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Artigos-->Grito dentro do poço -- 02/05/2005 - 09:15 (Salomão Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um dos grandes itens da filmografia oriental, O barba ruiva, de Kurosawa, antecede justamente em 40 anos O clã das adagas voadoras e Herói, de Yimou Zhang. Deveria ser obrigatória a projeção antecipada do filme de Akira Kurosawa nas sessões dos seus sucessores, mesmo que a juventude tivesse de ficar cinco horas nas salas dos cinemas. Antes de querer lutar nas nuvens é necessário aprender andar com os pés no chão e ter a coragem de gritar dentro do poço para chamar de volta à vida os moribundos.



No cineasta japonês, a realidade serve para gerar infinitas possibilidades de vertentes fictícias; e, no chinês, a ficção constrói infinitas possibilidades para que a realidade deixe de se reconhecer em si mesma. O chinês vem dizer com os seus filmes que o homem atual, com ausências de posturas éticas, é fictício, pois acredita que a estrada da ética tem mão única. Só a mão dele, mesmo que ele esteja na contramão.



Se é de 1965, o filme de Kurosawa mostra para a juventude de 68 que era preciso gritar dentro do poço para trazer de volta —lá do fundo— aqueles que foram jogados no abismo da miséria. O pequeno Chobo reconhece que a fome torna as pessoas estúpidas (e os dirigentes insistem em gerar a estupidez milenar). Nem mesmo Goethe ou Stendhal, ou qualquer outro autor de romance de aprendizagem constrói com tal perfeição o herói que sirva melhor para símbolo de humanidade.



Agora em 2005, numa absorção clara da linguagem dos games e dos virtuosismos virtuais, que atola os jovens no isolamento e apaga neles os processos de contato com a realidade, Yimou Zhang não pode mais gritar dentro do poço sob o risco de ser ridicularizado pela platéia egocêntrica da atualidade. Tem de levar o herói para lutar na superfície das águas, nas grimpas das árvores e dos bambus, pois o jovem de 2005 — pior, o homem deste novo século — não tem mais os pés no chão da realidade.



Em nenhum dos cineastas há inutilidade interpretativa do seu tempo. A inutilidade está em seus intérpretes. O intérprete de Yimou Zhang não entra mais na realidade, e nem saberia entrar no fundo do poço de Kurosawa. Se Yimou Zhang coloca mais um bailado após o momento da indecisão da heroína, o intérprete está contente, pois o que ele quer é espetáculo. E Yimou Zhang sabe dar espetáculo! Ao intérprete atual não interessa mais os rumos da construção do mundo ético, que começa na ética individual, na ética heróica. Se o homem atual é canastrão, a arte também tem de construir o herói em que o canastrão nele se reconheça.



Apesar de conterem o modo particular dos orientais de inserir mitologias peculiares em suas narrativas, as poéticas dos dois cineastas são bem diferentes. Depois de Yimou Zhang, nem mesmo o musical ocidental será mais o mesmo. Apesar de tirar os pés do chão, o bailado e a luta humana ainda têm que se dar dentro da natureza. Em Kurosawa, o flashback monta episódios mitológicos para a construção dos episódios. Em Yimou Zhang, os flashbacks são escansões dos longos versos dos seus poemas-filmes. Há expectador dizendo que, em o Herói, não reconheceu onde a começa história. Mas o poeta não constrói história. Monta, sim, unidades específicas para seus poemas.



Quando é a realidade que gera a ficção, há a busca de uma ética permanente. O personagem de Toshiro Mifune, o último dele nas mãos de Kurosawa, leva o seu aprendiz de humanidade a reconhecer: sou “um egoísta”. Pior – ele se reconhece “egocêntrico”. E diz: tenho de sair “de dentro de mim” para ser outro. Tenho de abandonar este ser vil e miserável. E é isto que está faltando na história moderna —basta ler Cartas a Cristina, memórias de Paulo Freire, para este reconhecimento: estão faltando homens de ética permanente. Com ética quando trabalha, quando se diverte, quando dorme. Alguns, hoje em dia, nem dormindo conseguem ser éticos. Seu sonho permanente não é com um prato de comida, mas deixar todos sem comida no prato.



Quando é a ficção que se diz realidade, nem mesmo o Robin Wood se mantém fiel à sua causa. Ele acaba se desvirtuando na caminhada, pois nos esquecemos que até na ficção não o compromisso com a participação social não pode ser abandonado. Não só se desvirtua, ele mata e mata, e se mata. Mas, também, onde não há virtude, está inoculado, de forma permanente, o germe da morte. Só que o egocêntrico jamais gritará dentro do poço. Apesar de, constantemente, gerar mortes, ele se crê imortal e que não haverá punição, pois, ele está convicto que não há crime algum. E se não há morte ou crime, não é preciso gritar pela vida.



Coitado do poeta! A luta “renhida” não é mais pela vida, pois, para o egocêntrico, a luta tem de continuar para que todos estejam mortos e, se possível, sobre só ele na face da terra, no seu isolamento —, mas, diante de si mesmo, grandioso. Por isso que até hoje —faça chuva ou faça sol—, os heróis de Yimou Zhang estão lá nas nuvens em luta permanente.



(salomaosousa@yahoo.com.br)
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