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Cronicas-->A CHAVE (ou: para se entender o Paquistão) -- 10/11/2001 - 12:38 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ulrich Ladurner vem publicando uma longa série de textos que escreve, diretamente do Paquistão, como enviado do DIE ZEIT online. "A chave (ou: Para se compreender o Paquistão) surgiu na edição 45/2001 desse diário online de Hamburgo. Da mesma série, traduzimos ainda "Islamabad-Blues (quando a noite vem)" e "O amor em tempos de guerra". Ambos já publicados neste site.

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Por Ulrich Ladurner
Trad.: zé pedro antunes
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Três vezes eu me encontrei com ele. A primeira foi num restaurante. Sentado à mesa, à minha direita. A segunda também foi num restaurante. Sentado à mesa, à minha esquerda. Da terceira vez, estava no carro comigo. Sentado no banco de trás. Os dois jantares tiveram, respectivamente, a duração de aproximadamente uma hora. A viagem de carro, no total, consumiu seis.

É dessa forma protocolar que eu me vejo obrigado a fixar meus encontros com Raza. Do contrário, se me escapariam. Raza, aliás, costuma estar presente e ausente a um só tempo. Sua aparência exterior corresponde plenamente a esta impressão: é bastante magro e pequeno, possuindo um rosto estreito e longilíneo. Lembra um traço. Mesmo assim, ocupa todo o espaço em que se encontra, até o último cantinho. Ao retirar-se, deixa atrás de si um sentimento desconfortável, que acompanha o interlocutor por cerca de uma hora. A iminência de sua chegada, ao ser anunciado, desencadeia intranquilidade semelhante à de uma procela. Quando viajamos juntos em direção a Kashmir, pude sentir às minhas costas uma sombra pesada e escura. Era uma tensão prestes a ser descarregada a qualquer momento. Só não o fazia. Represava-se, até encher o interior do carro. Podia levar ao desfalecimento.

O tempo todo, praticamente Raza não fala. É preciso forçá-lo com perguntas insistentes, para que se disponha a emitir algumas palavras. As respostas vêm lacónicas e determinadas. Tudo o que diz é taxativo. Nada permanece em aberto. Em nenhum instante o acesso ao interlocutor é franqueado. Raza fala por meio de sentenças. Depois de alguns poucos minutos, esgotado, eu desisto.

Raza é proprietário de terras. Não consegui saber a extensão de suas propriedades, ainda que lhe tenha perguntado. "Isso eu não sei muito bem!", foi tudo o que me disse.

As terras de Raza ficam na fronteira com o Afeganistão, na aldeia de Dir. Esta região é parte das assim chamadas "tribal areas", onde vivem algumas etnias do Paquistão. A questão relativa às etnias é extremamente complicada, mas, em conexão com a figura de Raza, só importa uma coisa: As "tribal areas" são áreas proibidas para estrangeiros. Motivo: a guerra no Afeganistão. Mesmo em tempos normais, é o que se diz, são perigosas as regiões tribais. Apinhadas de homens armados, que não se dobram perante as leis. Raza provém, assim, de uma região que eu desconheço e que não me é dado conhecer. Suas raízes, para mim, se fincam no escuro. Uma vez por mês, Raza viaja de Islamabad, onde reside, para uma estada de alguns dias em Dir, a cuidar de seus direitos. Na verdade, não sai de viagem, desaparece. Não retorna, antes emerge.

Eu gostaria muito de conhecer o país de Raza. Talvez pudesse compreender, então, melhor por que ele é a pessoa que é. Mas isto não passa de uma idéia, de uma tentativa inglória de explicá-lo para mim mesmo. Raza, no entanto, não permite explicações, essa é a verdade. Eis o fundamento do seu poder. Poder ele tem. É o que se depreende de cada um de seus movimentos. Ao sentar-se, joga uma das pernas sobre a outra, deixando as mãos penderem ao longo do corpo. O resultado é bastante descontraído, muito concentrado. Quando se põe de pé, é sem alarde, não se podendo ouvir um roçar de sua vestimenta paquistanesa, um ruído que seja do pé que toca o chão. Ei-lo que de repente se pós de pé, tal como há pouco se o viu tomar assento. Caminha atrás de alguém, embora há pouco dele ainda caminhasse à frente. Pode-se senti-lo inteiramente próximo, quando já se acha alguns metros afastado.

É claro que falei com ele sobre política. No caso, uma de suas palavras permaneceu na minha memória: "Back up", que queria dizer tanto quanto apoio, auxílio, sustentação. No Paquistão, sem backup não se chega a lugar algum. Precisa-se de backup!" Ao dizê-lo, acabava de esvaziar o prato e se recostava. "Backup!" era o que saía de sua boca. Era uma das leis que sempre formulava.
Em que consistia esse "backup"? Isso, naturalmente, Raza não explicitava. Deixou-me a sós com essa palavra. Comigo não restou senão a possibilidade da imaginação. Como será o país dele? Como se comportaria em suas próprias terras? Como daria ordens? A quem se dirigia, quando tinha de resolver um problema ou tratar da situação de algum subalterno? Como preservava suas posses? Como fazia para ampliá-las? Que conexões ele possui?

Até aqui não obtive ainda uma só resposta, tudo permanecendo no àmbito do indeterminado. No caso, carrego a convicção de que Raza tenha nas mãos a chave para a compreensão do Paquistão. Só não a entrega. Não vale a pena perder tempo com ele. Não se chega a nada.

Por isso mesmo, agora o leitor poderá estar perguntando por que, apesar de tudo, ainda me esforço à cata de uma explicação, por que os meus pensamentos gravitam em torno de Raza, quando nenhuma possibilidade de êxito se divisa. Tem simplesmente a ver comigo, a escorregar de um lado para o outro na poltrona, a levantar-me por não conseguir mais permanecer sentado, a caminhar de um lado a outro do quarto; a ligar a TV e tornar a desligá-la; a deitar-me na cama e novamente me pór de pé; a ir até o espelho e contemplar estarrecido a imagem refletida. Tudo o que lhes conto sobre Raza é porque me sinto nervoso. E tenho boas razões, aliás, para estar nervoso. Logo os meus ouvidos estarão registrando uma chamada da recepção. Raza terá chegado. E eu me senti mesmo obrigado a lançar alguma coisa que fosse ao papel, para ter a certeza de que de fato ele existe.
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