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cronicas-->A Imortal Noite do Imortal -- 09/04/2000 - 02:15 (Carlos Alberto Bastos Barbosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Chegou o dia. Na verdade, o dia é que foi alcançado por nosso herói insone a palmilhar lembranças na longa noite da véspera. Nas próximas horas se tornaria imortal. Nome e obra para sempre gravados na literatura do planalto central. Logo mais estaria a caráter, vivendo o momento tão esperado. Seria saudado pelos confrades nos conformes, no rigor da academia, e pronto. Decisões tomadas, outras esquecidas, encontros e desencontros; portas e janelas, umas abertas, outras fechadas; amores, amigos e associações sólidos; tudo isso junto sendo a vida, os versos e os livros que tão cuidadosamente construiu.
O poeta talvez tenha enfrentado essas ondas de emoção naquela noite, talvez tenha dormido sereno. O fato é que ao amanhecer percebeu que não tinha controle sobre nada, as coisas aconteciam aos golpes. A cozinha, a sala, corredores e garagem tomados pela azáfama de empregados, familiares e amigos. Todos os cuidados haviam sido tomados para que a noite do imortal fosse perfeita.
O "buffet" contratado era dos melhores da cidade, de serviço costumeiro em embaixadas e festas coroadas da corte. A lista de convidados havia sido repassada ene vezes. Presenças confirmadíssimas. A noite de segunda-feira, vazia de eventos, sem concorrentes diretos, colocara os amigos empresários, políticos, juristas, religiosos, diplomatas, literatos de todo estilo e estirpe, ali, na bandeja de sua festa.
Nunca uma noite foi tão ansiosamente esperada. A solenidade iria acontecer no auditório do Memorial JK. Nada mais apropriado ao poeta, pioneiro que era de primeira poeira.
O ambiente histórico e solene era a moldura ideal para o nascimento de sua imortalidade.
"Todo mundo vai estar lá", alegrava-se previamente. A saudação seria feita por um de seus melhores amigos. Por certo iria elevar sua condição e suas habilidades a alturas exageradas. Mas tudo seria festa, e esses exageros não mereceriam correção, tinha certeza. O seu discurso, esse sim, estava pronto há dias, fruto de horas e horas debruçado sobre citações próprias e alheias, relendo poemas, construindo frases e parágrafos com o mesmo zelo com o qual amalgamara sua vida de trabalho.
A tarde prenunciava uma noite agradável...até pouco depois do àngelus, quando desabou um temporal como há muito não se via em Brasília. A água bateu com força e convicção no solo, dando uma nota destoante à noite do nosso imortal. Caiu e se recusou a parar com seus grossos pingos, jorros e correntezas.
Fazia algum tempo que não se tinha posse na Academia com aquele aparato. Muitas delas tinham se dado em reuniões ordinárias, sem coquetel, sem platéias expressivas, no meio da tarde. Mas a que estamos a acompanhar, não. Os pares de nosso herói, antigos e neófitos, com o devido respeito ao asfalto molhado e escorregadio, não paravam de chegar ao Memorial. Antes do horário marcado para o início da sessão solene, o público presente lotava o salão de espera. A impressão era de que não faltava mais ninguém. Tudo pronto... e a sessão não começava. O atraso nos trabalhos, soube-se logo, era motivado pelo orador, aquele que iria fazer a saudação, o grande amigo do homenageado, que ainda não havia chegado.
E a chuva não parava. O poeta homenageado, a essa altura, deixava transparecer uma leve agitação. Hora e mei depois do horário marcado para o início da sessão, foi dado o comando para que os convidados se dirigissem ao auditório. Pronto, o cansaço pela espera do orador estava findo. Todos se acomodaram em confortáveis poltronas, a atenção voltada para a coroação que se avizinhava.
Chovia muito lá fora, ainda, quando a mesa diretora, cumpridas as formalidades, informou que um outro acadêmico, não menos ilustre que o orador ausente, faria a saudação ao neo-imortal. A reação da platéia, póde-se claramente perceber, foi de alívio. Enfim, a posse aconteceria.
O orador improvisado, e destemido, subiu ao púlpito. Dirigiiu-se elegantemente à mesa e aos presentes, e deu corda aos encómios e citações de obras e passagens do noviço par. E assim seguiu, torrencialmente, a dar cabo da missão de introduzir o poeta na imortalidade. Até que da platéia brotou um zunzunzum de espanto e horror: o representante do Governador estava em convulsão, contorcido e derreado na cadeira, ao centro da mesa diretora da sessão.Em sua agitação, emitia silvos estranhos, angustiantes e intermitentes. Ninguém acreditava no que via, ninguém tomava uma providência. O orador, desorientado, quedou-se mudo no púlpito.
Após curtas e contidas exclamações, um silêncio respeitoso e pesado desceu sobre o Memorial. O homem parecia estar a morrer, ali, na frente de todos. Foi então que se ouviu a presidente da sessão fazer o clássico pedido por um médico na platéia.
Um senhor idoso levantou-se na primeira fila. Com certa dificuldade deu alguns passos reto ao ponto onde se desenrolava o drama. Antes que outra tragédia acontecesse, foi avisado que a escada ficava na lateral e não no centro do palco. Enquanto isso, algumas pessoas cercavam a cadeira onde o pobre homem se estertorava. O doutor, pois certo que era doutor o senhor idoso, demorava-se em percorrer os quinze metros mais longos da história da Academia. Em silêncio, a platéia seguia os passos hesitantes do doutor e sentia na alma a evolução dos assovios. Esses formavam ondas sonoras supliciantes. Mas ninguém se mexia, além do velho doutor que, a essa altura, se aproximava do doente. Enfim, chegou à cabeçeira do doente, por assim dizer, tocou a testa dele, observou-o mais de perto e afirmou, com segurança, que ele próprio não era médico e sim veterinário.
Foi então que alguém lembrou-se de chamar uma ambulància. Foi como um ordem de mexa-se à platéia. Surgiram opiniões, muitos se levantaram, quebrou-se a estupefação. Algumas mulheres se retiraram afobadas. Até o homenageado saiu do estupor em que se instalara, reassumiu sua postura firme e decidida. Em meio ao tenso burburinho, chamou os filhos e os fez carregar o agonizante, com cadeira e tudo. Com cuidado, palco abaixo, corredor acima, conduziram o andor improvisado e depositaram o pobre senhor no saguão a esperar a ambulància.
Nem bem os convidados voltaram aos seus assentos, o orador retomou seu improviso empolgado. Mas logo demonstrou estar incomodado pelo burburinho que persistia ao fundo do auditório. Alteou a voz e, em meio aos elogios, repreendeu os que daquela forma desrespeitavam a casa e o momento. Não percebeu o indignado orador que os rumores tinham origem no enfartado, que ainda penava à espera de socorro médico. E a platéia, desconcertada e inquieta, se dividia entre o discurso inflamado do orador e os sopros agoniados do convidado especial.
Concluída a apresentação do novo acadêmico, foi a vez do nosso imortal poeta discursar. Conduziu-se fluentemente pelos caminhos de sua vida e de sua obra literária, lembrando amigos e raízes territoriais e culturais. Enfim, cumpriu o clássico roteiro com mestria e elegància. Cravejou seu pronunciamento com um poema de sua lavra e recebeu os merecidos aplausos. Parecia que a cerimónia retomava o clima de sonho, quando um colega pediu a palavra para fazer um elogio ao poeta; e sapecou em alto e bom som o mesmo poema que o empossado acabara de declamar. Angustiado, espremendo-se na cadeira, nosso imortal temia pelas indagações e comentários que percorriam, naquele momento, a platéia.
Atónito ficou, na sequência, ao ouvir a presidente da sessão anunciar o coral da maçonaria. O coral não estava presente! Ele próprio avisara a presidente no dia anterior que, infelizmente, o coral não se apresentaria mais em sua posse. E agora, ela insistia em chamar o coral ao palco, procurando por seus componentes com olhares preocupados, no que era seguida pela platéia. Por um milagre,o já empossado acadêmico conseguiu por gestos fazer com que ela dirigente lembrasse que o coral não estava presente. Encolheu-se mais ainda em sua cadeira. A noite do nosso herói era quem despontava, definitivamente, para a imortalidade.
Finalmente o rosário foi desfiado por inteiro e os convidados puderam, então e enfim, festejar a posse do poeta na Academia de Letras, entre abraços, tapinhas nas costas, goles de vinho e ataques aos canapés. Ainda chovia lá fora, meia-noite passada. O cansaço tomava conta dos convidados. O homenageado vivia um estresse crescente, pois em meio às comemorações não conseguia esquecer-se de seu amigo, aquele que o saudaria na posse e que até aquele instante não dera notícia; nem tampouco do representante do Governador que saíra dali em processo de enfarto, direto para um atendimento de emergência. Até o final do coquetel, entre sorrisos e palavras gentis dominava em seu íntimo essas preocupações.
Já em casa, madrugada avançada, meio tonto com os acontecimentos, adormeceu sem maiores sustos, posto que imortal. Ao despertar, sentiu a falta da amada ao seu lado. Não teve tempo de se perguntar o que acontecera. Gemidos vindo do banheiro da suíte denunciavam as tremendas cólicas que atacavam sua companheira. Daí em diante, a manhã do nosso herói imortal foi preenchida com cuidados médicos e farmacêuticos a si e aos seus familiares. Telefonemas chegavam de todos os cantos da cidade denunciando transtornos intestinais nos convidados da noite anterior. "O que mais poderia acontecer, meu Deus?", lamentava-se o poeta imortal.
Foi quando, no meio daquela aflição, lembrou-se do amigo, do orador que não aparecera na posse. Pegou o telefone e discou apreensivo, imaginando o que poderia tê-lo impedido de comparecer à festa. Tão logo atenderam, deu "bom dia" e identificou-se. Do outro lado, seu grande amigo estava esfuziante, animadíssimo. "Como vai o amigo? Eu já estou com o discurso prontinho e na ponta da língua, para logo mais à noite!" Perplexo, não teve saída senão lembrar ao amigo a faltta que fizera na noite anterior. "A posse foi ontem, amigo!". O silêncio do outro lado da linha assustou o neo-acadêmico. Preso ao telefone repetiu alós à exaustão. Mais tarde soube que seu amigo passara mal, desfalecera sob o impacto da notícia, sob o peso da falta: princípio de enfarto.

fim
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