"Seria inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos faladores; isso seria cousa pouco mais ou menos semelhante a querer contar-se numa tempestade os pingos de chuva que caem. Só quem já teve ocasião de assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é uma dessas brigas no interior de uma família. Todos falam a um tempo, esforçando-se cada um por falar mais alto do que todos os outros; ninguém parece atender às desculpas que se apresentam, nem às recriminações que se fazem, e entretanto de minuto em minuto cada qual, tomando mais calor, se julga dobradamente ofendido; as juras se cruzam, as ameaças se chocam; não fica no dicionário termozinho de escolha que não saia à frente; umas questões trazem outras, estas ainda outras; recorre-se às ofensas passadas, presentes e futuras para fazer-se carga aos adversários. Tudo enfim se diz, e nada se consegue; a briga dura muitas horas, ao termo das quais os contendores, fatigatis sed non saciatis, abandonam o campo, ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a princípio. E se por acaso, tocando já em retirada, algum ousa ainda soltar uma derradeira imprecação, pega de novo a cousa, e dura ainda bom pedaço. As mais das vezes fica tudo em palavras".
(Trecho de "Memórias de um sargento de milícias", de Manuel Antônio de Almeida).
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