Usina de Letras
Usina de Letras
75 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62201 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10353)

Erótico (13567)

Frases (50601)

Humor (20029)

Infantil (5428)

Infanto Juvenil (4762)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->OS CAFAGESTES -- 12/04/2000 - 23:11 (Mario Galvão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OS CAFAGESTES
(*)

A turma estava meio que sem inspiração naquela tarde de início de dezembro, época em que todos ficavam de saco cheio porque as aulas ainda não tinham acabado e também não se estava ainda alegre com a proximidade do Natal e Ano Novo. Como não havia ninguém de astral alto, faltava aquele costumeiro ajuntamento do lado da mureta da casa do João Monstrinho. O pessoal se espalhava, alguns perto do poste da esquina, outros mais abaixo, sentados na guia da calçada, outros zanzando rua acima, rua abaixo.
A chegada do Luizinho Cobrinha, da praça da cidade, trazendo uma novidade de arromba, deixou a turma em polvorosa, mudando o panorama. Em cinco segundos, estávamos todos encarapitados no muro, como se uma assembléia geral extraordinária houvesse sido misteriosamente convocada.
O Luizinho contava, eufórico:
-- Soube de primeira mão, de fonte limpa, de um sobrinho dos Marotta (donos do cinema) que na próxima semana vão começar a passar no Cine Urànio. Sem cortes, meu! OS CAFAJESTES, já pensou?
Outros cinco segundos e o Lininho, um dos mais assanhados, já estava andando de um lado para outro, articulando com o Zé Moacir uma maneira de falsificar a carteirinha (crachá) de estudante para conseguir burlar os fiscais de menores e poder ver o famoso filme.
--Se eu não conseguir passar, eu dou uma volta e retorno mais tarde, dou uma cantada no Sílvio (o gerente do cinema) e entro de qualquer jeito. Já pesou? Não posso perder! A Norma Benguel, nuazinha em pelo? Olha, nem que seja necessário arranjar uma escada de bombeiros, furar o teto e descer por uma corda, eu chego lá.
Cada um dos membros da turma da Rua Visconde fazia seus planos para urdir a maneira pela qual iria enganar os porteiros e fiscais para assistir ao filme que fazia furor no Rio e em São Paulo por mostra, pela primeira vez na história do cinema nacional, embora num medíocre preto e branco, uma loira com cara de pidona, boca de quem gosta de chupar sorvete picolé, que endoidecia cariocas e paulistas. Pois agora ela estava chegando para povoar de noites que passariam a ser eróticas e insones de meia dúzia de caipiras da beira córrego, na Rua Visconde de Guaratinguetá. Noites essas que raramente eram perturbadas por uma revistinha suéca que alguém conseguia de contrabando e que acabavam rotas e engomadas por passarem de mão em mão. Revistas folheadas no banheiro, na calada da noite, quando o resto da casa dormia o quinto sono. E haja tempo para acordar cedinho para lavar o lençol manchado, antes de sair para a escola.
As novenas em que a imagem do Menino Jesus ia de casa em casa já haviam começado e o tão esperado não vinha.
Finalmente, numa tarde de domingo, já próximo do Natal, dois camaradas que trabalhavam para os Marotta, um de lanterninha e outro de faxineiro do cinema, esticaram entre duas árvores frondosas da Praça Conselheiro, uma enorme faixa de pano amarelo e letras negras:
DIA 23 DE JANEIRO, ESTRÉIA. COM NORMA BENGUEL ESTRELANDO: OS CAFAJESTES
As reuniões preparatórias na esquina da Rua Visconde pegaram fogo.
Os únicos que não se preocupavam e observavam tudo com ar divertido, eram o Rodolfo e o João Monstrinho, o dono do muro onde se encarapitava o enxame excitado. Eram maiores de idade. Nós, os "de menor", continuávamos dando tratos à cachola para ver como seria possível enganar os fiscais e, agora, mais ainda, como superar a campanha insidiosa que as velhotas da Ordem Terceira de São Francisco estavam fazendo contra a exibição do filme.
--Um sacrilégio, um absurdo, um ato profano! Em tempo da vinda, do advento do Menino Jesus, símbolo de pureza e santidade!
Monsenhor Barros Bindão, o pároco local, já havia oficiado ao Juiz, sem sucesso. Hoje a Igreja e o Estado não se afinam mais, nem em Guaratinguetá.
Os membros da Congregação Mariana, em desespero e em grupo, já haviam ido também, infrutiferamente, à casa do Deputado Federal Broca Filho, no fim de semana, para tentar a intervenção do parlamentar. Nada! Os Marotta, agnósticos quando se tratava de ganhar dinheiro, teimavam em continuar programando o filme maldito.
E mais, programara o raio da película para a semana inteira do Natal, fato inédito nos cinemas de Guará, onde um filme não ficava em cartaz mais do que um sábado e domingo, quando muito. Isso quando se tratava de um Manto Sagrado, Dez Mandamentos ou Ben Hur.
OS CAFAJESTES estava programado para sete dias.
O primeiro dia chegou e foi como se esperava. Um batalhão de fiscais de menores, instados pelo Juiz, cercava a entrada do Cine Urànio, verificando carteirinha por carteirinha e colocando de lado, na espera, para uma conferida melhor, os que suspeitavam que não tivessem ultrapassado os dezoitos anos, bem completos.
Um fazendeiro, que tinha cara de neném, esbravejava:
--Que é isso, estão malucos. Todo mundo sabe que já sou até casado e tenho uma filha. Comé que vão exigir documentos!
O fazendeiro acabou entrando, mas teve gente menos endinheirada e menos influente que acabou ficando de fora, mesmo com barba e bigode na cara, porque tinha se esquecido de levar a carteira de identidade.
Um grupo de senhoras, carregando velas e a imagem do Coração de Jesus, passou em procissão, enquanto a fila se formava, prometendo o fogo do inferno para os luxuriosos contempladores da loira de boca pidona. A coisa era de brochar até galo novo. Já imaginou? Você, na fila, pronto para a ereção ao contemplar a loira nua e as velhotas entoando, à luz das velas bruxuleantes:
__ Coração Santo, tu reinarás...Tu nosso encanto, sempre serás!!! Jesus amável...Jesus piedoso... e por aí vai.
Resultado: com tanta celeuma nem metade do cinema chegou a lotar na noite de estréia porque teve até esposa mais zelosa que chegou a proibir o marido de sair de casa, para não arriscar-se a vê-lo engrossando a fila do filme e escandalizando a paróquia.
Foi daí que lá pelo meio da semana, o desinteresse pelo filme era total e nem um só fiscal de menores rondava mais a porta de entrada do Urànio.
Fomos direto para lá, não sem antes termos ouvido, do João Carlos e do Rodolfo, que haviam assistido à estréia, detalhes pormenorizadamente picantes e excitantes da cena principal. Eles contavam tudo:
--O negócio mesmo acontece na praia. O Jardel Filho, o sacana, que é o cafageste principal, deixa a Norminha sem roupa, sem nada. E aí a càmera vem vindo, se aproxima, se aproxima...
O Luizinho enlouquecia:
--Mas, aparece tudo mesmo, tudo, tudo? Até lá?
-- E por trás, queria saber o Joãozinho que era vidrado na retaguarda, diziam até de homens.
O João Monstrinho e o Rodolfo faziam charme:
--Pena que eu acho que vocês não vão ver, porque não vão conseguir entrar. O Sílvio continua de olho nos menores, porque se der rolo, vai ser rolo prá ele.
Bobagem. Na quinta-feira, quando chegamos à portaria do cinema, o Sílvio estava tomando cafezinho na Mundial de Guará e a moça da portaria, não tão moça assim, com um óculos de fundo de garrafa, não conseguiria jamais perceber nem nossa idade aparente, nem muito menos a grosseira falsificação que havíamos feito nas carteirinhas.
E lá estávamos todos nós, na fila do gargarejo, comendo pipoca e esperando o filme começar.
Mal as luzes se apagaram e o Joãozinho e o Luizinho já começaram a suspirar forte e a gemer, por antecipação. O Joãozinho, por precaução, já abria os botões da calça, mão naquilo.
O João Carlos e o Rodolfo nos haviam feito de idiotas, bem como toda a propaganda do filme.
A Norma Benguel, ali, na nossa cara, desse tamanho na tela, focada com uma péssima iluminação, a tapar sua nudez todo o tempo, com as mãos, cotovelos. E ainda por cima o lusco-fusco dos faróis do carro à noite na praia. Uma tapeação. Porcaria de imagem! Menos de um minuto! Qualquer revistinha suéca, das mais chifrins, daria mais tesão.
A tão esperada cena inédita de nudez feminina do cinema nacional poderia ser assistida pelo Frei Antonio de Santana Galvão ou qualquer outro frade oitocentista, sem qualquer constrangimento!
No dia seguinte, o Joãozinho foi o primeiro a vociferar e a proclamar bem alto na esquina, em cima do muro, putíssimo da vida:
-- Putaquepariu! Nem endureceu!!!

(*)Publicado originalmente no jornal O VALEPARAIBANO, em 1982.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui