Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62228 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22536)

Discursos (3238)

Ensaios - (10364)

Erótico (13569)

Frases (50622)

Humor (20031)

Infantil (5433)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140803)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6190)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->A poesia amarrada ao poste -- 15/11/2001 - 19:35 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Odir Ramos da Costa

A ruazinha de saibro batido, igual a tantas do bairro Vila Comari, iria ganhar nome ilustre, em cerimónia discreta, sem discursos, nem presença de políticos e autoridades. Quando o grupo desembarcou dos carros na esquina, os meninos de canela cinzenta corriam atrás de uma bola murcha.
Por iniciativa da irmã Yeda Pinheiro, Valzinho Teixeira, morto recentemente, ingressaria na toponímia da cidade. Se vivo fosse, discreto que era, nem daquela forma admitiria homenagem: sem alarde, em cerimónia de amigos rodeados de crianças de pé no chão, com o nome estampado na modesta placa azul de letras brancas, onde o encarregado da escrita se esquecera de botar embaixo a informação preciosa: músico e compositor. Se quisesse poderia ter acrescentado sem risco de errar: precursor da bossa nova.
Convidou-se muita gente, pouquíssimos atenderam. Além do minguado número de familiares, parentes da geração mais nova carregada meio a contragosto pela tia Yeda, e a meia dúzia de artistas colegas de Valzinho, mais ninguém se arriscou a enfrentar o sol escaldante.
O grupo chegou, rodeou o poste. Logo, das dezesseis casas da ruazinha, começaram a sair moradores para ver o que estava acontecendo. Afinal, o poste sempre estivera ali na beira do valão, imóvel e prestativo conforme é da índole de todo poste. Este, de que lhes falo, sustentava a fiação da rua, nas campanhas eleitorais servia para se amarrar faixas e colar cartazes, a vida toda cumpria o destino comum à espécie. Ao que constava, nunca apresentara motivo para merecer maiores cuidados e atenções, a não ser do pessoal da Light.
Para prender a placa, providenciou-se escada com um vizinho prestativo. A senhora de lenço florido amarrado na cabeça perguntou se iríamos mandar asfaltar a rua. Aproveitou para se queixar: o caminhão de entrega do gás atolava em dias de chuva, as crianças chegavam à escola com os sapatos cobertos de lama. Havia sapos e pererecas no valão, talvez cobras, onde há pererecas, há cobras. Os políticos aparecem nas eleições, prometem o asfalto, depois somem...
Orgulhoso com a deferência por ter trazido a escada, o vizinho prestativo interrompeu a queixosa, advertindo-a de que não era momento para falar das coisas ruins da rua, ainda mais em presença de estranhos.
Os recém-chegados, já se viu, eram estranhos aos moradores da ruazinha, exceto o padre chamado para benzer a placa. O sacerdote, que era espanhol e paroquiava em bairro próximo, iniciou a cerimónia louvando as virtudes de Valzinho Teixeira. Falou com tristeza e gravidade, segundo convinha ao momento. Como, além de espanhol, era um padre pouco versado em músicas profanas, inclusive MPB, entendeu que o homenageado teria sido ex-morador do bairro, e enalteceu as qualidades dos campograndenses de boa índole que descansam no reino de Deus. Isto bastou para que dona Maria Rosa fosse tomada de piedade. A santa senhora benzeu-se três vezes, puxou o rosário do bolso da saia - sem o rosário, não punha os pés na rua - e comandou o coro de rezas muito contritas em intenção do nome da placa.
Finda a cerimónia, a placa amarrada com arame de cobre - para não enferrujar, garantiu o solícito dono da escada, enquanto atava bem atado o nó por trás do poste -, os visitantes despediram-se dos vizinhos da placa e do padre, que aceitou o donativo para as obras paroquiais.
Os três carros partiram com os amigos de Valzinho Teixeira para o Teatro Artur Azevedo. O dia estava ensolarado, fazia muito calor, mas o teatro lotara para a segunda parte do tributo. O pessoal da ruazinha desconhecera os visitantes, porém aqueles frequentadores, mais atentos às coisas da arte, sabiam que o espetáculo prometia. Pelos nomes anunciados, o grande Valzinho, de batismo Norival Carlos Teixeira, falecido em 25 de janeiro daquele ano - receberia a merecida celebração.
No fundo do palco, o telão azul estrelado. Dois spots iluminavam o catavento, realçando a silhueta de Valzinho: violão debaixo do braço, caminhando, como Chaplin, rumo ao infinito. O cenário reproduzia a capa do LP, com músicas do compositor gravado por Zezé Gonzaga, num belo momento captado pelo fotógrafo Sérgio Rodrigues e Silva.
Alaíde Costa abriu o show, com "Gostar de Ninguém". Sua voz cálida e precisa sublinhava a delicada linha melódica da canção, enquanto duas grossas lágrimas desciam sobre seu rosto negro. Ao final, desabafou: "Esperei muito por esse momento. Devia essa homenagem a Valzinho, irmão e amigo". Alaíde Costa, com show em São Paulo, viera pela ponte-aérea para prestar a homenagem. Teria que retornar às pressas para o espetáculo da noite. Como os demais, arcava com as próprias despesas, sem cobrança de cachê para se apresentar no teatro de Campo Grande, distante 50 quilómetros do centro do Rio. Sem mídia, sem a certeza de haver público, todos movidos, tão-somente, pela saudade e gratidão, reconhecidos ao talento do compositor.
Assim como Alaíde Costa, Elizeth Cardoso, Elton Medeiros, Manoel da Conceição (o violonista Mão de Vaca), Jards Macalé, Zezé Gonzaga, Ciro de Souza, índio, Eduardo Aragão e Eliane.
.............................................................................................................................

"Vagabundo eu sou, ave sem ninho, pela vida eu vou, canto sozinho..."
Valzinho Teixeira foi um inovador. Compós, ainda na primeira metade do século passado, canções de grande requinte melódico, fora dos padrões para a época, com letra e música absolutamente originais. Seu nome pertence à seleta galeria onde figuram João Gilberto, Johnny Alf e Tom Jobim.
Hermínio Belo de Carvalho, poeta e produtor, que reuniu em LP a obra de Valzinho Teixeira cantada por Zezé Gonzaga acompanhado pelo Quinteto de Radamés Gnatalli, é taxativo: - Valzinho Teixeira precedeu a bossa-nova em 20 anos. Foi um incrível compositor da década de 40, logo marginalizado e rotulado de "maldito". As harmonias de Doce Veneno não poderão jamais ser esquecidas. Poucos se aventuraram, naquele período, a percorrer os caminhos melódicos tão tortuosos que ele construía. A maioria de sua obra foi composta há mais ou menos 40 anos"
O show chegava ao fim: Elizeth Cardoso, recebida de pé, falou para a platéia:- Já não tenho mais cantado em público. Hoje, estou afónica e bastante doente. Mas nada me faria faltar a essa homenagem a Valzinho. Vou cantar uma música dele que eu e o Silvio Caldas gravamos faz mais de vinte anos. Cantou: "Quando um amor vai embora". Comovido e em silêncio, o público sabia que testemunhava uma das últimas apresentações da Divina. Ela tinha càncer.
No fundo do palco, como que perturbada com a súbita exposição, a silhueta de Valzinho esvazia-se na penumbra. A làmpada do refletor destinado a salientar a bela foto acabara de queimar o filamento. Só restava o foco na figura soberba da cantora. A sombra da tarde foi-se adensando sobre o palco, a silhueta do violonista desaparecera na sombra.
Ao final, chamado ao placo, o elenco de amigos ilustres curvou-se aos aplausos. A partir daí, raramente voltou-se a falar de Valzinho Teixeira.



Odir Ramos da Costa
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui