Terrível a nossa experiência:
Todo relacionamento está predestinado
Reservado ao rompimento
Sem a mínima clemência.
O primeiro relacionamento – de todos o mais forte –
Terminou em separação - uma espécie de morte.
Pusemos a cabeça para fora
Saltamos para o mundo na mesma hora
Fomos desligados, desconectados do cosmos
E ficamos apartados de nossa mãe.
Passamos praticamente a viver a vida
Sem teto, sem chão…
Esse desligar tão intenso
Semeou em nós o medo do abandono
E gerou um desespero à procura de conexão.
Partimos em busca do outro
Um outro que é mágico
A pessoa certa para nos acolher
E para fazer nossa vida andar nos trilhos.
Aquela pessoa cantada em prosa e verso:
Nossa tão esperada alma gêmea!
Cada um de nós liga seu aparelho de sonho
E sonha… sonha… sonho colorido:
Essa pessoa lerá meu pensamento
Ela me dará o universo
Saberá tudo que quero
Satisfará minhas necessidades
E nós nos amaremos para sempre.
Assim caminhamos nas nuvens
- de olhos fechados porque o amor é cego -
E viveremos em total encantamento.
É o violento apaixonar-se
É a misteriosa fascinação pelo outro
É a incapacidade de fazer qualquer coisa
_ a não ser embebedar-se nos olhos da pessoa amada.
Na verdade, não temos consciência
Mas todo esse alumbramento é a grande tentativa
De afugentar a separação primeira
O Éden – o paraíso perdido.
Entramos de cabeça na relação
Entramos com pouco conhecimento
Não apenas do outro
Mas muito de nós mesmos.
Nós nos projetamos no outro (um espelho para nós)
Procuramos nossa identidade
Procuramos um porto seguro
Procuramos lenitivo para nossas feridas
- as dores na nossa história de vida.
E não sabemos de nada
Muito menos que o outro procura o mesmo que nós.
Aos poucos, dia após dia, os germes do passado
Contaminam o encontro da alma gêmea.
Com tantos germes em reprodução incansável
Principiamos a questionar
E perguntamos ao outro:
Como você faz isso se diz me amar?
Do outro vem o eco infalível:
Como você faz isso se diz me amar?
É que sempre lemos o presente
Pela lente de nosso passado
E ele sabota o presente
- o que temos de mais real e valioso.
O jardim paradisíaco foi soterrado…
Nossas expectativas originais
Não foram satisfeitas:
O outro não é o que parece!...
Quanto mais buscamos o Éden
Tanto mais ele fica distanciado.
Novamente a dor da des-união nos dilacera.
Ah! Somos os piores inimigos de nós mesmos!
Sempre procurando nos religar
Para novamente nossa casa encontrar.
Mas não podemos voltar ao útero
E difícilmente acreditamos numa morada celestial futura.
Vivemos desabrigados
- Quer saibamos ou não -
E decidimos buscar um novo outro
Ou trancar nosso coração.
O vigor e esperança de qualquer união
Depende de cada parte assumir responsabilidade
Pela relação com seu material inconsciente
E com seu projeto cósmico:
A nossa individuação - o SER indivíduo -
E terminar o belo experimento
Que a natureza executa por nosso intermédio.
Se decidimos amar o outro como outro de fato
Precisamos de grande coragem para duas perguntas:
O que peço ao outro que eu deveria fazer?
Peço que seja responsável pela minha auto-estima
Peço para cuidar de mim como se fosse pai/mãe…
Mas o outro não pode percorrer a jornada que é minha
O outro não pode me poupar da dor e horror que são apenas meus.
A segunda pergunta é sobre o espelho do outro:
O que isso fala de mim?
Fala que preciso retirar do outro minhas próprias projeções
Mesmo sabendo que dói.
É um feito verdadeiramente de herói:
Sou mais eu quando o outro me força
Quando me faz sair da minha consciência limitada
Para reconhecê-lo como outro e vice-versa.
Pode parecer paradoxo
Mas é quando mais favorecemos o outro
Quando mais o amamos de fato
Assim como o inverso é verdade.
O verdadeiro amor é desinteressado
O verdadeiro amor é permitir que o outro seja
O verdadeiro amor é reconhecer que o outro é outro
O verdadeiro amor é um ajudar ao outro
Ajudar a suavizar a tensão dos opostos
Ajudar o outro a crescer
Crescer no seu projeto individual de vida
Crescer no seu projeto de alma
-a alma sendo uma energia
que instiga a sermos o que somos potencialmente.
Amor e trabalho da alma estão entremeados
Enredados como num bordado.
O outro não está ao nosso lado para cuidar de nossa alma
Está para ampliar nossa experiência dela
Ampliar nossa jornada pelo misterioso ser diferente que é o outro
-Um presente mais que precioso.
O relacionamento não pode ser movido pela necessidade
O que tem de movê-lo é a solicitude
Para o outro enquanto outro.
Só assim estamos livres para vivenciá-lo
Estamos libertos das correntes para amar.
Eu e Tu - partes de uma unidade transcendente
Buscando o objetivo da vida
De toda vida
Da vida toda
Que é a plenitude.
* monólogo inspirado no texto do psicólogo americano James Hollis
