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Cronicas-->PERDA DO FILHO -- 19/11/2001 - 18:13 (ANTONIO ELSON RODRIGUES SIQUEIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PERDA DO FILHO


Para mim nunca vai ser fácil visitá-lo nessas circunstàncias. De certa forma nosso relacionamento tem se tornado frio. Há tanto tempo que não nos abraçamos. Há tanto tempo que não ouço uma palavra sua. Como era lindo seu sorriso. Sei que vai me achar um velho tolo, mas até hoje deixo a porta entreaberta, na esperança de que você entre em nossa humilde casa sem precisar bater, e assim me surpreenda. Não sei se vivo ou se morro a cada dia em função dessa esperança. Melhor seria se Deus se apiedasse e resolvesse me colocar em seu caminho, filho. De qualquer forma, receba estas rosas que trago.

Sempre disseram que você se parecia muito comigo. Nunca concordei com isso, embora me guardasse em silêncio. O fato é que sempre o achei melhor. Sim, você era melhor do que eu. Desde que nasceu ficou em mim o desejo de lhe proporcionar viver a vida que eu não tive, de dar-lhe a possibilidade de realizar seus sonhos, porque os meus fui deixando pelo caminho. Você passou a ser meu único sonho, e minha maior felicidade. Sei que seríamos mais plenos se sua mãe tivesse ficado conosco. Porém, cada um é que sabe das suas escolhas. Ela não o assumiu, mas pelo menos concordou que você tinha o direito de nascer. Desistiu do aborto. Só por esse motivo já a tenho na conta de boa pessoa.

Fui um pai meio desesperado porque me achava na obrigação de suprir a falta que uma mãe faz. Talvez eu tenha falhado na execução desses dois papéis. Porque mesmo analisando sob todas as óticas, não consegui entender por que raios você não quis fazer o cursinho preparatório para a universidade. Você dizia que cursar Direito na velha Academia era seu sonho, afinal Álvares de Azevedo havia respirado toda aquela atmosfera e coisa e tal. E vinha lá repetindo aqueles versos "e do meio do mundo prostituto / só amores guardei ao meu charuto! / E que viva o fumar que preludia / as visões da cabeça perfumada! / (...) Que eu minha harpa votei ao esquecimento / Só peço inspiração ao meu charuto". Confesso que o achei um tanto arrogante, mesmo sabendo da sua postura diante dos malfadados cursinhos que proliferam por aí, sinal de que o ensino nas escolas anda uma droga. Além de tudo, você não fumava. Então, que história era aquela de charuto?

Às vezes, era difícil te entender.

Mas você me entendia e sabia que eu passaria fome para pagar o cursinho, que morreria de trabalhar para pagar uma universidade particular se preciso fosse. E por isso se internou naquela biblioteca durante um ano. Durante um ano esqueceu que tinha vida. Só não esqueceu que tinha um pai. Tanto sacrifício deu resultado, sim. "Passamos no vestibular, papai. Eu não disse que passaríamos?". E lá foi você estudar na melhor faculdade de Direito do país. Felicidade tão grande, meu filho, só me lembro de ter tido quando você disse, pela primeira vez, a palavra "papai", tão docemente repetida em seus lábios nos melhores momentos de nossas vidas. Naquele remoto instante eu soube que pra sempre te amaria e seria amado. Só não pude imaginar o quanto.

Ontem eu estava relendo aquele seu caderno de poesias. Jamais poderei me esquecer daquele olhar de fascinação de Catarina quando, em um almoço muito especial, com ambas as famílias reunidas, você recitou um poema em cujo final perguntava se ela o aceitaria ou não como marido, prometendo "fidelidade com amor e respeito, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, pelo resto dos nossos dias, até que a morte nos separe". Como se não bastasse, ainda executou ao violino "somewhere in time", música que ambos escolheram para ser o tema de seu romance. Tinha como ela recusar seu pedido? Eu já me desfazia em lágrimas quando você ainda me veio com aquele outro poema chamado "lágrimas de pai". Você tinha o dom de me fazer chorar.

Só que eu jamais pensei que em minha vida choraria pela sua perda.

Tiraram você de mim. Não sei se foi o aço que trespassou ligeiro seu coração. Não sei se foi o infeliz que fabricou o 38 de onde o aço foi expelido e a pólvora que o detonou. Não sei se foi só o desgraçado que apertou o gatilho. Não sei se foi o político corrupto que prometeu saúde, escola e segurança e nada cumpriu. Não sei se foi a mesquinhez da sociedade caótica em que sobrevivemos. Não sei. Nunca te pedi nada extraordinário, mas você me deu mais do que eu poderia esperar. Alguém estranho exigiu mais do que você poderia oferecer e isso lhe custou a vida. Maldita ironia.

Tiraram você de mim. Isso não se faz. Acho que Deus nem existe. Se existe: Deus, isso não se faz.
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