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Contos-->Gosto -- 23/02/2002 - 19:13 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Josildo caminhava descalço enquanto a areia poeirenta acimentava seus pés de maneira suave. Um momento chegou em que ele precisava calçar as chinelas, que carregava dentro de um dos baldes. A terra esquentava bastante no sol, ficava muito pedregosa, os matos começavam a espetar demais. Sentou no chão. Andara já dez quilômetros, precisava era de um sorvido gole d’água, a cara estava cheia de poeira. Às vezes passavam carros na estrada que levantavam poeira demais. Passavam caminhões, carroças, carros demais. Sentou-se de modo a não correr risco de ser atropelado, calçou as chinelas e pensou em descansar um pouco. Pensou, mas depois levantou-se, porque queria voltar logo para casa com os baldes cheios d’água. Era muito ruim aquele problema com a água encanada, porque era ele, e não as mulheres ou as crianças, quem tinha que buscar água no poço.
Continuou a caminhada refletindo a respeito do que poderia fazer para melhorar sua vida. A vida no posto não lhe parecia digna, não sabia se se casava ou não com Rosinha. Casava ou não, era o que pensava. Pensava em se mudar, sair daquele lugar miserável, ir pra cidade grande e arranjar um trabalho de homem decente. Não sabia como faria isso, porque não tinha estudos, não tinha boas maneiras, não sabia fazer nada além de ler umas coisas e fazer umas contas. Era o que bastava para trabalhar no restaurante do posto. Muitas pessoas passavam por lá, todos os dias, não fazia muita diferença para ele. Via pessoas diferentes porque os ônibus todos paravam lá todas as noites e todos os dias. Seu pai queria que ele continuasse trabalhando na roça, casasse com Rosinha e herdasse a morada, mas ele sentia que precisava mudar aquilo, que o que as pessoas diziam da cidade era fabuloso, e muito mais digno do que viver transitando entre o posto e a casa, a casa e o posto. Queria obedecer ao seu pai. Enxergava a dívida grande que tinha com o homem, e era justo obedecê-lo, pois, afinal, sem seu pai, ele não existiria de qualquer forma. Estava confuso, não gostava de se sentir daquele jeito. Olhava para dentro de si e só via as margens de sua indecisão se aumentarem, e aumentarem. Pobre da mãe, que tinha morrido quando ele era muito moço. Sentia muita falta de mais mulheres por ali, mais mulheres na fazenda, no posto. Todos os dias via algumas moças bonitas que desciam dos ônibus, pediam qualquer coisa pra ele – uma coxinha, uma coca-cola, um café, um suco de laranja - eram garotas loiras, lindas, de cabelos cacheados, pele branquinha e lisa, os olhares cansados, as pernas doídas. Eram garotas loiras, lindas, lindas. Ele as via, e depois nunca mais na vida as via de novo. Olhava-as por alguns segundos, atendia ao pedido, não podia fazer mais muita coisa. Era um adeus para sempre quando entregava o copinho de café.
Gostava muito de Rosinha, realmente a tinha com grande apreço. Tinha medo que engravidasse, e invalidasse sua liberdade de decisão sobre o casamento. Sentia-se um pouco incomodado pelo fato de estar se casando com uma prima (que era filha do irmão de seu pai), mas sabia que não era grande problema. Apenas ouvira histórias de outros homens que moravam por lá, não parecia fazer muito sentido para ele. Pensava que era bom nos trabalhos braçais, não escrevia muito bem, mas sabia ler tudo. Era bastante apto a sair dali e conseguir um serviço qualquer. Ferreira dissera que ele poderia trabalhar com máquinas, porque levava jeito pra máquinas, e que na cidade existiam muitos tipos diferentes de trabalho disponíveis. Poderia simplesmente ir para Jacantuba, mas preferia ir pra um lugar maior, como Goiânia ou Campo Grande. Das cidades menores, enchera-se na infância. Ferreira o influenciara resolutivamente: poderia ser padeiro, pedreiro, atendente, caixa, garçom, mecânico (gostava de fuxicar em carros), bombeiro. O que fosse, poderia aprender. Viver com Rosinha ou outra mulher. Viver para além do que seu pai queria que ele fosse. Além do que seu pai fora.
Os pés já eram lascados do trabalho diário. A roupa que usava todos os dias para atender no restaurante estava bastante suja, amarrotada, precisaria lavá-la para a noite. Não admitiria cobrança de ninguém, pois era ele o único disposto a buscar água para todos beberem. O que havia de água no posto estava cada vez escasseando mais, porque os patrões pediram para economizar água pra usar no banheiro e água pros clientes. Procurava pensar em quem tinha culpa pela falta d’água, mas não conseguia elaborar muito bem seus questionamentos. De quem era a culpa por ele estar andando ali, depois de andar dez quilômetros atrás do poço, um poço que estava abandonado havia muitos anos. Como poderia água vir debaixo da terra e, pelo poço, sustentar uma vila que havia ficado sem água? E porque faltava água, se sempre tivera água disponível na torneira, no filtro, nas garrafas d’água da loja. Água caía do céu. Como podia faltar água? Não fazia sentido para ele. De quem era a culpa? Do governo? Mas o que o governo deve ter com a água, afinal? Se a água vinha dos rios, dos mares, das chuvas, até de dentro da terra...
Pensou se seria São Pedro o culpado daqueles fatos todos. Ouvia dizer que Deus dava isso, que Deus dava aquilo, mas tinha cessado a água por aqueles dias. Seu pé estava coberto por uma camada grossa de terra que ele não sabia se era terra mesmo ou era parte empestada do seu pé. Uma vez tinham crescido umas feridas muito grandes, e saía muito pus pelos furos, ele não conseguiu andar por uma semana, quando era menino. Até hoje se lembra daqueles furos, que não sabia se era coisa de bicho (nunca tinha visto), acidente ou mazela da natureza. O sol lhe castigava por não entender direito as coisas que se passavam ao redor da sua vida. Achava que era burro, as pessoas, todo mundo perguntava porque ele perguntava tanto as coisas, e não sabia responder nada. Não tinha tido muita educação, é verdade isso, mas os outros meninos que cresceram com ele, e as meninas também, hoje moças com bebês nos colos, nenhum deles havia se tornado um tão completo ignorante como ele.
Passou a mão suja pela barba loira rala. Os fios, que brutamente perfuravam sua pele, atravessando-a para ganhar liberdade, incomodavam-no de tal maneira que precisou uma hora largar os baldes no chão para coçar a cara com suas unhas sujas. Tinha um cabelo loiro crespo, curto, uma barba ainda crescendo, mas com fios grossos. Às vezes se olhava no espelho e imaginava o motivo daquilo, se nem seu pai nem sua mãe eram loiros. Será que era um filho bastardo? Filho do Romildo, aquele seu tio sem vergonha que era mulherengo, mulherengo feito o diabo. Então, se era filho do Romildo, seria o Romildo, aquele homem primitivo, pernicioso e soberbo o seu pai, e seu pai seria então seu tio? Era uma dúvida que lhe ocorria pela cabeça, porque o Romildo tinha aquele mesmo cabelo crespo, meio loiro, apastelado, escuro, que cobria a cabeça de Josildo. E, pior, angustiante, era pensar que Rosinha era filha de Romildo, e que se Romildo fosse mesmo seu pai, então Rosinha era sua irmã, e se casar com irmã lhe parecia muito, muito pior do que se casar com prima. Incomodou-se com aqueles pensamentos. Ninguém jamais havia suscitado aquilo daquela forma. Chegando em casa, procuraria Lucia e perguntaria se ela sabia de alguma coisa que ele não sabia, pensou. Lucia era sua irmã. Tinha os cabelos pretos, era até meio escura. Não conseguia entender sua família. Lucia estava para arranjar também casamento, com aquele tal Jonas, homem trabalhador, baiano esquisito, que tinha aqueles amigos ricos, e aquele povo todo do lado de lá, que não lhe fazia muito bem às vistas.
Sentiu-se inútil. Sentiu vergonha pelo sentimento. Pensava que não era homem digno. Não tinha aquele palavreado e aquela prosa toda de Jonas, que ia engravidar sua irmã, e talvez a melhor coisa que ele fosse ser em sua vida fosse ser tio. Pensou que Jonas tinha aqueles modos educados, e mais aquele jeito de baiano, trabalhava o dia inteiro, com o sol na boca dos olhos, e queimava mais aquela pele parda que ele tinha. Jonas tinha uns dentes perfeitos. Era até mais bonito que Lucia, mas ele não levava muito adiante estes pensamentos, porque não gastava muito tempo pensando na beleza dos homens. Voltou a girar, e girar, e girar sua cabeça em volta de Rosinha, que era uma moça tão simples, trabalhadora, mas calada, mais calada que ele. Na verdade, pensava no casamento prometido. Tinha umas formas boas, uns peitos fartos, mas não sabia se podia ter aquela mulher do seu lado por toda a vida, porque nunca tinha trocado grandes conversas com ela, só esse ou aquele caso de superfície, um pouco da intimidade de quando eram crianças, mas Rosinha era calada demais, não dava espaço pra abraços, apertos, nem mesmo uma troca de olhar que fosse... Os rapazes da fazenda que o digam. Espalhavam pra Josildo que ela não era mais virgem, que era que nem bicho do mato, que gostava era de mulher, que sabia só fazer suco e lavar prato, que não prestava pra nada, nem pra copular, nem pra nada. Ele costumava acreditar no que os outros rapazes diziam, porque tinham tantos deles que vinham das cidades, e falavam melhor, liam melhor, comiam melhor, sabiam o que era melhor para ele. Sua falta de informação a respeito de tudo o colocava na beira de um abismo de conhecimento: o tempo todo estava cercado por carros, aparelhos, televisores e máquinas modernas que o sussurravam que a vida na morada não era mais pra ele, que ele podia ir embora, porque seguir os passos do pai era ser assim pra toda vida, e; e cada ônibus que chegava, podia ver as vidas novas aparecendo, florescendo das escadas nas portas, de dentro das cortinas, aquelas pessoas todas tão diferentes, que o chamavam, caminhando em tênis coloridos, modernos, bolsas e mochilas confeccionadas pela indústria, beleza exótica e sedutora. Tinha uma curiosidade de saber as coisas que o matavam, que o impediam de dizer qualquer coisa na frente do pai, porque o pai não admitia qualquer coisa. Com ele tinha que ser voz grossa, pensamento espesso, não podia perguntar muito. Perguntar demais era pra quem não trabalhava, e quem não trabalhava era vagabundo, e quem era vagabundo morria cedo.
Casava ou não casava? O que as pessoas diziam para ele lhe fazia sentido. Nunca tinha pensado, quando era moleque, naqueles termos, naquele tipo de questionamento. Podia questionar o próprio casamento, então? Andava a remoer umas pancadas na cabeça que não iam embora, não deixavam ele virar-se para outro tema, só pensava o tempo todo em casamento, casamento, se ia ou não com Rosinha, que era jeitosa, e se era jeitosa era o que importava, mas que poderia dar certo na cidade, e que o pai ficaria decepcionado se fosse para a cidade, volteando e volteando até a sandália arrebentar-se e seu pé chocar-se com uma pedra grande atravessando o caminho. Sentiu que a unha do dedão afundara-se um pouco. Estava um pouco dolorido, mas ele não podia se queixar de dor tão pequena. Sentou-se no chão novamente, tentou arrumar a sandália, viu que não prestava mais. Enfureceu-se. Mesmo durante um momento de crise pessoal como aquele não conseguia tirar o assunto do casamento da cabeça, não tinha critérios para tomar decisões, a unha do pé doía, mas ele procurava esquecer a dor, e esquecia mesmo, porque não podia dar atenção a uma pequenice como aquela, mas era uma dor aguda, não era grande, mas afligia, não o deixava desviar a atenção para outras coisas, mas ao mesmo tempo tentou ver se podia consertar a sandália, tentou respirar um pouco, precisava de alívio, pensou se sua mãe ficaria orgulhosa se ele tentasse ir pra cidade se casar com uma moça da cidade, o que os rapazes diziam era que na cidade tinha pencas e pencas de mulheres diferentes, tinha putas, e ele poderia ter relacionamentos reais, desistir da adoração ao longe, talvez, talvez, talvez um dia, quem sabe, pudesse namorar uma daquela garotas loiras, lindas, lindas. A chinela não prestava mais. Teria que andar descalço e com aquele pé daquele jeito, não era nada, mas estava sangrando. Chupou o dedão pra ver se melhorava, sentiu uma ardência na ferida. Pensou novamente naqueles furúnculos da infância e tentou associar uma coisa à outra. Pensou em porque machucara o pé justamente no momento em que havia pensado na última ferida que tinha tido no pé. Pensou rapidamente se alguma relação poderia ser estabelecida entre os dois fatos, mas não fazia muito sentido, porque os furúnculos já se haviam ido havia anos. Pensou se, se por acaso pensasse nas coisas, elas aconteciam na realidade de alguma forma, como se tivesse pensado nos pés machucados pela estrada e pelos furúnculos, e a pedra houvesse aparecido para verdadeiramente machucá-los de maneira real. Sentiu o fenômeno como místico. Tentou associá-lo à decisão do casamento, mas estava confuso. Pegou a sandália e jogou-a longe, insatisfeito, no meio do cerrado, embaixo de uma árvore seca e miúda. Logo se arrependeu, olhou para a sandália, a uns cinco metros, pensou se poderia recuperá-la, não tinha outras sandálias, estava ficando nervoso. Queria soluções para aqueles todos pequenos problemas (e grandes) quando a poeira da estrada subiu-lhe as vistas. Era uma camionete velha que estava parando. Olhou para as portas de cor bege, descoradas, e a traseira enferrujada. Tentou limpar os olhos com as mãos já sujas; acabou sujando-os mais. Estavam irritados. Ele queria chegar logo ao poço para se lavar e beber água. Pensou que nunca mais faria esse serviço de novo, e logo depois dialeticamente se contradisse, porque sabia que faria aquele trabalho de novo, se fosse necessário; não havia nenhuma outra opção.
“Boa tarde, Josildo. Tá indo pra cacimba? Que que há, homem? Porque pára aí sentado?” era Leandro quem perguntava. Leandro trabalhava para o doutor Braga. Era um homem velho e estranho. Comia muito lá no restaurante do posto. Josildo lembrou-se que Leandro lhe devia quatro reais de um almoço de segunda-feira, mas olhou as cicatrizes perto da orelha dele. Diziam que era briga. Só sabia mesmo que Leandro gostava muito de beber cachaça, e estava prestes a ser mandado embora do serviço pelo doutor Braga, porque dirigia já sempre cachaçado. Passou-lhe pela cabeça a possibilidade de Leandro querer matar alguém na fazenda do Braga, por vingança, mas o pensamento não se afixou, voou para longe. “Minha sandália arrebentou, mas não sei se ainda presta”, disse Josildo apontando a sandália no meio do mato. Leandro soltou um arroto, disse pra seguir em frente a pé, mandou Josildo dar um abraço na Rosinha, o que o intrigou muito, acendeu os faróis do carro (a estrada poeirenta), deu partida e foi-se. Josildo, recompondo-se, levantou-se. Lembrou-se da associação Rosinha-furúnculo-dedão machucado e tentou associar o novo acontecimento, renovando o esquema como algo Rosinha-furúnculo-dedão-Leandro. Pensou em porque Leandro teria lhe mandado dar um abraço em Rosinha. Sabia que existia o noivado, mas ninguém tão distante da parentela nunca tinha feito isso antes. Mandar um abraço na Rosinha. Isso poderia significar muitas coisas nas suas conjecturas. Talvez fosse um sinal divino de que as pessoas já consideravam-no casado com Rosinha, e então ele não poderia fugir a esse vaticínio: era a resposta de Deus, que lhe dera as primeiras pistas no pensamento dos furúnculos nos pés de quando era menino. Mas, por outro lado, pensou se por acaso Leandro não havia descabaçado Rosinha, o que era uma coisa hedionda de se pensar, mas não conseguia deixar aquela possibilidade lhe escapar. Talvez Leandro estivesse bolinando Rosinha há tempos, e estivesse mandando a ela uma mensagem codificada através dele, ao mesmo tempo em que fazia uma troça inventiva. Pensava se aquilo poderia ter algum fundamento. Imaginou se todos soubessem daquilo, e todos olhassem para ele pensando que era chifrudo, um corno sem decência, um idiota qualquer enganado, como havia tantos por aí. Minimizou-se em duzentos por cento. Uma espetada volumosa cingiu-se-lhe ao peito. Tentou reconsiderar a questão anterior, mas a possibilidade de que Leandro estivesse já há tempos de amor com Rosinha não saía de sua cabeça de maneira alguma. Começou a andar bem mais depressa, estava aflito, o suor que lhe escorria a testa mesclava-se à poeira lamacenta que lhe revestia a face. Estava muito sujo. Os olhos estavam vermelhos. Ardiam. Não sabia se de lágrimas ou se de sujeira.
Quando alcançou o poço, finalmente (teve de dobrar o caminho pra dentro do cerrado por uma trilha de pedras – esquecera-se completamente do ferimento no pé – em um dado momento, mas não precisou andar muito), uma senhora gorda estava lá retirando seu balde da corda. Estava carregado. A senhora era dona Esmeralda, mulher de Lenir, que morava na região. Era, inclusive, muito amigo de seu pai. O pensamento em seu pai lembrou-lhe novamente o dilema e as circunstâncias que envolviam Rosinha. Que relação tinha o poço à premonição de casamento? De repente, um toque surdo em seu coração lhe avisou, como um presságio, que teria de decidir seu destino naquele momento. Abriu os olhos, espantado. Levemente colocou no chão os baldes e encarou dona Esmeralda com um brilho vivo nos olhos. Ela, que jogava a água do balde do poço para dentro do seu balde, parou o trabalho para tentar enxergar quem era aquele que lha espiava. Esmeralda conhecia Josildo. Sabia ser filho de Tomás e dona Vera. Por alguns instantes, pensou que o rapaz fosse atacá-la, porque olhava de um jeito brilhoso, aficcionado por alguma coisa que a própria não saberia dizer se era ela ou alguma coisa empestada no ar. Olhou ao redor de si, viu apenas mato, a estrada do outro lado, e as casas da fazenda Matias colina acima. Pensou em correr para a estrada, mas sempre ouvira dizer que Josildo era bom menino, comportado, trabalhador, gostava de Tomás e da mãe, finada, que era sua amiga e amiga de sua mãe. Chegou a tremer de medo, o menino parecia possuído, talvez fosse aquele tal furor selvagem que possuía os homens quando estavam querendo caçar mulher. Talvez o menino fosse reprimido, precisasse alimentar sua necessidade sexual, que oportunidade melhor que aquela? Pensou. Tremeu, quando derrubou seu balde d’água no chão, mas então Josildo já voltara ao normal.
Baixou os olhos, que estavam, ele não sabia como, mas fixados na luminosidade atrás de D. Esmeralda ofuscando sua visão, deixando apenas um espectro negro, e depois róseo, e depois verde, alucinações causadas pela luz azul-clara e forte que vinha do céu. Ficou parado por aquele instante, pensou ter um contato divino de alguma forma, chegou a titubear dentro da mente, viu as coisas se dividirem em branco, preto, branco, preto, e a luz ia forte. Chegou a pensar em sentar no chão, desmaiar, e as cores verde, vermelho e azul e amarelo impressionavam tanto que não conseguia desvencilhar-se delas. Soltou os baldes, balançou a cabeça, precisava talvez de um gole d’água. Balançou a cabeça, respirou, recuperou-se. Avistou novamente D. Esmeralda, que o observava trêmula. Pensou no que podia ter pensado a pobre senhora, tratou de agir como gente normal. Endireitou-se, ficou caminhando em sua cabeça, sem parar, a idéia do contato divino, se aquela luz era Deus, e se Deus podia ser uma luz. Logo seu ceticismo o alertou, não pensava que Deus fosse ali perder tempo com ele com questão tão pequena, quando Deus tinha guerras, aviões e catástrofes naturais para resolver. Porém ficou assustado com suas reflexões. Achava que estava se sentindo estranho ali, não devia ter feito birra, devia ter pego a carona com Zé Mendes, que saiu do posto, mas dissera ele que podia ir a pé mesmo, que não precisava de carona. Queria fazer de si próprio um martírio para que os outros notassem que ele havia ido buscar água para todos a pé, sacrificando sua saúde e sua disposição. A partir daí lembrou-se do furúnculo, do machucado no dedão, (que ainda ardia, e ele mancava – pouco, mas mancava), de Rosinha, de Leandro, dona Esmeralda e, enfim, Deus. Que maneira estranha de se chegar a Deus, pensou. O estranho é que não estava certo daquilo. Estava angustiado. Se Deus houvesse feito efetivamente um contato, ele haveria de ter certeza, porque Deus não poderia mandar um contato que fosse falho, porque Deus não falha. Então talvez ele não tivesse que decidir sobre o casamento naquele momento.
“Josildo”, disse D. Esmeralda, criando coragem, percebendo que o garoto não estava interessado em estuprá-la, mas estava, sim, passando mal de alguma forma. “Josildo, o que que cê tem, rapaz?” “O Sol tá bravo. Vem tomar água.” Josildo estabeleceu contato. Estava totalmente perdido na conjectura divina, não sabia o que dizer para D. Esmeralda, começou a imaginar-se vigiado, não podia entender direito qual era a intenção de Deus ou do destino em tudo isso. Como Deus existia, estava vendo aquilo e aprovando de algum jeito. Parecia querer fugir da própria escolha que era obrigado a fazer jogando a responsabilidade em Deus, como se Deus fosse se preocupar com seu mundo pequeno, suas decisões pequenas, sua vida, que era aparentemente pequena. Perguntaria alguma coisa a D. Esmeralda? Tinha D. Esmeralda alguma coisa que dizer a ele? “Dona Esmeralda, estou confuso”, disse ele. “Confuso? Confuso por quê? Não se anda assim nesse sol, menino, vai te fazer mal. Veio a pé até aqui?” perguntou ela, acudindo-o. Josildo sentou-se na beirada da cacimba e sorveu, com as mãos, alguns goles d’água restante do balde de D. Esmeralda. “Se a senhora recebesse uma mensagem do nosso senhor Jesus Cristo, como a senhora saberia se a mensagem era mesmo dele ou não?”
“Uai... e seria de quem? De demo?”, foi a resposta de D. Esmeralda, mas Josildo já não ouvia. Logo após ter pronunciado as palavras, algo dentro dele voltou-se para a água que bebia. Sentiu um choque que pareceu ter afetado individualmente todos os pêlos e todas as células de seu corpo. Sentiu como se um tubo gelado tivesse sido enfiado em sua espinha, chegando à cabeça como um orgasmo antártico: gelado, imobilizando todos os seus membros. Durou-se aquela sensação, arrastando-se enquanto procurava situar a dimensão na qual vivia. Passou. Quando se recuperou, olhou a água, tentou achar alguma coisa no balde que o fizesse reencontrar aquela sensação, o que tinha causado aquele tremor e aquele aviso. Seu coração começou a bater num crescendo. Parecia cada vez mais sufocado. Isso porque havia pensado na palavra “aviso”. O quê, naquela reação aparentemente orgânica que vivenciara, podia ser identificado como aviso? Nada. E porque não conseguia desgarrar-se daquela palavra, enquanto outras sinônimas lhe embriagavam a mente: mensagem, oráculo, verdade. Desesperou-se a abraçou D. Esmeralda. Esta vira a estranha contorção no corpo do rapaz, não sabia o que era, pensou em já levá-lo pro doutor. Josildo tentou rememorar, não conseguia repetir a sensação, mas já conseguia que se elevasse em sua mente o motivo daquilo tudo: era um gosto estranho que não lhe saía da boca. Não; na verdade, já se fora, mas era a impressão do gosto que a água havia lhe causado que não ia embora. Lembrou-se de, após perguntar a D. Esmeralda, beber um gole inteiro e redondo, e, antes mesmo de bebê-lo, misturando a dor de sua garganta seca ao cessar fogo macio que o líquido provocava, sentir o gosto, por um tempo que não conseguia determinar. Um segundo, dois segundos, um centésimo? Nenhum número de tempo parecia-lhe preciso, todos pareciam distantes do tempo da duração. Uma hora parecia tão distante quanto um segundo. Olhou a água novamente, horrorizado com aquela sensação incômoda, não-precisa, que lhe acontecia justamente num dia cheio de acontecimentos pequenos, estranhos, mas grandes. A água não mais lhe dizia nada. Não conseguia traduzir aquilo de forma alguma, não encontrava palavras em sua cabeça. Enfim, pareceu-lhe que estava endoidando.
“Josildo, meu filho, fala comigo. O que há contigo?”. D. Esmeralda não tinha idéia do que fazer. O menino a abraçava, largava, voltava a abraçá-la, não conseguia proferir uma única palavra, não se acalmava, ia até o balde, bebia, e depois cuspia, e bebia, e cuspia, e bebia novamente. Josildo sentiu que precisava tentar expressar-se de alguma forma para D. Esmeralda, mas aquele gosto era tão incerto e fantasmagórico, e plural, significativo, cheio de idéias, nunca havia sentido nada parecido num gosto. Nunca havia sentido nada parecido em sentido algum. Não era o choque, não era a espinha, era uma única coisa, uma única coisa indecifrável: o gosto, o gosto! Não voltava a senti-lo, mas não se livrava da sensação que o gosto lhe provocara.
“Josildo, tô assustada. Vou chamar o doutor”. E D. Esmeralda começou a se afastar, um pouco assustada com o comportamento maníaco do rapaz, um pouco, talvez menos, preocupada com a saúde dele. Josildo desalinhou a implosão dentro de si. Jurou que tentaria dizer alguma coisa, descrever aquele gosto, encontrar alguma coisa que fosse parecida com ele, jurou que acharia as palavras mais próximas, e talvez D. Esmeralda estivesse apta a desvendar o mistério junto com ele. Que água era aquela? E porque o gosto não se repetira nenhuma vez? Porque continuava bebendo, e só por aquele instante incalculável daquele único, simples gole pudera receber aquela mensagem? E porque mensagem? Que mensagem?
“Deus!”, exclamou Josildo, após as palavras, as imagens e as coisas todas terem se misturado em sua cabeça de forma truncada, cada uma tentando derrubar a outra, que julgava errada, mas sendo derrubada por outra, e tantos e tantos signos tentando representar aquele gosto que simplesmente não encaixava, não se adequava a nada, e que parecia estar sempre tão longe de ser encaixado. E Deus. Deus. “Deus”. “Deus”, repetiu mais duas vezes. Dona Esmeralda voltou-se para ele. Olhava-o, incrédula. Pensava que havia endoidado. Será que pensava que era Deus, era o que imaginava. Mas via o brilho da ineficácia nos olhos do rapaz. Ele dizia apenas aquilo: “Deus, Deus, Deus”, e parecia sofrer internamente por ter reduzido ao máximo sua forma de comunicação. Mas o menino ainda assim afogava-se em sua insuficiência, parecia querer enforcar-se, batia nas águas do balde, trêmulo. D. Esmeralda não sabia se o deixava lá, naquele estado ensandecido, e ia buscar o médico, a polícia, o manicômio, o que quer que fosse. Não sabia se ficava lá com ele, se tentava dialogar com o rapaz, ou se voltava à cidade a avisava seu pai, seu tio. Apertou-lhe o coração. Chegou a pensar em meter-lhe o balde na cabeça para ver se ajuizava. Não foi preciso. Josildo caiu duro no chão, empedrecido. D. Esmeralda tocou-lhe a fronte. Não estava morto, mas empedrecido. Os músculos rijos como se ele estivesse travando-os. Os olhos abertos, mas desta vez sem brilho algum, secos e fundos. Olhou para o fundo do poço e comparou: eram iguais. Chegou a tentar enfiar as mãos em seus olhos, para ver se conseguia buscar alguma coisa naquela profundidade. A boca estava fechada, parecia ter tido um nó na cabeça, ataque de doido, não sabia o que, mas aquilo era, para ela, sobrenatural. Chamaria os índios da região, ou o padre, pra ver se benzia aquele corpo, e afastasse aquele capeta fantasiado de Deus? Não tinha muitas dúvidas de que havia presenciado uma cena de possessão. Só o capeta o faria pular daquele jeito, e gritar daquele jeito, e bater na água daquele jeito. E aquele olhar – não o de agora, que estava congelado, mas o anterior – aquele olhar só podia ser do capeta, que esvaziava a alma do menino trocando-a por um simulacro da de Deus. Era engraçado, parecia estar mais certa que nunca de seus pensamentos, convicções. O menino ainda respirava, se alguém lhe pusesse os dedos rente ao nariz, mas D. Esmeralda duvidava muito que fosse acordar novamente. Deitou o ouvido ao coração devagar, percebeu que batia, tão tranqüilamente, que chegou a duvidar ter estado ali alguma vez o demo. O que quer que havia sido, passara por ali, pegara a alma do garoto e fora embora. Começou a se afastar. Jogou a água do balde toda em cima do rapaz, tentando despertar-lhe do transe. Avisaria o padre, em primeiro lugar. Os doutores de nada saberiam daquilo, porque não acreditavam em Deus e nem no demo. Chamaria o padre, e depois seu pai, Tomás. Seu Tomás, e depois o tio, Romildo. Seu Romildo, e depois a noiva, Rosinha.
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