Usina de Letras
Usina de Letras
156 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62228 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22536)

Discursos (3238)

Ensaios - (10364)

Erótico (13569)

Frases (50622)

Humor (20031)

Infantil (5433)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140803)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6190)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O ducentésimo degrau -- 10/02/2002 - 12:35 (Odir Ramos da Costa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O ducentésimo degrau


Lucimar sempre acreditou no poder de Deus. Sempre temeu a força do diabo. Toda a vida rezou de conformidade com a Igreja Católica Apostólica Romana, embora às segundas-feiras dedicasse vela para as almas, não estando bem certa aonde a luz iria alcançá-las: se no céu, no inferno ou purgatório, no espaço infinito, nas trevas ou nos umbrais da bem-aventurança.
Respeitou a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé, o Vodu (fiou-se na proteção da fitinha do Bonfim dobradinha no fundo da bolsa. Junto, a figa de guiné, o terço de contas opalinas e o galho de arruda seco). Vadiou em terreiros vários.
Punha fé na proteção dos orixás, dos caboclos, de todos os guias, de todas as falanges de luz e dos erês. Deu muito doce pra Cosme e Damião, comeu romã dos Reis, maçã de Buda, enfeitou com rosas brancas para Rainha Iemanjá quantidades de ondas lamacentas em Sepetiba. Banhou-se em cachoeiras de Oxum. Deu quiabo e cerveja preta a Xangô, ofertou ebó, cumpriu obrigações. Guardou fé e confiança, menos nos exus, de quem tinha medo. Medo igual sentia pelo tarô, gostando mais de horóscopo - era Leão, signo dos fortes de espírito -, cujos poderes de previsão, inferiores aos dos búzios, são infalíveis se decifrados por pai Chico Fuia, mestre no ofício. Ciganas ledoras de mãos, corria delas.
Cria em Deus Pai, no Filho, não comia pombo e cordeiro nem morta, e no Espírito Santo. Devota de São Judas Tadeu, filha de Oxum com Oxumaré, não fez cabeça, quase, banhou-se com muito descarrego, foi pontual na Missa do Galo, da Páscoa e de São Benedito, protetor dos negros.

........................................................................................................................

O milagre se deu na festa da Penha, em outubro, pelas alturas do ducentésimo degrau. Subia a escadaria com seu coração de cera apertado ao peito, numa antecipada retribuição à graça por chegar. Esbarraram-se na apertura de gente.
- Me desculpe, irmã.
O rapaz falou lindo, aveludado na camisa xadrez e esverdeado no olhar de raiban, abaixando-se para apanhar no chão o ex-voto de cera crespo de pó. Limpou-o no macio da camisa, devolvendo-o:
- A Bíblia condena a idolatria, irmãzinha.
Lucimar aceitou a gentileza, mas resistiu ao ensinamento, apertando o ex-voto contra o peito. Eram dois os corações descompassados de alegria. Enfim, o raiban e a camisa xadrez bem assentados em pessoa tão educada lhe reforçavam a convicção de que chegara o momento de sonhar com o futuro bem-posto.
Atravessaram o ano trocando lugares-comuns, interrompidos, apenas, pelas divergências de praxe.
Marcou-se o casamento para o outubro seguinte, ali mesmo, na Penha, em agradecimento à graça do encontro no ducentésimo degrau.
Por vontade dela, fazia questão, queria-porque-queria subir de joelhos os trezentos e sessenta cinco degraus, dizer o sim lá em cima, envolta nas nuvens da Leopoldina.
O noivo, de terno azul marinho emoldurando a camisa rosa, gravata resplandecente e sapato bicolor, franzia a cara, muito aborrecido, por ceder à tentação do amor. Casar-se em igreja romana contrariava a fé evangélica. Esposar-se na igreja fincada nas grimpas do morro sacrificava a elegância das calças de vinco permanente. Subir ajoelhado trezentos e sessenta e cinco degraus, o ano simbolizado na dureza do cimento áspero, um dia atrás do outro, mais outro, mais outro, gastando joelhos no raiar do primeiro de janeiro até o derradeiro reveillon nas grimpas da penha, não, não iria. Discordava de penitências descabidas, disse, enquanto tomava caldo de cana e comia fatias de queijo minas no melhor quiosque de tira-gosto da quermesse suburbana.
Por que? decepcionou-se a noiva, as lágrimas em vias de desmanchar o rímel. Porque-porque, ele escarafunchou argumentos, falou do sacrilégio, repetiu admoestações, condenou adoração aos ídolos de barro. Mostrou o vinco da calça, ocorria-lhe a boa desculpa: - Machuca as rótulas, benzinho.
Rótulas? Lucimar encabulou-se com a estranha palavra. Rótulas, ele repetiu, ao seu jeito de homem sério, orgulhoso com o efeito produzido. Ela via outra coisa no sorriso dele: pedacinhos de queijo minas agarrados aos dentes emprestavam salpicos laticínios ao sorriso econômico do noivo. Lucimar imaginou-se com a língua a passear naqueles dentes, catando os fragmentos de queijos, a boca sorvendo catupiris e mussarelas, estas e quaisquer outras emanações leitosas do amado.
- Vamos precisar das rótulas inteirinhas, logo mais, meu bem - ele estendeu o instante de descontração, algo raro entre os dois.
Lucimar afogueou-se, por baixo dos brancos de noiva lhe percorria uma sugestão de tremelico. A tempo, deu-se conta da impropriedade do momento para manifestações de regozijo antecipado, tudo tem sua hora, rendia-se às conveniências. Até então, aos trinta e dois anos, reservara-se toda para aquele logo mais. Fosse o que fosse a tal de rótula, ficaria bem cuidada para o bem-bom da efeméride.
Subiriam os trezentos e sessenta e cinco degraus a pé. Que fosse na frente a parentada dela, esperasse lá em cima: o noivo impunha nova condição, passeando a língua nos dentes - queijo minas do bom parece que se multiplica em muitas crias na boca, procria rebanhos de pedacinhos farelentos, caça-se o último com a ponta da língua, inspeciona-se, garante-se que acabaram os bezerrinhos, de repente lá está mais um, encravado nas cavidades de um molar. Finca-se nele o dente, tritura-se, o danado do gostinho dos currais das alterosas invade as papilas gustativas, Minas resiste nos lugarzinhos mais recônditos que se possa imaginar.
Na subida, sob o radicalismo do sol da primavera enganosa, iam os dois, cada qual agarrado ao seu pensamento. Lucimar ansiosa por ver chegar a hora de entrar na meia-água de quarto sala, na rua de barro em Queimados. O noivo, bem, os noivos costumam chegar a essa hora sugados da capacidade pensativa: tantas correrias, tantos preparativos, tantas ansiedades com atrasos de costura e outras relevâncias reduzem o protagonista à condição de figurante de luxo, com direito a uma única fala: sim.
Sim. É só o que se espera deles, mesmo que para dizê-lo tenham que subir um ano simbolizado em degraus, debaixo de sol derretedor de opiniões.
Conseguiram chegar ao meio ano penitente. Ali, pelo centésimo octogésimo degrau. Não fora tudo mera simbologia piedosa, estariam, por assim dizer, gozando os amenos degraus de junho, com direito às aragens vindas da praia de Ramos, que, se não presta para banhos, ao menos há de servir para atenuar os calorões que sopram da Baixada. Porém, simbolismos à parte, de concreto havia, literalmente, a escadaria sob o sol furioso.
Lucimar atrevera-se à única concessão à elegância: tirara os sapatos de salto alto e calçara sandálias de andar em casa, apropriadíssimas para o sacrifício.
O noivo, nem isso. Fora educado na circunspecção luterana, que nunca levou em conta a metereologia da Leopoldina.
No ducentésimo degrau, mesmo patamar que testemunhara, um ano antes, o primeiro e único esbarrão de sua vida, Lucimar fez pausa para ganhar o beijo das apaixonadas. Pausa para o beijo, também para abanar-se com o lequezinho de organdi, no qual duas pombinhas caprichosamente bordadas adejavam para lá e para cá, menos para refrescar, mais dizer que dois corações abrasados pingavam de felicidade.
Nem bem as duas pombinhas fixadas em ponto de cruz começaram seu bailado, na mesma apinhada área de descanso do degrau, Lucimar viu o rapaz de mangas compridas, colarinho abotoado e Bíblia na mão, apanhar no chão o ex-voto da romeira e segredar-lhe algo ao ouvido. A moça recebeu o ex-voto devolvido pelo jovem crente, sorrindo com a felicidade de colegial em saída de escola.
Lucimar encantou-se: com os olhos úmidos fixos na cena, fez o sinal da cruz no ar, abençoando a si e ao ato que testemunhara. Ali, diante dos seus olhos, sem qualquer chance para contestações, se desenrolava, repetida, exatamente um ano depois, a prova de que a fé ajuda a quem escala montanhas.
Virou-se, feliz, queria comentar a coincidência com o noivo. Virou-se, porque iria provar que nas desavenças de praxe era dela a razão: a força dos orixás era mais forte; o tarô não falhava, São Judas Tadeu e São Benedito acudiam os aflitos, sim senhor; ebós que se oferta vêm de volta, em dobro; religião não se discute, Deus é pai de todos.
Virou-se para o beijo unificador de todas as crenças.
Onde se metera o noivo? Não o achou no primeiro instante, nem depois, nem depois. Já de lágrimas no rímel, na pontinha do pés, conseguiu vê-lo, lá embaixo, muito lá embaixo, descendo os degraus de dois em dois, rompendo em sentido contrário à fé geral, rumo ao ponto de partida, retrocedendo no calendário, rápido na volta às origens, rápido, cada vez mais rápido... já chegando aos degraus de janeiro.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui