infància, a sua origem, - diz a voz do inconsciente - deixai-o sair a noite para caçar, para comer. Na miséria ou na riqueza lembre a ele o sistema da caderneta de fiado, com suas páginas dobradas ao meio, nervosamente manipulada pelas mãos sujas e gordurosas do comerciante e do menino que ia buscar as compras a retalho. Deste modo é bem provável reconhecermos toda a trajetória de suas peripécias. Podendo antecipadamente ser dito: tornou-se um arcebispo aidético, um governador diabético, um vereador paraplégico, um deputado canceroso... Vejamos como isso veio acontecendo. Tudo começou no fado da Maria Amália, aí esparramou-se o drama.
No período imemorável do destino amazónico, as raízes, igual às enormes presas de animal pré-histórico, perfuraram o solo umedecido pelas constantes chuvas. Vistas através de um corte imaginário que fizesse em fatias horizontais todo o chão, revelaria a invasão daquelas garras, lentamente, dia após dia, algumas já durante séculos, avançando inexoravelmente na tentativa constante de se apossar da terra. Não só penetravam mas também engrossavam e se diversificavam em todas as direções.
Na costa desnuda do beiradão, depois que a água do rio baixa, pode-se contemplar parte de algumas dessas raízes à amostra. O caudaloso rio, por sua vez, é ainda hoje uma ameaça constante engolindo o barranco, cavando, fazendo despencar parte dos saudosos torrões, misturando-se, continuando a correr sempre com suas águas barrentas. Nesta contingência contraditória de se apossar e de despencar vivem os habitantes.
As canoas atracadas nos pequenos trapiches ou apenas amarradas em vergónteas enfiadas no leito da parte mais rasa, da margem, estão lá tomando parte da paisagem inesquecível. O caminho até a choupana do ribeirinho, coberta de palha ou mais tarde coberta de zinco, lá no alto, aparentava-se apenas numa íngreme escadaria esculpida no barranco através da servidão do barro repisado, sempre dando a impressão de umedecido, de que se utilizava para ir e voltar cumprindo o destino junto àquela natureza vigorosa e muito das vezes aparentemente incógnita.
Quanto aos outros tipos de habitação podia-se ver os buracos utilizados pelas arirambas, aves que de vez em quando cortavam o espelho d água com seus vóos rasantes alimentando-se de pequenos peixes. Em alguns desses buracos, depois de algumas horas de observação, era possível ver as variadas formas de insetos e, com surpresa, a cara do rato de beiradão.
Quando a pequena Vila foi elevada a categoria de Cidade em 1848, a esperança da população ribeirinha por dias melhores transformou-se numa manifestação incontida, com banquete e tartarugada na casa do único coronel do lugar. No exato momento do brinde em homenagem a data cívica, o coronel vestido de linho branco e calçado com botas de cano longo marrom, fez um discurso com as têmporas avermelhadas e com palavras amáveis sobre a vitória, a glória, o orgulho manifestando a certeza, em alto e rouco som, dos dias melhores, da prosperidade, do avanço. Usou, até mesmo, uma expressão crítica contra o adversário na qual o comparava a um rato de beiradão. Acusou-o, ainda comparando-o ao rato de beiradão, de molestar a tranquilidade da cidade. Quanto a esses acontecimentos, disse um certo professor do Colégio D. Pedro II, anos e anos depois, que o coronel de barranco não conhecia a palavra desenvolvimento, por isso não a utilizou no seu discurso. A palavra desenvolvimento só iria instalar-se no imaginário da cidade criando seu efeito mágico de desafio, milagre e opressão, depois que os futuros coronéis acordassem da cesta; essa era a zombaria do professor no pós-zona franca.
Em 1882, a Cidade já com o título de Província, sancionou a lei que mandava construir um palácio da arte, um Teatro. Em 1896 ele foi inaugurado. Os convidados mais ilustres da Província e além dela foram recebidos com champanhe francês. O discurso apesar de lido por um engenheiro teve um senão. Lá fora, diante do majestoso Teatro, um grupo de estudantes secundaristas gritavam insultos contra a elite que desfilava e se punha em pose nas largas sacadas. Acusavam de ser uma festa de coronéis de barranco. Na hora da cerimónia, o engenheiro-coronel gaguejou quando estava fazendo uma retrospectiva da vida da Cidade, desde quando ainda era uma Vila. O vexame se deu no exato momento em que aquele orador oficial fez referência ao discurso do antigo coronel de barranco, prestado na data da elevação da Cidade, no trecho que se referia ao rato de beiradão. Por causa desta expressão houve até um entre olhar dos que estavam presentes, na cerimónia; alguns comentavam que tratava-se de uma expressão chula, uma passagem que poderia ser esquecida, posto que o momento era apropriado para o enaltecimento da cultura, da arte, novos tempos. Comentavam que o rato de beiradão não era bem-vindo, fazia-se necessário esquecê-lo, tornára-se deveras inoportuno dentre tantos ilustres convidados. Acontece que o secretário do palácio encarregado de preparar o discurso da autoridade, de posse do documento histórico, o transcreveu de igual modo, com a convicção de que os acontecimentos da história não podem ser modificados. Havendo sido chamado, aquele desafeto político, de rato de beiradão, não poderia ser dito de outra maneira, assim repetiu.
Tudo isso fora o suficiente para marcar a data da inauguração como, realmente, um acontecimento além da simples denotação de modelos de terno e vestidos longos, jóias e sapatos envernizados, chapéus de massa e pena de rabo de pavão. Mesmo findo o discurso e nos intervalos das apresentações de cena, a questão permaneceu no ar sobrevivendo dos cochichos, pequenas ironias e risadinhas pretensamente educadas. Aonde já se viu colocar um rato no momento da inauguração do Teatro! Rato, morcego e teatro casam-se bem só depois de inaugurado, este era o desfecho do comentário do diretor de espetáculo.
Tempos depois de inaugurado, no momento de uma das reformas, já na segunda metade do século XX, apareceu em um dos jornais locais nova referência sobre o rato de beiradão. Devido a existência do monumental Teatro Municipal que passou a simbolizar a cultura no àmbito da cidade, a paranóia intelectual, visto que o tempo cada vez mais ficava para trás pelo esquecimento, começou a se apoderar dos documentos e objetos do acervo patrimonial do templo da arte da cidade. De posse desses objetos, surrupiados, de vez em quando ainda hoje vê-se aflorando em livros e artigos particularizantes o autor de tal façanha; em que pese seu decantado amor pela cultura, esses poucos detém o património que não é seu e continuam pensando com os botões de sua casaca rota que são os donos de todo o conhecimento local.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui