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Contos-->Testemunha -- 15/02/2002 - 20:14 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Testemunha

Surgindo das persianas empoeiradas de mil anos, ele, o que parecia, era que observava algo muito sem fim, quase infinito. Bastava vê-lo ali, braços dobrados, apoiados no cotovelo, já por uma meia hora, sem vento nenhum a mover um fio de cabelo seu. Não era tanto esse negócio de relógio o que contava, mas a falta de gesto no que se debruça e se esconde em sombra de persianas num prédio de expatriados. O rapaz contemplava um ponto no horizonte e estava sem camisa (magro ele, coitado). Talvez o que valesse mesmo não era o que ele via, mas o que lhe vinha à tona e o sufocava, e ele tinha de botar para fora era ali, daquele jeito. Talvez o que valesse mesmo era o muito que ele não via, mas... sei lá se eu devia estar aqui contando isso. Claro, eu devia era contar uma história com personagens em movimento, permeada de cheiros, de cores e, sobretudo, do básico: fatos, muitos fatos, com situações instigantes, como exige, com toda a razão, quem me põe o pão na mesa. É, mas não tenho culpa se o tempo parou quando se perdeu no vento a noção de velocidade – hoje em dia, as coisas vêm e vão sem nenhum respeito, mal se pisca e já era. Não tenho a mínima culpa de, naquela hora, não haver gente caminhando embolada nas grandes avenidas, nem faróis furando com fúria o ar, tampouco vaga-lumes modernos piscando seus néons. Em meio à correria desenfreada, bateu o vácuo, e o que era movimento perdeu-se no branco das sete cores rodopiadas em círculo, como no disco de Newton.
Hoje estou toda do avesso: enxergo melhor é com os olhos fechados e brinco de contaminar vultos distantes com o vento de minha onipresença. De minha parte, luto pela perfeição de bater o olho e reagir instantaneamente ao que vejo. Reagir num susto. Fazer de cada instante um momento de ímpeto, e mais: sem tempo também para arrependimentos futuros. Fazer no grito, depois saltar do viaduto, e pronto, sem rastro sanguinolento, tudo muito limpo e desinfetado. E se digo isso agora é porque me dá repulsa esse negócio de estar aqui contando que um rapaz se debruça de sua janela num final de tarde qualquer. Fazer assunto disso enoja, mas se faço isso será para me penitenciar, para matar de vez essa coisa de enxergar olhos onde há só coração. Ora bolas, o que conta não sou eu, é o próprio retrato, este sim, de um rapaz plantado na sua janela e, em nome da verdade, quero dizer que eu não o enxergo muito bem daqui, então não dá para inventar que ele seja assim ou assado, o rapaz na janela atrás das persianas está ali e basta. Em que pensa e o que vê? Os rumores aqui embaixo distorcem essa pergunta e se ocupam é de outra indagação: por que todos mentem tanto, por que todos vivem da mentira? Mentem com teatro, com mímicas e máscaras gregas, o que torna tudo muito redundante: atrás de toda máscara há sempre uma grande figura sem rosto mesmo... Ora, rosto existe é para sinalizar, como farol no túnel, um quadro que se repete num labirinto de espelhos. Refiro-me à linhagem que cada um carrega estampada no rosto, em cada traço, repetindo-se, séculos e séculos. põe-se uma máscara no rosto e está extinta a raça humana. Em lugar do homem, criaturas brancas, luminosas, incandescentes, mas sem sangue nas veias, passearão sonâmbulas.
Quanto ao rapaz na janela, nenhuma piscada, nenhum estalar de dedos, nenhuma ventania para embaraçar aqueles cabelos desfiados e fazê-los correr para os olhos, arrancando dele uma reação qualquer. Ele está ali e não tem pressa. Ele sempre esteve ali e não vai sair de lá é nunca. Que venha um abalo sísmico e abale todas as estruturas, pelo amor de Deus, para ver se aquele moço toma alguma atitude! (Assim, eu terei certeza de não estar morta).
Escurece, e o rapaz das persianas foi bebido pela escuridão. Não vale a pena levantar aqui a hipótese de ele estar ainda, do breu, observando. A história termina neste ponto, e ele foi mesmo tragado de um só gole pela noite, que veio e abreviou tanto sofrimento, e fim, acabou.
No fim de tudo sobrei eu, testemunha concreta de um céu sem certezas. Eu! Testemunha, telespectadora de todas as novelas, mesmo das repetidas mil vezes. De meu peito explodem milhares de contos, revelando o que não sou nem vivo. Um dia enxergarei com os olhos e terei, quem sabe, uma linda história para contar.
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