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Contos-->Minha história -- 06/02/2002 - 23:11 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar... eu só sei que falava, cheirava e gostava de mar...”

Minha cabeça dói. Na verdade o corpo inteiro dói. Sinto minha camisa de seda úmida. A gola parece estar desalinhada. Minha vida foi desalinhada, sem norte, desarrumada, desde que nasci.

Não sei quem é meu pai. Sei que trabalhava num barco. Sei que aportou em Santos, na década de 60, e que prometeu amor eterno à mãe. O vô era funcionário da prefeitura. Uma espécie de contínuo de luxo servindo a Câmara Municipal. Um puxa-saco concursado. A mãe se apaixonou por aquele homem que tinha vindo do Rio de Janeiro. Pelo menos era o que ele afirmava. Tia Lúcia dizia que o pai era bonitão. Muito alto, pele bronzeada pelo sol ardente dos trópicos, músculos evidentes, sorriso perfeito, lábia perfeita. Conheceu a mãe numa calçada na Avenida Afonso Pena. Ele bebia com os amigos do barco, a mãe passou, cadernos espremendo os seios ainda pequenos, cabelos pretos enfeitados com tranças laterais, um olhar temeroso, menina-moça pronta para desabrochar para a sexualidade. Ia às missas aos domingos com as irmãs. Nunca namorara, tinha dezessete anos quando topou com aquele homem imenso que a seguiu. Primeiro sentiu medo. Mas foi relaxando com os galanteios que ele disparava incessantemente. Derreteu-se quando o pai roubou uma rosa vermelha de um pequeno jardim na Rua Liberdade e lhe entregou. Ela quis beijar a flor, mas avistou o irmão mais velho conversando com os amigos na esquina. Deu um sinal para o homem que a perseguiu. Ele se afastou. Fez uma confissão de amor a primeira vista e desapareceu da rua. Sorte o tio não perceber, pensou a mãe. Ela colocou a rosa entre os cadernos, tomando o cuidado de amassá-la o menos possível. Nem deu boa tarde para a vó, correu para o seu quarto. Tia Lúcia, mais velha, estava lá e percebeu algo diferente na irmã. “O que foi, viu assombração, menina?” A mãe respondeu com um sorriso. Descreveu o pai como um deus dos mares. Pegou a rosa, enfim a beijou e a fitou, como se visse nela o corpo esguio daquele homem. A tia perguntou quantos anos ele tinha. Uns vinte e três, vinte e quatro. No máximo vinte e cinco. Souberam depois que eram quase trinta anos, de porto em porto, arrasando corações, deflorando as moças virgens das cidades onde se hospedava. Um galanteador profissional, um fazedor de discórdia entre famílias, um desfazedor de lares.

Bastaram três dias para o homem convencer a mãe a faltar à aula. Convidou-a para tomar sorvete na Praça da República. Ele contou suas aventuras nos mares. Relatou com todos os pormenores a última tempestade que havia enfrentado. Chegou a cair no mar, mas não temeu. Pediu a bênção de todos os santos, enfrentou as gigantescas ondas, resistiu até ser socorrido por um barco de pescadores. Não temia nada, afirmou. Temia apenas a paixão que sentira pela jovem santista que, depois de tantos e tantos desembarques, em tantas terras diferentes, dentre tantas outras mulheres maravilhosas, arrebatara sem dó e sem permissão o coração do jovem marinheiro destemido. A mãe ouvia os relatos impressionada. Quase não piscava. Hora ou outra, quando o homem desviava o olhar para o além, ela apreciava os músculos de seu braço moreno e sua tatuagem de dragão acompanhada de seu nome. Pedia perdão a Deus e aos santos pelo que estava sentindo. Uma quentura no rosto, um frio na barriga, um desejo diferente de todos os outros que sentira até então. Naquele dia, a vó Pilar tinha ido ao Centro com a dona Dolores, vizinha de longa data, olhos de lince. Foi dona Dolores quem viu a mãe primeiro sentada ao lado daquele estrangeiro, cara de homem feito, de homem de bar. Cutucou a vó. A velha Pilar se espantou, pensou em abordar a filha naquele momento, mas fingiu para a amiga que se tratava de um conhecido do marido, que não tinha perigo, nada importante. “Mas ela não devia estar na escola a esta hora? – perguntou, maliciosa, a Dolores”. A vó deu uma desculpa qualquer, mudou de assunto, prosseguiu com a vizinha pelas ruas, aflita, apavorada, mas se fingindo de despreocupada.

- Foge comigo, Maria! – ele sentenciou.

A mãe perdeu a cor, que já lhe era pouca. Começou a tremer da cabeça aos pés, sentiu uma tontura insistente, teve vontade de vomitar ali mesmo, no colo daquele que lhe conquistara o coração ainda virgem. Respondeu que ele estava louco, que aquilo era impossível, que o vô lhe perseguiria pelo mundo afora, nem que fosse para o inferno. Ele interrompeu seu pronunciamento com um beijo na boca avermelhada da jovem. Ela tentou resistir, mas ele segurou seus braços finos com força. Uma força comedida, que impunha à mãe o gesto de se render, porém não a machucava. Ela se entregou ao beijo e deixou seu corpo inteiro amolecer. Quando seus lábios se desgrudaram ela ainda sentiu força para recolher os cadernos e livros e sair em disparada, sem se despedir, na direção oposta à que devia ser seu caminho. Correu o mais que pôde até se distanciar da praça. Parou em frente a uma floricultura, ofegante, pálida, com as pernas bambas. Limpou os lábios com a parte externa da mão. Sentiu o peso do pecado lhe oprimir a alma. Pensou na mãe, no pai, nos irmãos e irmãs. Na Virgem, no Coração de Jesus. Faltavam ainda duas horas para ela poder voltar para casa. Entrou num bar e pareceu que todos os homens lhe desejavam. Desistiu de pedir água. Retirou-se, assustada. Uma mão lhe tocou o ombro, uma voz chamou seu nome. “Maria?”

* * *

A mãe chegou em frente ao portão às cinco e meia da tarde, o horário habitual que voltava do colégio. A mão amiga da professora do primário Rita de Cássia lhe trouxe algum conforto enquanto estava no Centro. Dona Rita a convidou para tomar um refrigerante, estava assustada com a palidez da antiga aluna. Por mais que a professora tivesse insistido em saber por que a menina estava daquele jeito, a mãe mal abriu a boca nos primeiros minutos. Só depois de muito tempo parou de tremer. Conversaram por meia hora, a mãe sempre olhando para os lados, temendo rever o homem que havia lhe beijado sem permissão. Dona Rita a levou até a parada de ônibus e a mãe só se sentiu segura depois de olhar um a um os passageiros do coletivo.

Tudo era normal em sua casa. Tia Lúcia ajudava a vó a preparar o jantar. Ricardo e Ronaldo – os irmãos – conversavam com os amigos na rua. O vô chegava, no mais tardar, às sete horas. Ela se ofereceu para ajudar com o jantar. Dona Pilar não respondeu. Então ela se dirigiu para o quarto. Queria tomar um banho para aliviar a tensão, e foi o que fez. Não desconfiou da indiferença da vó, quando da sua chegada. Avisou que ficaria no quarto para fazer o dever. De fato pegou um livro de geografia, mas não conseguiu ler sequer uma linha. Foi lembrando do hálito do homem, do embaraçar da sua língua, do aperto em seus braços. A tontura voltou. Quando tia Lúcia bateu à porta, a mãe dormia agarrada ao livro. Eram sete e meia.

O vô, não se sabe por quê, chegou mais tarde naquela noite. Não quis jantar, só queria tirar suas botas pretas que ganhara de um vereador de segundo mandato, esticar os pés calejados num banquinho e ler “A Tribuna”. Bastaram dez minutos para a vó delatar a mãe. E meia hora para ele surrá-la como nunca fizera com um dos filhos. Meia hora para arrancar sangue da boca e do nariz da mãe, para xingá-la de tudo quanto era nome, para expulsá-la de casa. “Pra nunca mais voltar, sua vadia!” – berrava para a vizinhança toda ouvir. A mãe, em princípio, pediu para o vô parar. Não implorou, mas pediu. A cada sílaba que a mãe pronunciava ele lhe dava um soco na boca, até que o seu Rui – um amigo do vô – conseguiu enfim convencê-lo a parar. Foi quando a mãe resgatou o pouco que tinha de força para segurar a mala que seu pai tinha jogado na calçada. Olhou para a vó e para os irmãos. Esses últimos, com olhar de compaixão, ameaçaram lhe ajudar, mas o vô não permitiu. Ainda espumava, o velho. Por um momento, quando a mãe virou as costas para sua família, pareceu que o vô ia se arrepender. Ele voltou à porta da sala, ameaçou dizer uma coisa, mas em seguida teve de ser novamente seguro.

- Vou atrás do meu homem! – disse a mãe.


* * *


Comecei a discutir com o sujeito não sei bem por quê. Estava no bar da boate há quatro horas, pelo menos. Sei que tomei pelo menos umas seis latas de cerveja e talvez mais de uma dezena de doses de caninha pura. Sempre freqüentei aquele lugar. Praticamente cresci ali. Ali e nas redondezas. Lá fora eu brincava sozinho. Fazia barcos e bonequinhos de papel e os lançava no córrego que ficava atrás. Na minha inocência de criança eu achava que meus bonequinhos atravessariam o córrego até chegarem ao mar para levar meus recados para o meu pai. Não sei se algum deles foi parar em suas mãos, pressinto que sim. Também brincava com os carrinhos que as tias me levavam no Dia das Crianças e no Natal. Nasci no dia de Natal, e por isso só ganhava um presente. Elas iam lá de dia, escondidas do vô. Mesmo depois que o velho bateu as botas só iam de dia. Meus tios, a vó e os antigos amigos da mãe não tinha coragem de ir àquele lugar. Nem de noite, nem de dia. Apesar das minhas andanças depois que cresci, aquele era meu lar. Era o único lugar do mundo onde eu me sentia plenamente seguro. Todos me conheciam, todos me respeitavam, mesmo eu sendo ainda moço. Todas as minhas bebedeiras e desmandos eram tolerados em respeito à memória da mãe, que fora muito considerada enquanto viveu. Mas hoje havia um forasteiro fanfarrão querendo levar Madalena para o quarto à força. Assim que percebi, soltei um grito que silenciou o ambiente. “Solta ela, fdp!” O homem então deixou Madalena se afastar e exibiu um sorriso parcialmente dourado. “Não quero encrenca, garoto! Se a quenga é tua, fica tu com ela!” Quase deixei pra lá, mas ouvi um sussurro em meu ouvindo, quase um zumbido, perguntando se eu iria deixar barato. Diante daquele desafio, resolvi levantar da cadeira e me aproximar do forasteiro. Dei-lhe um tapa desafiador no ombro musculoso. Ele, distraído, deixou derrubar um pouco da cerveja do seu copo. As pessoas riram. O velho permaneceu ali parado, calado, respirando calmamente, talvez à espera de que o bêbado se cansasse de lhe provocar. Mas eu insisti. Comecei a gritar que ali quem mandava era eu e que nenhum bunda mole de fora iria incomodar nossas moças. Ordenei-lhe que me pagasse uma bebida. O homem nada falou. Virei-me para os amigos que estavam no fundo do bar e ri muito alto, caçoando do forasteiro. Quando me preparava para falar novamente com ele senti o golpe da adaga em meu pescoço. Só tive tempo de levar a mão direita em direção ao ferimento antes de levar o segundo golpe, desta vez no rosto. Caí, em seguida. Senti o sangue escorrendo do pescoço para o tórax, manchando a camisa branca. Ouvi ainda as mulheres gritando meu nome, mas ninguém chegou perto do forasteiro. Ele ainda se debruçou sobre mim e ameaçou me dizer algo, apontando a ponta da faca para os meus olhos. Mas nesta hora, quando nossos olhares finalmente se cruzaram, pareceram se reconhecer. Ele desistiu do golpe de misericórdia e afastou a arma lentamente. Tinha mais de cinqüenta anos, meu algoz. E uma tatuagem de dragão no braço direito com a inscrição José.

“... Os ladrões, as amantes, meus colegas de copo e de cruz; me conhecem só pelo meu nome; de menino Jesus...”
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