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Contos-->Sapatos Bicolores -- 06/02/2002 - 17:00 (Juliano Borges) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SAPATOS BICOLORES

Ribamar acordou chupando a saliva que fugia de sua boca aproveitando o sono calmo que lhe proporcionava o balançar do ônibus. Olhou para os lados e chocalhou a cabeça para afastar o atordoamento. Limpou o rosto com a manga da camisa enquanto tentava descobrir onde estava. Benfica. Levantou dando sinal e cambaleou até a porta. Ouviu o chiar da pressão enquanto a porta se abria. O ônibus ia parando quando Ribamar agradeceu ao motorista e desceu.
Há nove meses procurava emprego. Se acostumou com a idéia de que nunca mais trabalharia. Fazia biscates aqui e ali só para garantir a existência mal levada e tentar sonhar com seu próprio negócio, talvez um bar no Andaraí. Servia qualquer coisa, contanto que fosse sua própria.
Ribamar jamais teve algo que fosse só seu; a casa era do pai da mulher. Morava no Caricó naqueles tempos e era visto como um idiota por toda vizinhança. Não tinha amigos. Trabalhou por muito tempo no almoxarifado de uma firma no Caju e até sabia que o amante de sua mulher havia lhe arrumado aquele emprego, mas fingia não se importar. E fingindo Ribamar levou sua vida até que foi trocando o emprego pela cachaça e sua mulher o trocou pelo amante.
Ficou feliz em deixar de ser motivo de chacota e passar à categoria de indigente. Sem casa, teto ou família, Ribamar apreciou por muito tempo a solidão. Queimou seu fundo de garantia na Cidade Nova junto às meninas da rua Pinto de Azevedo. Teve vida de solteiro e felicidade garantida enquanto o dinheiro durou. Duas semanas de festas. Se amasiou com Tereza, que era uma de suas meninas, e tinha a intenção de ser seu homem quando arrumasse sua vida.
Não sentia nada por ela, possivelmente alguma ternura por alguém que auxiliava tanta gente. Putas são as criaturas mais dignas desse mundo. A admiração que tinha por elas acabou junto com seu dinheiro. Eu até gosto de você, Riba, mas não dá pra gente ficar junto e passar fome. A gente pode continuar se vendo, mas aqui não dá pra você ficar. Ele entendeu que sem o dinheiro não era mais que uma massa gorda e mal formada.
Carregava para cima e para baixo um pacote sujo com suas três mudas de roupa e seu maior bem que eram os sapatos bicolores. Ribamar costumava colocá-los para impressionar os travestis da Lapa e as mulheres da zona nos seus últimos tempos de solteiro. Sentia-se um sujeito importante em cima deles. Esquecia a cara feia de nariz grande e achatado, os olhos estrábicos e a barriga imensa quando os calçava. Não lembrava ser um homem que fedia a azedo e da boca desdentada. Esquecia que era um excremento e que ninguém se importava com ele. Os sapatos lhe devolviam a dignidade que nunca teve, eram um instrumento de mudança da sua verdade. Os bicolores lhe conferiam personalidade e determinação. Não era um joão ninguém, mas um homem que mesmo sem estudo podia ter algo para si. Com aqueles sapatos ultrapassados já não se sentia nem corno nem humilhado.
O pacote, todo amassado, se acomodava em sua axila que a muitos dias não conhecia água. Na mão um jornal amarrotado com endereços circulados. Caminhou pela Suburbana até alcançar o número 834 da Prefeito Olimpio de Melo. Era um galpão grande com um portão de aço. Tocou a campainha e esperou que uma porta pequena do portão se abrisse. É daqui que estão pedindo um auxiliar de almoxarifado? O guarda não respondeu, apontou para o interior à esquerda onde já havia uma fila com umas vinte pessoas. Abriu o pacote, colocou os bicolores enquanto esperava na fila. Não foi aceito. Não tinha endereço nem referências. Acharam que ele era ex-presidiário. Bêbado não tem referência, pensou sem dizer.
Ribamar arrastou seu corpo sujo e fedorento durante todo o dia por cinco empresas. Foi andando quase até o Méier sem arranjar nada. Só fome e muito ódio do mundo. Cansou de trocar os sapatos e viu que eles já não funcionavam. Sentia o peso do fracasso por cada centímetro de seu corpo destruído pela decepção. O cheiro de seu suor incomodava até a ele próprio. Rodelas sebosas se formavam na camisa encardida de gola e punhos puídos, a calça remendada tinha o traseiro sujo da imundície do mundo que dizia não haver vagas. Os dentes podres, a barba encalacrada e o pescoço coberto de granfanha eram a vingança biológia que cultivava como resposta aos outros. Asco era a única forma de vingança que lhe restava. Já haviam lhe tomado tudo agora.
Seis e quinze. Ainda fazia calor. Ribamar entrou num bar na Vinte e Quatro de Maio pediu uma branquinha com o dinheiro que economizou por todo o dia caminhando, viu sua imagem num espelho e sentiu pena de si. Havia um gosto amargo na boca. Puxou um catarro e despejou-o no chão. Ei idiota, você faz isso em casa? Virou num só gole e se retirou do bar. Circulou pelo bairro já que não tinha para onde ir. Quis ser amado, mas já não podia pagar. Vagou errante até o Engenho de Dentro. Dez e vinte.
Ribamar avistou uma garotinha albina quando ia cruzar a Souza Aguiar com a Bueno de Paiva. Pensou como seria ter uma filhinha albina e achou graça. A menina olhou assustada para o monte de estrume Ribamar. Olhou com satisfação e imaginou como seria possuir uma mulher como aquela. A menina seguiu seu caminho apertando o passo enquanto os pensamentos do homem se fixavam na mulherzinha de onze anos. Começou a segui-la pelas ruas mal iluminadas pensando que gostaria de ser feliz. Excitou-se com a idéia de tomá-la para si acariciar seus cabelos brancos e beijar sua pele clara como açúcar.
Encostou-se num poste e abriu o pacote. Tirou o velho par com furos na sola e colocou os bicolores. A albina estava longe, por certo, mas já não andava tão depressa. Deixou o pacote no chão e percorreu a rua escura com cuidado para não sujar ou arranhar os bicolores. Sentia-se homem o bastante para possuir qualquer mulher. Não teve dificuldade para alcançar a garotinha. Abraçou-a com força se assustando com os gritos da menina. Excitava-o ver o contraste de suas peles. A limpeza, a higiene, o perfume daquela mulher.
Levou-a para um canto ainda mais escuro e calou-a com um beijo. Tocou as feridas de sua boca no pescoço da menina que chorava e pedia para que parasse com desespero inconformado. Rasgou sua blusa e alisou a barriga e os peitinhos que começavam a nascer. A albina derramava suas lágrimas e fechava os olhos fugindo de Ribamar. Levantou sua saia, desceu a calcinha e a desvirginou com o dedo sujo. Abriu a braguilha e a penetrou com todo seu amor. A garotinha chorava um gemido soluçado enquanto cantava baixinho um hino religioso. O êxtase foi rápido. Ele estava satisfeito. Não pagou. Puxou o fecho da calça e olhou com estranheza a menininha que lhe havia recusado. Se afastou para a luz fraca. Os bicolores brilharam novamente. Ribamar sorriu. A albina não se mexia, movia somente os olhos e chorava com a garganta sem fazer nenhum barulho.
Voltou até o poste e pegou o pacote do chão. O mundo não era tão mau assim.

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