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Contos-->O maravilhoso dia em que Marilena Silva morreu. -- 27/02/2002 - 16:12 (Pedro Fraga Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Não era um dia belo nem ensolarado, e luminoso... também não seria a melhor definição.Era um dia feio digo logo. Um desses frios, úmidos e escuros que parecem até obra do apocalipse, anunciando breve o fim do mundo. Alguns mais idosos me lembrarão como estou equivocado em proferir tal pérola sobre aquele dia, mas para Marilena Silva aquele era realmente o dia do fim do mundo.

E tudo começou como se iniciam os grandes acontecimentos: Sem dar o menor vislumbre do que está por vir, como que para pegar o incauto escolhido pelo destino para ser sua vítima, desprevenido, surpreso e sem a menor chance de reação.
Não que Marilena fosse mulher de ser pega desprevenida, afinal de contas era pobre, negra e mulher, e não que isso seja uma brincadeira de mau gosto do destino, mas em lugares aonde o racismo contra esses tipos majoritários ainda é forte, poderíamos dizer que Marilena possuía Know-how e milhagens em desventuras, decepções e falcatruas contra sua pessoa.

Marilena, mulher de muitos filhos e nenhum dinheiro, foi varrida do mapa sem compaixão. Logo pela manhã vieram dizer-lhe que não poderia sair de casa, pois Juquinha boca de fumaça havia decretado toque de recolher em toda a favela. Mais uma falta, uma patroa rica e insensível aos toques de recolher de Juquinha não hesitaria em mandá-la embora. Portanto foi um dia em que amanheceu desempregada.

Já no meio da manhã, seu sobrinho chega com um furo sensacional. O filho de Marilena estava de amizade com Juquinha e sua turma. O rapaz contou que avistara o garoto de três oitão na mão, falando sem parar , ameaçando os transeuntes, ordenando-os que fossem para suas casas, que ele ia meter bala. Marilena,que não tinha disposição para visitar preso, que diga o tio Crisley que até hoje espera uma, resolveu tirar a questão a limpo apesar dos esforços do sobrinho, das filhas e da mãe (não me pergunte como morava tanta gente naquele barraco) para que não saísse durante o toque.

E lá se foi Marilena, sem saber que a polícia estava prestes a invadir a favela, sem saber que estava novamente grávida, e principalmente, sem saber que dali a não muito tempo estaria empacotada.Chegou ao QG do grupo revolucionário,como se auto intitulavam, e já foi ameaçada: Tia, vaza daqui que os gambé tão chegando, vão estourar tudo tia, tão procurando os assassinos da madame,vaza tia vaza!

Marilena não pôde ver se lá estava o filho, nem perguntar se alguém o tinha visto. Soube-se depois que estava muito bem, com um fuzil na mão no alto de um barraco esperando a polícia. Olhou para a ladeira e viu os fardados se aproximando. Nas mãos rifles, fuzis e alguns cachorros que pela cara deviam estar no maior rango. Logo que passaram a fronteira imaginária, o zunido das balas começou. Pelo rosto e ouvido de Marilena, ocorreu o maior desfile já visto, cada uma com seu formato e barulho únicos andando em velocidade diferentes. Não demorou muito para que Marilena sentisse também a textura, o calor, a força e a pressão das meninas. Foi épico e curioso ver aquela mulher ser crivada e escanhoada por balas de todas as direções. Só a polícia matou-a umas cinco vezes e os bandidos mais algumas. Quando finalmente foi deixada em paz, caiu o que dela restava, num tiroteio que não havia durado mais que dois míseros minutos.

Talvez o toque de recolher tenha sido o culpado, quem sabe os ladrões que mataram a madame e provocaram comoção nacional, ou os policias que se tivessem chegado dez minutos depois, teriam dado tempo para que ela fosse trabalhar. Quem sabe não fora culpa do sobrinho cagüeta ou ainda do Tio Crisley, que fora preso com os cinqüenta quilos de cocaína que dizia que iria mudar a vida de todos e os obrigou a se mudar para aquela boca de fumo disfarçada de bairro.

De quem era a culpa já não importava mais. Marilena não poderia ter escolhido melhor hora para morrer. Foi eleita mártir, símbolo da decência e do fim da violência, mulher que morreu lutando pelo filho, o qual não queria ver bandido. Logo foi alçada a nome de praça e escola pública. As pessoas comovidas pelo ocorrido sofreram aquela amnésia generalizada que evita muitos constrangimentos, lembrar apenas as coisas boas que o defunto fez, e assim saiu nos grandes jornais, telejornais e programas de debate.

Foi enterrada com honras de chefe de estado. O governador segurando a alça de seu caixão. Foi enterrada num cemitério grã-fino com lápide de mármore. Sua família recebeu uma gorda indenização do estado, e pode melhorar de vida. Assim Marilena se foi, fazendo estardalhaço. Estrela póstuma de um circo surreal.
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