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Contos-->A perda -- 09/05/2000 - 22:02 (Fernando Carreiro Albuquerque) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A perda



I

Nas horas vagas da madrugada que se esvazia no silencioso toque de recolher do frio recalcitrante , num ritmo de misteriosa equação , carros passam na sua maioria voltando de fastígios noturnos e urbanos escoados entre cúmplices da mesma ansiedade ; quase se houve a dissonância do abandono das ruas que varridas pelo vento já não têm mais o que ser levantado do chão , e por isso só o semáforo da esquina balança : luminosa fruta prestes a cair do galho, de verde a madura- rubra.

Os pés que vêm caminhando pela calçada , pulando buracos , saliências e escatologia canina parecem um tanto quanto aflitos. Os braços se esfregam mutuamente cruzados diante do peito em resposta tímida ao ar gelado. Cada carro que passa é visitado por um olhar do caminhante , seu rosto enquanto anda alterna claros e escuros a medida em que a marcha evolui de uma luminária pública para outra , fazendo-nos perceber nos momentos iluminados os lábios mordidos , olhos vermelhos de pestanas sobrecarregadas, contrapondo ao esmaecido tremor dos passos , que vão ficando trôpegos de tão nervosos.

Após alguns minutos totalmente vazios de caminhada , uma porta faz o passante parar e suspirar enquanto as mãos procuram e acham chaves que coincidentemente estalam a fechadura e abrem o limite entre o vácuo dos deslocamentos humanos e o vestíbulo que bafeja quente e irresistível como colo materno.

O rapaz palpa o corrimão diante de trinta degraus que o levam com vigor até agora não notado , como se fosse aquele esforço o derradeiro, a uma porta com um número desbotado.

A memória lhe parece espolcar em cenas aleatórias no início , que vão se concatenando magicamente enquanto entra num sala sem mobília supérflua : só uma geladeira , uma mesa com duas cadeiras e uma televisão habitam inanimadas aquele ambiente.

II

"Num Armagedon pessoal ateio fogo ao espírito de iniqüidades que o vício nos provoca assim como , enfurecido , imagino a paródia da solução final das pequenas angústias de vidas frustradas e diletantes.

Tento retirar daquelas fátuas imagens de rostos todos os seus segredos , arquivo minha concepção e processo o julgamento , não um simples julgamento de aparências , mas preencho as lacunas curiosas de minha imaginação com estes seres recriados pela semiologia , evitando assim o desastre da dúvida.

Trata-se de uma suplementação preventiva com o intuito de ocupar minha vida oculta.

Um daqueles rostos me contou sua insólita história no segundo em que deparei com seus lábios absolutamente lineares, seus olhos sempre absortos no horizonte, as rugas que marcavam seus traços pouco peculiares. Criei uma mulher que , fracassada na vida , portava uma fragilidade pulcra e bela, não desta beleza comum que necessita compreensão do contexto , mas daquela beleza atávica , adquirida pelos milênios afora : quanta volúpia exalava dela!

Apaixonei-me, aproximei-me e me casei em poucos meses.

Tudo parecia tão bom! Viajávamos juntos , ficávamos em casa juntos, não me faltava nada estando ela por perto.

O que faz as pessoas não entenderem a intensidade do que sentimos e pelo menos respeitá-la? Sadismo? Morbidade?

A verdade não seria desprezada e evitaria o que aconteceria então: infidelidade e morte.

O que faltava a ela? Mas preferiu amar outro , sem me avisar, sem me prevenir. Descobri tudo e meu ódio fez minhas mãos se enrolarem em seu pescoço . Soltei-o muito depois de sentí-la fria e pesada em minhas mãos . Doíam , meus tendões dos dedos doíam bastante, não conseguia relaxá-los , dormi logo e exausto."

III

" Dormi um sono pesado e não tive sonhos a despeito dos acontecimentos da véspera , dirigi-me ao banheiro e abri a torneira , mirei o espelho mas não consegui divisar meu reflexo , pelos nasciam e se recolhiam de minha pele em ondas que percorriam todo o corpo, minhas narinas abriam-se como ventas , a pele rachava e escorria em alguns pontos , escoando pelo ralo da pia com a água. Lavei meu rosto sôfrego e vi aliviado minha imagem normal no espelho, tudo estava no lugar conforme conferia ao apalpar-me minuciosamente , o sono decerto atrofiara minha percepção e agora só sentia ainda uma falta de reflexos que me fizera cair duas vezes ao vestir a calça. Saí após esconder o corpo dela no armário. Como é fácil estrangular! Não sangra nem deixa sujeiras.

Saí e senti falta dela , de sua presença perfumada . O fetiche adorável e agora ausente centralizava meu pensamento , trabalhei aquele dia e o alívio de ter eliminado o objeto da minha angústia ia escurecendo num infinito negro da alma como aquela tarde de maio , praticamente sem a transição do crepúsculo que precede a chegada do frio tímido dos trópicos. Estava vazio e sem dor , mas de tão vazio eu já não me sentia.

Assisti a um filme ao qual na verdade não prestei atenção saí do cinema e vaguei ainda anestesiado pelas ruas já um pouco esfriadas pela ausência do sol."

IV

O pote de geléia de morango ilumina a mão que o segura com uma luz vermelha e num choque de retorno ao presente quase deixa o pote se espatifar no chão. A faca abre o pão e o unta com geléia, ao fazer força para abrir a garrafa de café um gosto férreo lhe invade a boca.

Tudo isto ocorre num ínterim e lhe provoca na medida em que as reminiscências se afastam , uma diminuição na rispidez e automatismo de seus gestos , que ficam quase carinhosos.

Os olhos brilham vidrados olhando para uma televisão imaginária a sua frente.

De repente tudo entrou em movimento como um redemoinho sem turbulência de epicentro na cadeira defronte dele , onde ela deveria estar , esta constatação o fez sentir lágrimas querendo fugir e serem dragadas naquela espiral.

Comia mecanicamente e um gosto ocre diferente da geléia combinava com o odor de outro pote aberto quase escondido numa aresta da mesa. A pulsação de sua carótida estava agitada e ele a sentia em harmonia com o diapasão da pulsação do pescoço da infiel enquanto apertava-lhe o colo branco com sardas delicadas. Era como se o coração dela continuasse batendo dentro dele.

Acabara o lanche , sentara-se na mesa da sala. Começou com o rosto ardendo em brasa . De repente todo o rosto ardia , os músculos contraíam-se involuntariamente e a cabeça doía.

Agora salivava muito e a respiração estava difícil por causa da secreção.

Achou que deitar seria menos doloroso e a agonia que se seguiu parecia interminável e indescritível. Só ele mesmo ouviu suas ultimas palavras , antes da consciência se desincompatibilizar com a vida : "Maldita!" .

V

A carta deixada sobre o corpo dela trazia somente um esclarecimento:

" Olhos para o céu , mãos no joelho a espera , brilha líquido diamante que escorrega pela face , saído direto de dentro , garimpado pela saudade , polido pela tristeza , iluminado pela dor, escorrega até a boca e aí o brilhante em água e sal se desfaz. E eu que aprendi ser o diamante carbono puro , carrego às vezes o pingente e sei por dentro : são água e sal , vontade e palpitar daquela tristeza que , masturbando-se , goza na alma insurreita

o sêmen , a metade.

Com certeza quando lerem essa , estarei arrependido porém menos infeliz."





FIM

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