OUTRA VOZ QUE CLAMA NO DESERTO?
O Papa João Paulo II morreu e foi enterrado. E morrendo vai também o seu apelo de justiça. Coitado de João Paulo II! É mais uma voz das que ao longo de dois milénios de cristianismo se fizeram ouvir no deserto da surdez e da hipocrisia humanas. Aliás, este João Paulo, como o João Baptista de há dois mil anos, acabaram por ter praticamente a mesma sorte. É verdade que ao João Paulo não cortaram a cabeça como fizeram ao João Baptista, mas lá ouvi-los, e acatar as suas palavras, isso é que não. Até quando a pregação dos dois parece ter tido o mesmo tema, o resultado foi o mesmo – entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
O João Baptista andou pela Palestina a pedir aos homens que (re)parassem as suas tortuosas veredas e (pre)parassem os caminhos por onde Cristo havia de vir a estabelecer um reino de paz e de justiça – o reino de Deus. Os homens nem repararam os seus caminhos nem prepararam os do Messias. Joga com prefixos este pregador, pensaram, é doido, lunático, e a palavras loucas, orelhas moucas...
O João Paulo II pediu aos homens que, na Palestina, na terra de João Baptista e de Cristo se (des)truíssem os muros e se (cons)truíssem pontes, para preparar os caminhos da paz e reparar as veredas das justiça. Resultado, o mesmo, ou quase. Aí está outro com ideias loucas, pensaram os homens... e as mulheres (que elas agora já pensam também) façamo-lo santo – santo súbito – e releguemos as suas palavras importunas para o remoto reino da santidade, do inefável, do inexequível.
Foi no dia 16 de Novembro de 2003, ao rezar com os peregrinos as suas costumadas Ave-marias, que João Paulo II pediu a eliminação do muro que o governo de Israel está construindo para separar os judeus dos restantes habitantes da Palestina, nomeadamente muçulmanos e cristãos. Depois de completo, o muro que às vezes atinge os 25 metros de altura (o dobro do Muro de Berlim) em betão armado não vai separar apenas etnias ou religiões.
O Muro de Israel vai separar centenas de milhares de pessoas (um milhão e meio, diz-se) do resto do mundo, criando o que já se chama a maior prisão de sempre no planeta. O muro separa os agricultores das suas terras, os trabalhadores dos seus postos de trabalho, as crianças das suas escolas, os fiéis das suas igrejas e mesquitas, criando uma situação de verdadeira asfixia económica e cultural. O sofrimento humano é incalculável. João Paulo II chamou-lhe tormento, o tormento do povo palestino.
Vozes a testemunhar esse tormento abundam em muitos meios de comunicação social, apesar dum enorme esforço para as silenciar. Mas nenhuma tão forte, tão eloquente como a de João Paulo II. Os responsáveis ouvem, porque não podem deixar de ouvir, mas fazem orelhas de mercador e continuam a construir, a financiar ou a consentir. O Papa morreu e enterrou-se, e a voz que clamava no deserto da injustiça e da indiferença calou-se. Ou talvez não...
Às vezes, parece que a voz dos grandes profetas só ganha real volume e projecção, depois da sua morte.
Oxalá... Queira Deus que o seu apelo de justiça não morra de todo.
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